sexta-feira, 12 de outubro de 2018


UMA CHAVE DE LEITURA (E REESCRITA) DO LEGADO FREIREANO, NO CALOR DOS DESAFIOS ATUAIS: Qual a contribuição de nossas organizações de base?

Alder Júlio Ferreira Calado

Na perspectiva freireana (não apenas), toda leitura de mundo se acha necessariamente permeada pelas vicissitudes históricas, isto é, sob a dinâmica do movimento do tempo, bem como da marca da espacialidade. Não faria sentido uma análise de uma situação presente, desconectada de seus laços com passado e temperada com um esforço prospectivo: presente-passado-futuro são traços necessariamente interconectados, como condição de uma análise dentro da criticidade desenvolvida (também) em Paulo Freire, não apenas proposta, mas sobretudo testemunhado, ao longo de seu percurso existencial. Resulta, por conseguinte, não apenas possível, mas também necessário, ao nos debruçarmos sobre o calor da atualidade, por mais conflituosa que se manifeste, sem a devida atenção a aspectos tais como:
- de onde vem este presente?
-como foi forjado, até desaguar no que hoje se tem?
- que forças, durante esse período, estiveram confrontando-se, e à luz de que projetos de sociedade?

Tanto no conjunto de suas obras, como em suas intervenções orais (entrevistas, depoimentos, conversações, sem contar sua expressiva atividade epistolar), e sobretudo em todo o seu legado existencial, Freire foi sempre um observador perspicaz da realidade social, atento a seus mais complexos movimentos, extensão e complexidade. O exercício de observação perspicaz, da realidade em movimento, os registros por ele anotados de tal observação não se faziam em nome de um mero exercício acadêmico de constatação da realidade, mas como eficazes instrumentos voltado à transformação substantiva das relações sociais, tanto na esfera econômica, quanto na esfera política quanto na esfera cultural neste horizonte, Freire se mostra organicamente afinado com o espírito da Tese 11, por Marx dirigida em relação Feuerbrach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”. A este respeito sinto-me remetido a uma de tantas entrevistas suas em que lhe foi perguntado como se sentia, ao ser reconhecido como o criador de um método de alfabetização. Respondeu que se sentia agradecido por este reconhecimento, mas que sua gula era bem maior do que isto, pois seu compromisso maior estava voltado à transformação da realidade social. De tal movimento faz parte seu zelo pela identificação dos mais distintos nexos presentes e atuantes na produção de nossa realidade. 

Nesse sentido, saltam à vista certos conceitos por ele trabalhados, seja de modo explícito, seja tacitamente, mas nem por isso, menos presentes. A começar pela categoria, ou melhor, pelo seu testemunho contínuo do exercício do Diálogo - com os parceiros, com os diferentes, sem deixar de considerar criticamente até os argumentos de correntes antagônicas (sem que isto resulte em parceria!

É pelo exercício incansável do diálogo, que também vamos exercitando nossa criticidade e nossa postura propositiva frente às mais diversas situações desafiadoras, o exercício contínuo do Diálogo se apresenta como condição necessária à superação de nossas próprias insuficiências (“Inacabamento”), bem como do despertar e do assumir de nossas próprias potencialidades (do âmbito pessoal ao comunitário) nossos limites de seres humanos não são enfrentados adequadamente, tampouco superados, no isolacionismo. Precisamos da experiência comunitária, grupal (núcleos, círculos, conselhos populares... não importa o nome), como condição para o reconhecimento dos nossos limites pessoais e coletivos, bem como para lidar com a superação de tais limites, ao longo de nossa existência. É por conseguinte, fundamental o exercício contínuo do diálogo para irmos tornando-nos Gente, protagonista da própria história, agentes de transformação social...

É, também, graças ao exercício contínuo do Diálogo, que nos tornamos aprendizes uns dos outros, seja no tocante a virtudes e dons, seja no tocante também ao aprendizado com os erros alheios e com os nossos próprios erros, caminho para o aprendizado incessante do exercício da autocrítica, outra expressão-chave no universo vocabular freireano, segundo o qual o exercício da própria crítica se inicia com o exercício da autocrítica: inútil esbravejar contra os malfeitos alheios se não sou capaz e não faço qualquer esforço de olhar e reconhecer do quanto que eu acuso dos outros se aloja em mim mesmo...
“Ação cultural”, “Educação libertadora”, “Diálogo”, “Consciência de inacabamento”, “Criticidade”, “Crítica-autocrítica”, “Curiosidade epistemológica”, “Autonomia”, “Inédito viável”, “Esperançar”, “Práxis”, “Utopia”, e tantas outras expressões-chave por ele criadas, por ele desenvolvidas ou por ele assumidas, não correspondem precisamente a meros conceitos acadêmicos: constituem, antes de tudo, experiências por ele assumidas, em seu legado. Isto, todavia, não cai do céu: é fruto de incessante processo formativo (pessoal e comunitário), a ser assumido pelos próprios protagonistas, bem como pelas forças sociais historicamente vocacionadas a irem transformando substantivamente, no chão do dia-a-dia, as relações sociais hegemônicas. Em busca da construção da permanente construção de um novo modo de produção, de consumo e de um novo modo de gestão societal, como alternativos à barbárie do Capitalismo, cujos efeitos vêm ameaçando, cada vez mais, a vida no planeta, bem como as condições mais elementares do processo de humanização. O atual momento, no Brasil e no mundo, se mostra um atestado inequívoco destas ameaças.
No caso do Brasil atual, nossa sociedade vem se mostrando profundamente vulnerável a esta onda de barbárie que ronda todo o mundo. São vastos e preocupantes os sinais de barbárie: a tendência à tudo resolver pelo argumento da força, a crença assustadora na resolução dos impasses, pela força das armas; a tenebrosa e crescente onda de classismo ou horror à causa dos pobres), de sexismo (cf. os alarmantes índice de feminicídio, as diversas formas de violência contra as mulheres), de racismo (o ódio  destilado contra povos indígenas e comunidades quilombolas), de homofobia, de xenofobia...O pior é que, não raro, tais práticas se acham ou se querem estranhamente fundadas em princípios evangélicos, retratando, em nome de Deus, a mais vil idolatria...
Bem sabemos que, tanto no Brasil, quanto na América Latina e no Caribe, quanto no mundo, tais manifestações tenebrosas, não nasceram do nada, mas como expressão e resultado de múltiplos e complexos fatores externos e internos. No caso do Brasil, já tivemos um período em que nossas organizações de base, atuando como agentes de transformação, colhiam sua força do profundo enraizamento nas comunidades, nos núcleos, nos círculos de cultura, nos conselhos populares, etc, período durante o qual tais riscos e tais ameaças estiveram sob controle, visto que graças à atuação coerente desses sujeitos (individuais e coletivos) parte expressiva da sociedade se via alimentada e empoderada de práticas e valores ais como: a solidariedade, o respeito à diversidade, a partilha, a disposição de diálogo, o testemunho profético, o exercício da crítica e da autocrítica, a desconfiança nos espaços estatais como caminho de transformação social, na direção almejada...
Também tal realidade vivenciada naquele período, a despeito de suas fragilidades, estava fundamentalmente ancorada na orgânica articulação de 3 campos de atuação: o campo organizativo, o campo formativo, e o campo de mobilização. Enquanto isto durou, significativas conquistas tiveram lugar. Abandonados ou fortemente reduzidos tais campos, no campo e nas periferias urbanas, nossas organizações de base, historicamente vocacionadas a ir criado condições de efetivas mudanças societais passaram a sofrer sucessivos e perigosos refluxos na falsa crença de que tais mudanças brotariam, não mais de um incessante processo de transformação social (a partir de um novo homem, de uma nova mulher), mas apenas pela mágica da ocupação de espaços governamentais.

É tempo de resistência! Ao mesmo tempo, não será também, tempo de retomarmos, no campo e na cidade, em novo estilo, práticas e concepções grávidas de alternatividade?

João pessoa, 12 de outubro de 2018.

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