O FIO EXISTENCIAL
DA PERSEVERANÇA NO COTIDIANO DO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO: breves notas, desde
uma experiência de busca
Alder Júlio
Ferreira Calado
Diante do ascenso
e expansão extraordinários de graves ocorrências de barbárie, que nos acometem,
sentimo-nos interpelados historicamente a repensar mais detidamente nossas
práticas cotidianas, no horizonte do processo de humanização. Um primeiro
aspecto que nos ajuda e nos mantém autovigiliantes, quanto a isto, é que
devemos ter presente que processo de humanização não constitui uma fatalidade,
um determinismo. Apresenta-se, antes, como uma possibilidade que somos
impulsionados a ir assegurando, dia após dia, face a outra possibilidade (esta
de feição tenebrosa): a possiblidade de desumanização. Sempre que a isto se
referem, autores como Paulo Freire, João Francisco de Souza e outros e outras,
fazem questão de assinalar este risco. É o que hoje andamos a experimentar, no
Brasil e no mundo. Optar pelo processo de humanização requer de nós, dia após
dia, que nos ponhamos a assegurar, a partir de nós mesmos, de nós mesmas, as
condições adequadas para a sua realização, sem o que seria inútil esperarmos
que o processo de humanização aconteça como num passe de mágica. Tudo vai
depender de como e do que nos alimentamos, no chão do dia-a-dia: de nutrientes
humanizadores ou de substâncias necrófilas, do que dão testemunho nossas
práticas diárias. Pensar a prática, portanto, resulta fundamental. Eis o
propósito dessas linhas.
Ocorre-nos refletir,
(também) hoje! e compartilhar o desafio do processo de humanização – sempre
atentos ao seu inverso: os riscos de desumanização -, desde o fio existencial
da perseverança. O processo de humanização - que não é um determinismo, pois
onde há o livre arbítrio, nossas escolhas acabam tornando-se uma possibilidade,
a ser reafirmada ou contrariada, a cada momento - se dá no chão do dia-a-dia, a
depender de nossas múltiplas escolhas, ou melhor: dos critérios que adotamos, e
da perseverança com que a ele nos consagramos (ou não).
Pela nossa própria
biografia, podemos atestar isto. Se não bastasse, tomemos biografias de figuras
que consideramos referências paradigmáticas. Sem pensar nossas práticas, a vida
se torna uma sucessão de momentos fragmentados e desprovidos de sentido
libertário. Pensar a prática resulta, pois, uma escolha de quem aposta na vida,
em busca de plenitude.
Podemos fazer este
exercício, por vários caminhos, tomando diversos fios existenciais. Aqui
escolhemos, hoje, fazê-lo por meio da perseverança, fio existencial que nos
permite consolidar nossas boas escolhas, grávidas de vida libertária, enquanto seres
biófilos que queremos ser, que queremos ir sendo. E como encarar a
perseverança: Vou começar a fazê-lo, em termos de uma tentativa, pelos critérios
do Movimento de Jesus que tanto prezamos.
A perseverança exercitada como um dom
Sem desconhecermos
a força do protagonismo pessoal e comunitário na produção e cultivo dos fios
existenciais, característicos do processo de humanização, para as pessoas e
comunidades que se querem seguidoras ou discípulas do Movimento de Jesus, os
fios existenciais – todos e cada um-, no horizonte do processo de humanização
sem deixarem de ser expressão de busca permanente, graças também ao nosso
protagonismo pessoal e comunitário, são tratados, antes de tudo, como dons da
Graça divina. Fonte de todo bem e de todo dom. Tal entendimento se acha
assentado em diversas passagens evangélicas e no conjunto das Sagradas
Escrituras. Atenhamo-nos aqui, de passagem, apenas a algumas situações,
episódios e indicações extraídos dos Evangelhos.
Um dos episódios
emblemáticos atinente ao dom da perseverança, se acha na parábola do semeador.
Suas primeiras tentativas resultaram frustradas, mas sua persistência em
continuar buscando a boa terra, ao final lhe sorri, assim também, na vida, os
discípulos e discípulas do movimento de Jesus, não devem desistir de semear o
bem, a justiça, a paz, a solidariedade, ainda quando as situações se achem as
mais improváveis: há de se seguir lutando, semeando, “pois quem procura, encontra.
”.
Importa atentar
para o sentido da parábola do semeador, tal como o próprio Jesus a explica aos
Seus discípulos e discípulas, em especial ao sentido da qualidade do terreno,
ou seja, da preparação ou não preparação de quem houve essa Palavra. Ao nos
colocarmos também, enquanto protagonistas de relações sociais alternativas à
barbárie que nos circunda, também nos sentimos implicados, nesse episódio, à
medida que descuidando-nos de nosso processo formativo contínuo, por vezes,
sucumbimos à superficialidade de nossa compreensão e de nossa ação de agentes
transformadores; outras vezes, por descumprirmos condições mínimas de práticas
organizativas fundamentais, deixamo-nos seduzir por atalhos...
Outro episódio
ilustrativo do dom da perseverança se acha na figura do pai, a esperar, contra
toda esperança, o retorno do filho mais jovem, de seus caminhos de aventuras
fracassadas. Mais do que esperou, “esperançou”, e, portanto, não foi
decepcionado. Neste episódio, também podemos sentir-nos implicados, à medida
que examinamos nossa “paciência histórica”, isto é, buscando vencer nossa
avidez de realizações imediatistas, de tal modo que, quando as coisas não se
dão no ritmo acelerado de nossa avidez, sedemos ao desanimo, sucumbindo ao
sentimento de impotência, ou seja, desistindo da luta...
Associado à oração
vem também aconselhada a necessidade de vigilância que não deixa de ser também
uma forma de perseverança. Aqui, sentimo-nos remetidos a permanente necessidade
de autovigilância ou, de modo mais expressivo, do contínuo exercício da mística
revolucionária, que nos permite uma constante auto avaliação e a renovação
contínua de nossos compromissos com o processo de libertação dos condenados da
“terra”.
Seja no âmbito
pessoal, seja no âmbito comunitário, o exercício da perseverança se apresenta
como condição indispensável ao sucesso de nossas iniciativas. Não basta apenas
semear, importa também cultivar a terra que abriga a semente, para que esta
germine, floresça e frutifique.
No tenebroso
período da Ditadura Civil-Militar, no Brasil, a resistência foi protagonizada
por diversos segmentos de nossa sociedade, entre os quais os artistas. Lembremo-nos,
a este respeito o exemplo das composições de autores como Chico Buarque. Em uma
de suas músicas – “Roda Viva” – ele nos alerta: “A gente vai contra a corrente
_ até não poder resistir _ na volta do barco é que sente _ o quanto deixou de
cumprir”. Nestes versos, também se faz presente a consciência sobre a
importância da perseverança. Nos desatinos e nos reverses históricos,
dificilmente a gente escapa de uma parcela de responsabilidade social. Mas, não
se trata de um convite à autoflagelação, inútil e estéreo, mas de renovarmos,
em novo estilo, nossos compromissos de coerência com o horizonte, os caminhos e
a postura com que nos entregamos a esta causa.
João Pessoa, 16 de
Outubro de 2018.
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