quarta-feira, 28 de novembro de 2018

ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ, NO PROCESSO DE (DES)HUMANIZAÇÃO: considerações em torno da busca de se fazer uso libertário dos sentidos, em tempos de obscurantismo


ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ, NO PROCESSO DE (DES)HUMANIZAÇÃO: considerações em torno da busca de se fazer uso libertário dos sentidos, em tempos de obscurantismo


Alder Júlio Ferreira Calado

“Têm boca, mas não falam; olhos têm, mas não vêem.
Têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram.
Têm mãos, mas não apalpam; pés têm, mas não andam; nem som algum sai da sua garganta.”
(Salmo 115, 5-7)

As linhas que seguem, têm o propósito de realimentar a reflexão crítica sobre o bom ou mau uso que fazemos dos nossos sentidos, aqui focando com especial ênfase os significados e o alcance da visão ou da cegueira, em tempos de obscurantismo. Comecemos por uma obviedade: ao longo de nossa história e da história de vida de cada uma e de cada um de nós, coabitam bem e mal, tal como acontece alternância entre noite e dia, luz e trevas, quente e frio... Eis uma característica de todo ser inacabado, e, por isto mesmo, historicamente vocacionado à Liberdade e, por conseguinte, a ir superando seus próprios limites, a partir do despertar e do contínuo exercício de suas potencialidades.
Nesse sentido ao revisitarmos a história recente ou menos recente damo-nos conta da alternância ou da convivência de nossas qualidades e dos nossos defeitos.
O fato de nos sentirmos historicamente chamados a desenvolver nossas potencialidades (pessoais e coletivas) não apaga, por si, o permanente risco de estarmos sujeitos a sucumbir a condições portadoras, não de humanização, mas de desumanização. Além das condições históricas e conjunturais, que constituem importante fator concorrente, convém lembrar também o concurso de fatores internos, na medida em que, para além dos fatores externos, aí também incidem fatores subjetivos, estes últimos especialmente associados ao nosso processo de formação contínua.
Por este processo de formação contínua passam diferentes elementos formativos, um dos quais tem a ver com o desenvolvimento de nossa capacidade perceptiva: ver melhor o que antes não percebíamos, ou mal percebíamos; ouvir falas e sons a que antes vivíamos surdos; sentir coisas, fatos, acontecimentos que antes nos passavam despercebidos... Cada um destes sentidos (e de outros mais), só se desenvolve dentro de um processo contínuo de formação, cujo os protagonistas e ambiência são nossas organizações de base, atuando como principais forças motrizes de nossa sociedade, partindo de uma atenção especial do desenvolvimento também das qualidades pessoais, e sempre num “continuum”.
Tal processo formativo, não se faz à parte do contexto histórico, mas profundamente inserido nos entrechoques da história, razão por que conjunturas há favoráveis, e outras desfavoráveis ou mesmo adversas, como esta em que nos encontramos. 
Querendo ou não, como seres inacabados, temos que conviver com a oscilação que nos tem acompanhado, ao longo da história, entre sensibilidade e insensibilidade: entre cegueira e lucidez; entre apurada audição e surdez; entre sabores e dissabores; entre a pronúncia de nossa palavra e sucumbir ao silenciamento.
Aqui me sinto encorajado a dizer algo sobre várias formas de cegueira e de insensibilidade frente à nossa realidade.
Mesmo tratando-se de cegueira interior, a trajetória histórica da humanidade, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito coletivo, se acha marcada, de fatos e acontecimentos trágicos, em diferentes tempos e lugares. No contexto atual, em escala internacional ou local, sentimo-nos rodeados de sinais espantosos, a este respeito: o discernimento ou a lucidez não parece ser uma de nossas características dominantes, na atualidade, para dizer o mínimo... isto afeta gravemente nosso processo de humanização, sob vários aspectos. As redes sociais, saudadas com entusiasmo, como uma das maravilhas tecnológicas do nosso tempo, ao tempo em que nos embriagam pelas suas potencialidades, também nos anestesiam, afetando em uma imensa massa de usuários, sua criticidade. Só para mencionarmos 2 casos emblemáticos, pensemos nos profundos estragos recentes causados pelo uso acrítico das redes sociais, nos episódios eleitorais dos Estados Unidos e do Brasil, antes, durante e depois do processo eleitoral. Entendemos que tais efeitos se devem mais à extrema vulnerabilidade da massa de usuários, do que aos seus manipuladores. Com efeito, as famigeradas “Fake News” produzem consequência quase nula na vida de cidadãs e cidadãos que não cessem de exercitar seu senso crítico.
O processo de humanização, se, quando e onde posto em prática, implica necessariamente, o exercício contínuo da crítica e da autocrítica. Estas se manifestam como condição essencial ao processo de humanização, inclusive na capacidade dos sujeitos cognoscentes lerem, interpretarem e interferirem adequadamente em sua realidade. A realidade social, é, como se sabe, profundamente complexa e extensa. Em vão, se busca compreendê-la, sem dotar-se continuamente de lentes adequadas a sua leitura e interpretação. A realidade social, se acha em movimento incessante, de tal modo que um acompanhamento eficaz de seus desdobramentos também requer que os sujeitos cognoscentes também se ponham em movimento. Isto não se dá espontaneamente, mas é obra de um longo e permanente processo formativo, sem o qual todas as condições se dão para monstruosos equívocos de repercussão gravíssima. Uma destas consequências aponta para o alto grau de reducionismo a que ficam sujeitos seus pretensos analistas, na medida em que, não tomando em conta inúmeras variáveis deste processo, acabam contentando-se com o que parece acontecer em determinado momento, e logo apressando-se em assumir como verdade, sem se atentar para tantos outros ângulos componentes desta mesma realidade. Tais pessoas se comportam como quem conclui, de forma apressada, o desfecho de um filme, baseando-se apenas em uma única cena de uma longa série... gravíssimo reducionismo se comete, aí, ao pretender-se enquadrar a realidade, que é um filme, que é dinâmica, apenas numa foto.

E, por força do hábito, tal proceder vai se estendendo às mais distintas situações do dia-a-dia, sendo reforçado pelos mecanismos de inércia, isto é, pela ausência de critérios consistentes. Basta conferir as redes sociais que também veiculam mensagens de pessoas da mesma corrente ou da parte de amigos ou parentes que se inter-alimentam, permanentemente. É assim que se vão formando as tais “convicções”, nos mais diferentes campos da vida: da política ao futebol; da religião às condições de trabalho, etc., etc.  Tais são as convicções, que viram dogmas: nenhuma chance para dúvidas. Aí já não tem lugar o saudável dito proverbial, segundo qual “De omnius dubtandum” (“deve-se duvidar de tudo”).

João Pessoa, 28 de novembro de 2018

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O MOVIMENTO DAS COMUNIDADES POPULARES HOMENAGEIA QUEM DOA A VIDA PELOS DESVALIDOS: notas acerca das homenagens prestadas pelo MCP ao Pe. João Geisen

O MOVIMENTO DAS COMUNIDADES POPULARES HOMENAGEIA QUEM DOA A VIDA PELOS DESVALIDOS: notas acerca das homenagens prestadas pelo MCP ao Pe. João Geisen


Alder Júlio Ferreira Calado

Neste final de semana, dias 25 e 26 de novembro próximo passados, o Movimento das Comunidades Populares (a caminho dos seus 50 anos, a celebrar em 2019) houve por bem prestar um tributo criativo a uma das figuras de reconhecida contribuição ao Movimento. Teve lugar em São Lourenço da Mata - PE, com expressiva participação de militantes do MCP vindos da maioria dos Estados do Nordeste, do Maranhão à Bahia, passando por Alagoas, Pernambuco, Paraíba, fazendo-o por meio de atividades criativas, bem conformes ao perfil das práticas e concepções deste Movimento cinquentenário. Ainda que sem ter feito anotações, e assumindo os riscos dos lapsos de memória (omissões, imprecisões, etc.), ouso compartilhar uma breve nota da leitura que pude fazer deste memorável acontecimento, especialmente no que diz respeito às experiências de memória vivenciadas, no domingo.

Os militantes – mulheres e homens – do MCP, em especial os atuantes no Nordeste decidiram, a justo título, prestar uma homenagem a um de seus militantes de referência, Pe. João Geisen, que, ao longo de décadas, atuou vivamente em diferentes atividades e iniciativas protagonizadas pelo MCP, desde os tempos em que este movimento atuava com outros nomes (MER – Movimento de Evangelização Rural; CTI – Corrente de Trabalhadores Independentes; MCL – Movimento de Comissão de Luta). Nascido num pequeno país europeu, Luxemburgo, Padre João Geisen chegou ao Brasil, em tempos de chumbo, e, fixando-se no Nordeste, como Missionário, cuidou de inserir-se no meio do povo e nele criar raízes, por meio do atual MCP. Em consequência de problemas pulmonar, veio a fazer sua grande viagem aos 72 anos, ainda recentemente.

Em seu vasto e reconhecido legado de profeta e pastor chamam a atenção a qualidade e a quantidade de iniciativas que ele inspirou e animou, com amplo reconhecimento do povo dos pobres: seu empenho em fazer prosperar os grandes eixos de atuação do MCP, durante essas décadas, seja no plano organizativo (efetiva contribuição na construção de centros de encontro e de organização dos “debaixo”, no âmbito das lutas por moradia, construção de creches em mutirão), seja no campo formativo e de comunicação (é sempre lembrado com ênfase, seu envolvimento pessoal nas atividades relativas ao Jornal A Voz Das Comunidades). Dentre as várias sedes regionais do MCP, inclusive aquela em que se deu este encontro de homenagem, também contou com a contribuição efetiva deste mesmo militante.

Esta programação de homenagem ao Padre João, iniciada no sábado 24/11 debatendo o tema “Religião Libertadora”, alcançou seu ápice nas atividades realizadas no domingo. Com a participação de cerca de 90 pessoas (pelos nomes que escutei, na apresentação, cheguei a contar 87), a equipe organizadora já estava a postos a acolher, com alegria, os/as que chegavam, oferecendo-lhes o café da manhã e, ao meio dia, um saboroso almoço preparado por Silvia e outras artesãs da culinária, ao preço de 5 reais! Todos acomodados no salão principal do centro de informação, por volta das nove horas, a coordenação deu as boas-vindas aos presentes, e, após indicar a programação do dia, solicitou que, por Estado, por cidade e por área, os presentes fossem se apresentando, dizendo nome e de onde vinham. Assim foi feito. De dezenas de participantes apresentados,   arrisco-me a mencionar alguns nomes: Aldo, Augusto, Celerino, Chico Malta, Cosme , Daniel, Dorinha, Edson, Flávio ,Francisquinha  ,  Gildo , Guilherme , Gustavo, Joao Carlos, Luiz Alves, Maria do Carmo, Miriam, Ronaldo, Sílvia, Socorro ,Tiago(MCP),Tiago(CPT), Zezé, Zélia... Estes e tantos outros participantes vinham de diferentes estados e cidades do Nordeste.
Cidades representadas:
Pernambuco: Recife, Olinda, Peixinhos, Vitória, Gravatá, Paulista, São Lourenço, Itambé, 
Bahia: Salvador, Feira de Santana
Alagoas: Maceió, Arapiraca
Paraíba: Carrapateira, Itabaiana, Santa Rita, João Pessoa
Maranhão.


          Fomos brindados, em seguida, por um alegre grupo infanto-juvenil do MCP, com belas coreografias, acompanhadas de músicas do Movimento e alusivas aos nossos principais segmentos das classes populares (povos indígenas, comunidades quilombolas, camponeses e operários),bem como  suas principais bandeiras de lutas. Em sua criativa linguagem artística, aquelas jovens e adolescentes conseguiram traduzir princípios e valores fundamentais ao MCP, tais como o compromisso com a causa libertadora,  dos desvalidos, a solidariedade, a partilha, a força do mutirão, cuidados com a saúde popular, moradia, etc.

Após essas belas coreografias, a Coordenação nos brindou com algumas frases do Pe. João, seguidas de comentários feitos pelos que o conheceram mais de perto. Já então, alguns militantes – mulheres e homens – cuidaram de prestar densos depoimentos sobre o legado profético do Pe.l João, a serviço das classes populares. Em encontro anterior, representantes do MCP se haviam reunido para destacarem uma lista em torno de uma dúzia mais de uma dúzia de lições que podem ser extraídas do denso legado de Pe. João, dentre as quais, com minhas palavras, me permito destacar apensa algumas:
- a de ter sido capaz de deixar sua terra, para viver com os empobrecidos do Nordeste brasileiro;
- sua coragem profética de manter-se em defesa e promoção do povo dos pobres, mesmo  tendo que preferir afastar-se da instituição eclesiástica, para seguir fiel ao Projeto do Reino de Deus e Sua justiça;
- em prol das causas do MCP, atuou como seu embaixador junto à gente do seu país (Luxemburgo).

E prosseguiam os edificantes depoimentos, por parte de mais de uma dezena de militantes de vários Estados, acerca dos feitos proféticos e solidários do Pe. João.

Após um almoço delicioso, servido  com fartura, tivemos um momento de pausa de espairecimento durante o qual as partilhas individuais seguiam soltas. Por volta das 14 horas, tivemos a retomada das atividades previstas na programação. A certa altura, João Carlos, um dos militantes de referência do Movimento, brindou-nos com uma breve leitura da atual conjuntura. Chamou-nos, não menos, a atenção pelo edificante testemunho que prestou acerca de sua aproximação com padre João. Contou-nos alguns traços marcantes de sua dolorosa experiência como vítima de um grave acidente de ônibus, do qual lhe resultou sério comprometimento dos movimentos. Causou-nos espécie ter-nos compartilhado sua cura completa, sem ter passado por cirurgia. Fato que ele atribui à interseção de figuras como D. Helder e Pe. João. Após o edificante testemunho de João Carlos, passamos a acompanhar a apresentação das “Colunas“ do MCP e dos “Setores” do Movimento. No primeiro momento, por meio de belos “banners”, tivemos a oportunidade de acompanhar os dez eixos que constituem as prioridades do MCP, bem como, em cada um deles, a presença e participação do Pe. João:

Vale a pena sublinhar a importância vital das dez colunas do MCP, principalmente tendo em vista a eficácia das ações concretas desenvolvidas em cada um desses dez eixos, ou colunas, como a ela se refere o Movimento:
- Sobrevivência Popular, Religião Libertadora, Família Comunitária, Escolas Comunitárias, Saúde Popular, Moradia Popular, Esporte Comunitário, Arte Popular, Lazer Alternativo, Infraestrutura Coletiva

Relevante, igualmente, é sublinhar a serviço de quem tais eixos, ou colunas, são desenvolvidos. Trata-se, aqui, de revisitar com compromisso e esperança, os principais componentes de nossas classes populares, chamadas de Setores, em função de quem o Movimento se coloca por inteiro, a saber:
- Povos indígenas, comunidades quilombolas, camponeses, operários.

Ainda antes do encerramento, tivemos conhecimento, por intermédio de Flávio e equipe, do livro, em fase de conclusão, que se está elaborando acerca da vida, dos trabalhos, e da contribuição do Pe. João Geisen, em sua trajetória como militante do MCP.

O Encontro encerra-se com a caminhada feita pelos participantes com seus “banners”, acompanhados pela pequena urna de cinzas do Pe. João (a serem depositadas na Capela do Instituto) desde o Centro de formação até ao recém-construído Instituto Pe. João, onde se fez uma prece final em homenagem a esta figura.

São Lourenço da Mata/ João Pessoa, 26/11/2018

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

DIREITOS HUMANOS – DO FORMALISMO À EFETIVIDADE: quais protagonistas?



DIREITOS HUMANOS – DO FORMALISMO À EFETIVIDADE: quais protagonistas?

Alder Júlio Ferreira Calado

Estamos a vivenciar a Semana da Consciência Negra, em mais uma edição. Em poucos dias, também, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estará completando 70 anos (mais precisamente, no dia 10 de dezembro vindouro). Esses dois momentos comemorativos nos propiciam uma reflexão crítica sobre seu significado e alcance. Tomemos, então, o Povo Negro como referência principal para um ensaio de balanço da efetividade ou não destas últimas sete décadas de vigência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre nós. Nesta oportunidade, cuidamos, nas linhas que seguem, de, partindo da experiência cotidiana das Negras e dos Negros de nosso País, impropriamente tratados como “minoria” – na verdade, ao lado das Mulheres, constituindo a grande maioria, e tratemos de examinar como isto se passa. Partamos, então, de perguntas tais como: tendo como fio condutor a experiência do cotidiano dos Negros e das Negras do nosso País, como lançar um olhar avaliativo do alcance concreto da Declaração Universal dos Direitos Humanos?
Numa simples e rápida passagem pelas estatísticas oficiais, tanto as de sentido positivo, quanto as que revelam dados sombrios, é bastante pra percebermos o lugar dos Negros e das Negras, em nossa sociedade, ao longo de nossa história. Antes, porém, fazemos questão de sublinhar importantes conquistas, nas últimas décadas. Aqui destacamos especialmente as de natureza cultural. É, sim, uma conquista apreciável o avanço na consciência identitária. Em comparação com décadas atrás, é visível o sentimento de autoestima das pessoas negras, em nosso dia-a-dia, o que pode ser atestado, de vários modos: no comportamento estético, no protagonismo no campo das artes, entre outros. São ainda dignas de nota tantas iniciativas culturais e artísticas animadas por protagonistas do povo Negro. Ao aplaudirmos tais conquistas, temos também consciência de seus limites. É o caso, por exemplo, de fortes insuficiências no campo da consciência de classe.

No terreno organizativo e formativo, as coisas parecem um tanto misturadas. De um lado, constatamos avanços no plano da escolarização, inclusive suas conquistas nos espaços universitários. Por outro lado, segue discutível uma certa aposta incondicional nas políticas ditas afirmativas. Esta via não deixa de apontar alguns resultados positivos, ao tempo em que também suscita não poucas dúvidas, principalmente por favorecer atitudes de acomodação ao modelo vigente de não poucos desses protagonistas – mulheres e homens. O desafio maior desse tipo de aposta reside na dificuldade de perceber os limites consideráveis de um processo formativo centrado na escolarização oficial, e não – como deveria ser – na força de suas organizações de base, em quem repousa o grande potencial transformador, ao lado e em articulação com outras organizações de base de nossa sociedade. Sem empoderamento da sociedade civil –cujos principais protagonistas são justamente tais organizações de base -, é, no mínimo, problemático pensar-se em autonomia para tocar um projeto alternativo de sociedade.

No tocante às estatísticas negativas, concernentes ao Povo Negro, elas se manifestam de forma diversa. Tratemos de relembrar algumas delas, em forma de perguntas:
- Nas sempre chocantes estatísticas de assassinatos, no Brasil (fala-se em mais de 62.000 por ano...), que lugar é reservado aos Negros e Negras – mulheres, jovens, integrantes da comunidade LGBT...)?
- No assombroso índice de violências diárias praticadas contra as mulheres, sob as mais diversas manifestações, quantas são cometidas contra as Mulheres Negras? No desumano sistema prisional brasileiro, quem forma a maioria dos encarcerados?
- Quantos e quantas desta mesma população aguardam, há anos, julgamentos?
- Sobretudo comparando-se com as “prisões” das figuras privilegiadas do mundo empresarial e do mundo político, quais são as condições concretas diariamente amargadas pelos encarcerados e encarceradas do Povo Negro?
- No âmbito da economia, quem são os primeiros atingidos em épocas de crises, sobretudo comparando-se com os ganhos escandalosos do sistema financeiro, seja em tempos de crise, seja em tempos “normais”?
- Quando ataca o desemprego, com mais violência, que segmentos da população são os primeiros e mais atingidos?
- Quem são os mais rejeitados da população, senão mulheres e Jovens Negros, na ocupação de vagas disponibilizadas em concursos e outras atividades de emprego?
- No campo da escolarização, quem ocupa os índices mais elevados de analfabetismo, de acesso e de permanência na escola?
- Ainda que fazendo o mesmo trabalho, que salários são atribuídos a Negros (especialmente mulheres) e a não-Negros?
- Nos postos de direção ou de chefia, e até mesmo entre os atores e atrizes protagonistas de novelas ou séries, têm lugar significativo Negros e Negras?
- Nos espaços religiosas dominantes, qual a proporção ocupada por Negros e Negras em cargos de referência?

A estas questões vocês podem acrescentar tantas outras.
Embora tratando aqui apenas de um segmento da população brasileira, a situação não se altera substancialmente quando contemplados tantos outros extratos da população: povos indígenas, camponeses, operários, etc. Este quadro se apresenta como fundamental para uma avaliação crítica da efetividade, não apenas da Declaração Universal dos Direitos Humanos como também da Constituição e demais leis vigentes. Uma coisa é constatar tais direitos no papel, bem outra é observa-las no chão do dia-a-dia dos “debaixo”. Os direitos legalmente estabelecidos não deixam de ser uma conquista geral, mas sua real efetividade contempla a parcela privilegiada da população (grandes empresários, lideranças políticas e de outras instâncias governamentais...).

Eis mais um desafio de monta para a nossa sociedade civil, em especial suas organizações de base, chamadas a despertar sua consciência e sua atitude de protagonistas frente a este estado de coisas...

João Pessoa, 21 de novembro de 2018.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A MENTIRA COMO COMBUSTÍVEL DE PODER, NAS SOCIEDADES DE CLASSES: o lugar dos mecanismos ideológicos nas relações societais


A MENTIRA COMO COMBUSTÍVEL DE PODER, NAS SOCIEDADES DE CLASSES: o lugar dos mecanismos ideológicos nas relações societais

Alder Júlio Ferreira Calado

A mentira, como recurso de acesso, manutenção e ampliação de poder, acompanha a trajetória humana, desde priscas eras. O ser humano é o único animal a dela usar e abusar, como refinada estratégia de poder. Outros animais recorrem à finta, a subterfúgios ou camuflagem, como estratégia de sobrevivência, mas nunca na escala ou com a sofisticação empregadas pelos humanos. Passar-se pelo que não se é, aparentar-se predicado que não se tem - eis a que leva os humanos a usarem e abusarem da mentira, sob suas mais diversas formas e manifestações. Retenho vivo o alerta, a este respeito, feito por um ex-presidente, em uma de suas declarações. Dizia mais ou menos assim: o problema da mentira é que ela, desde a primeira expressa, acaba nos fazendo reféns, para toda a vida. Ao dizermos uma mentira, pela primeira vez, e ao esbarrarmos em cobranças, sentimos "necessidade" de inventar uma segunda, para justificarmos a primeira. Depois, uma terceira, uma quarta, e por aí segue... se no dia-a-dia de nossas relações, já constatamos o tamanho dos estragos produzidos pela cultura da mentira, o quê dizer em relação a toda uma complexa e vasta teia de relações societais? Entre os humanos e no âmbito das relações macro-sociais, este processo alcança seu ápice nas sociedades de classes. A classe dominante só pode chegar ao poder, valendo-se de um sistema de mentiras, combinadas com o emprego da violência. E não apenas, para aceder ao poder: também, e até mais, para mantê-lo e ampliá-lo. É aí que tem lugar decisivo a armação de todo um sistema ideológico, cujo objetivo central é o de alimentar constantemente o conjunto da sociedade com toda sorte de mentira, nas mais diversas esferas da realidade. As linhas que seguem, buscam ressoar, brevemente, sobre tais mecanismos de dominação.

Malgrado a mentira esteja associada à condição humana, como marca de seu inacabamento, a mentira alcança elevado grau de sofisticação nas sociedades de classes, em que a classe dominante sente-se "obrigada" a recorrer sistematicamente à mentira, primeiro, para chegar ao poder; em seguida, para mantê-lo, a todo custo, e, mais ainda, para ampliá-lo, ainda que tenha que combinar a mentira com outros recursos tais como a violência institucionalizada. E tudo fazendo, "em nome do povo, em nome da nação...".

Cuidamos, em seguida, de ilustrar didaticamente alguns casos de nossa atualidade, recorrendo a exemplos em várias esferas da realidade, ao mesmo tempo em que lembramos que sua eficácia maior reside na articulação, na combinação de tal recurso nas diversas esferas, mas do que em qualquer delas, tomadas em separado.
Na esfera da produção, por exemplo, o desafio da classe dominante é o de passar a impressão para o conjunto dos membros de determinada sociedade, de que o atendimento devido as várias necessidades e aspirações daquela sociedade é o seu real objetivo, enquanto, por sua vez, esta classe dominante foca suas estratégias de ação na busca sistemática de manter e ampliar privilégios de classe, à custa da sonegação e da retirada de direitos da grande maioria. Nisto são mestras as grandes empresas transnacionais, que operam nos 4 cantos do Planeta, sempre à cata de manter e aumentar seu processo de acumulação, à custa e em detrimento dos direitos sociais mais elementares. Ao atuarem nos diversos setores econômicos – no campo das finanças, na produção de bens estratégicos, de bens duráveis, de bens de consumo;s direitos sociais mais elementares. Ao atuarem nos diversos setores econ no setor agrário, desde a exploração extrativista (de minerais, de vegetais, de animais), nos esquemas estruturantes da agricultura e da pecuária, no setor do comércio e dos serviços; na esfera cultural e até religiosa – as transnacionais e as grandes empresas nacionais não hesitam em recorrer sistematicamente ao Estado, como suporte fundamental, na implementação de suas respectivas políticas econômicas. Sempre combinando poderosos mecanismos ideológicos e recorrendo, sempre que “necessário”, a violência, tratam de perseguir e alcançar seus interesses acumulativos, não importando a forma como os obtêm. Para elas, embora digam o contrário, o Estado lhes é essencial, ainda que chamando-o de “mínimo”, que na verdade, por vezes, corresponde ao máximo, à medida que se utilizam das mais distintas instâncias do Estado, apenas no que exclusivamente lhes interessa.

Para tanto, recorrem a múltiplos mecanismos ideológicos, dentre os quais o marketing e a propaganda se revelam exemplos bem ilustrativos. Por meio da mídia comercial e das redes sociais, cuidam de “enfeitar o pavão” ou de “dourar a pílula”. Basta que nos atenhamos às fortunas que são gastas diariamente, no uso de propagandas enganosas, que, de tanto circularem aos olhos e ouvidos de uma enorme massa acrítica, acabam convertendo mentiras em verdades, males em bens, doenças vendidas como saúde, etc, etc, etc.
No plano da Política os mecanismos ideológicos, usados e abusados, revelam-se igualmente eficazes. A recente campanha eleitoral constitui apenas a ponta deste enorme “Iceberg”. As famigeradas “Fake News” constituem apenas uma pequena mostra. No Brasil e Alhures, é a classe dominante quem dita as regras, estando ou não seus protagonistas pessoalmente à frente deste processo. Não raro, grandes financistas, banqueiros, controladores de transnacionais, etc, nem precisam dar-se ao trabalho de se candidatarem: contam de sobra com seus representantes, ainda que a enorme maioria deles se eleja em nome do povo...
Na esfera cultural, a esperteza vulpina do capitalismo tem sido igualmente ou ainda mais exitosa, à medida que, graças a um crescente contingente de massas mantidas acriticamente, consegue iludir ainda mais facilmente a multidões destituídas de um processo de formação contínua que, de massa, as torne povo consciente. Ainda nesta esfera cultural, convém realçar os efeitos deletérios provocados pelo fundamentalismo religioso, a medida que suas lideranças de referência manipulam abertamente e “em nome de Deus” controlam as consciências de seus fiéis.
Uma perspectiva de superação deste trágico quadro, tem lugar fundamental o protagonismo daquelas organizações sociais de base, comprometidas com a retomada, em novo estilo, dos trabalhos de base, na e com a base, seja no campo organizativa, seja no campo formativo, seja no campo das ações mais explicitas.

João Pessoa, 19 de novembro de 2018.







sábado, 17 de novembro de 2018

"PELO FRUTO SE CONHECE A ÁRVORE": que "árvore" produz as migrações forçadas?


"PELO FRUTO SE CONHECE A ÁRVORE": que "árvore" produz as migrações forçadas?

Alder Júlio Ferreira Calado

Uma das chagas sociais mais graves da atualidade expressa-se na figura das migrações forçadas. Estas vêm se multiplicando, por toda parte, como raras vezes, na história recente. São centenas de milhares de humanos - mulheres, homens, crianças, pessoas idosas... - que se sentem compelidas a sobreviverem, deixando suas casas, seus parentes, seus pertences, em busca de outras terras, enfrentando os piores entraves e adversidades - fome, frio, perseguições, ameaças, riscos de toda sorte, tendo que aventurar-se por caminhos perigosos, pelos mares, em embarcações precaríssimas, nos diversos continentes. Quase diariamente, divulgam-se notícias de tragédias, em várias partes do mundo. O Mar Mediterrâneo, por exemplo, passa a ser conhecido também como o maior cemitério a céu aberto do mundo. Ainda repercutem, pungentes, as palavras proféticas do Bispo de Roma, ao visitar (mais de uma vez) esses irmãos migrantes forçados. Isto se deu em Lampedusa (Itália), em 07 de julho de 2013, a menos de cinco meses após o Papa Francisco ter assumido suas funções de Bispo de Roma (https://www.youtube.com/watch?v=JV1TXm_r5M0).

Nesta ocasião da visita aos migrantes forçados acolhidos em Lampedusa, o Papa Francisco se achava particularmente comovido com aquelas gentes, vindas de vários países, em busca de sobreviverem em terras europeias. Dirigiu-lhes, então, palavras de profunda solidariedade, ao tempo em que lançava graves críticas contra os protagonistas do que chamou de “Globalização da indiferença”, denunciando a viva voz a grave responsabilidade dos controladores de um sistema cruel, que leva à morte milhares de seres humanos, mundo a fora. E não ficou apenas nesta visita. Deslocou-se também outra vezes (em Lesbos, nos Estados Unidos...).

O fenômeno da migração, como se sabe, acompanha o processo histórico dos humanos. A condição de nômade integra nossa trajetória humana, desde longa data. Em certa medida, todos nos sentimos migrantes, de algum modo. Isto tem a ver também com o gosto pela aventura do desconhecido, de que também temos sede. Sentimo-nos, por vezes, fascinados pelo testemunho de migrantes e peregrinos. Deles e delas nos fala forte um de seus lemas: ”Omnia mea mecum porto.” (“tudo que é meu trago comigo. ”). Algo que, independentemente de nossas opções pela mesma escolha, nos toca profundamente como uma marca própria de um ser livre. Migração, por conseguinte, se e quando resultante de uma escolha de vida só pode merecer o nosso apoio e entusiasmo. Mas, não é das migrações voluntárias que aqui tratamos. Ocupamo-nos, nas linhas que seguem, de entender as razões mais fundas dessas ondas crescentes de migrações forçadas, que, nada têm a ver com a vontade de quem migra.
Eis que, nas últimas décadas, sucessivas ondas de migrações forçadas se expandem, nos vários continentes, de modo mais acentuado desde o continente africano e asiático, em direção à Europa, e desde América Central, em direção aos Estados Unidos. 
O que, então, compele a centenas de milhares de seres humanos a deixarem suas respectivas terras, em busca do desconhecido? Um exame detido sobre as condições de vida, materiais e imateriais, dos países e das populações donde partem tais migrantes forçados, revela os escandalosos índices de miséria, de desigualdade sociais, de violência social, de belicismo, de absoluta falta de condições de vida digna para tais populações. Pior ainda é constatar que, na base desta miséria, se acham mecanismos estruturais de enriquecimento crescente de setores dominantes locais e externos. No caso dos setores dominantes e externos, os principais grupos privilegiados, vem da chamada civilização ocidental e cristã. A expansão acelerada e voraz do capitalismo pelos países periféricos dos vários continentes, tem envolvido uma multiplicidade de estratégias, seja na esfera da produção, seja na esfera política, seja na esfera cultural. Mais do que identificar, numa única destas esferas, a eficácia pernóstica de exploração, de dominação e de marginalização em massa, presentes nos países periféricos, importa perceber sua dinâmica combinação, inclusive por meio da expansão do fundamentalismo religioso. Há algumas décadas, refletindo tal processo, de incidência mais forte no continente americano, o autor Délcio Monteiro de Lima escreveu um livro, cujo título não vinha à toa: Os demônios descem do norte (Editora Francisco Alves, 1987) cf. comentário in: http://fotossintetizador.blogspot.com/2011/12/sobre-o-livro-os-demonios-descem-do.html

Faz-se atual a denúncia lançada, ainda nos anos 70, da existência de “ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres.” Nos países periféricos do mundo, o Capitalismo atinge seu mais alto grau de perversidade. No centro de suas operações, estão as grandes corporações transnacionais, a atuarem em todos os setores da economia, (haja vista sua extrema lucratividade no campo da indústria de armamentos, por exemplo) inclusive no campo da Cultura e até das religiões.... Tal é sua avidez de lucro, que não hesitam em degradar cada vez mais as condições socioambientais, nas mais variadas partes do mundo. E já não se contentam com atuarem apenas na esfera da produção: também atuam numa variada gama de setores, de modo fortemente articulado, isto é, cuidam de atuar em conjunto com os Estados, induzindo-os a escancararem suas portas às suas mais destrutivas políticas econômicas. Não é por acaso o crescente hiato ou o crescente abismo que se abre entre governos e respectivas populações. Em profunda crise se acham as democracias representativas, mundo a fora.

E tudo isto vem sucedendo, num contexto também de crises daquelas forças e organizações de base da sociedade civil, portadoras de reconhecido potencial trasnformador. Sem tais forças, resulta em vão a luta por efetivas mudanças. Daí a urgência de se reorganizarem tais forças da sociedade civil, retomando, em novo estilo, seu processo organizativo e seu processo formativo CONTÍNUO, sem o que não há muito o que esperar de superação desses impasses societais, inclusive no que diz respeito aos fatores centrais provocadores das migrações forçadas.

João Pessoa, 17 de novembro de 2018

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

ENTREVISTA CONCEDIDA POR ALDER JÚLIO F. CALADO AO JORNAL “CORREIO DA PARAÍBA”, DE 05/04/2015


ROTEIRO DE ENTREVISTA CONCEDIDA POR ALDER JÚLIO F. CALADO AO JORNAL “CORREIO DA PARAÍBA”, DE 05/04/2015

- Qual o significado da Páscoa?
Na tradição judeu-cristã, o termo “Pàscoa” vem associado à experiência de passagem libertadora, portanto de uma situação de escravidão para a liberdade. Um povo (Israel)( que vivia oprimido por faraó do Egito, graças à com-paixão e intervenção de seu Deus, consegue libertar-se das garras do opressor. No Cristianismo, Jesus torna-se a grande referência de vitória sobre a morte, através de sua Ressurreição, que dá sentido e razão à fé cristã.

- É um momento de reflexão que exige do homem mais fé do que razão?
Para os cristãos, a Páscoa constitui a principal sustentação de sua fé, expressa pela Ressurreição de Jesus Cristo. Ao fortalecer a fé dos cristãos, a experiência da Páscoa não dispensa a razão. Antes, fortalece a complementaridade desejável entre fé e razão, articulação expressa na conhecida fórmula “Scientia ac fides”.

- Como surgiu a Páscoa?
Na tradição judeu-cristã, a Páscoa vem alimentada tanto pelas narrativas do Antigo Testamento, em especial pelo Livro do Êxodo, como pelos relatos apresentados pelo Novo Testamento. Em ambos os casos, o foco é o processo de libertação conduzido por Deus em prol do seu Povo, e com a participação deste. No caso do Cristianismo, a Páscoa protagonizada pelo Crucificado e Ressuscitado presente na história, constiui a principal razão de ser da fé cristã.


- Ela é um significado universal, outras religiões também comemoram a Páscoa ou é restrita aos judeus e cristãos?
Ainda que a Páscoa constitua uma experiência mais diretamente ligada ao povo judeu-cristão, especialmente no caso do Cristianismo, a proposta se dirige a toda a humanidade, a todos os povos. Jesus veio para que todos tenham a vida, e vida em abundância. No Cristianismo, o “Novo Israel” corresponde a um chamamento a todos os povos, sem exclusão. O Papa Francisco não tem cessado de apontar nessa direção.

- Que mensagem o cristão não pode esquecer nesse período?
Celebrar a Páscoa implica, mais que dizer-se cristão ou mesmo adorar a Jesus, entrar no Seu caminho: comprometer-se, dia após dia, com as grandes causas da humanidade, na perspectiva da busca incessante do Reino de Deus e Sua Justiça. Isto requer um incessante processo de conversão, de “Metanóia”, tanto de caráter pessoal quanto de ordem comunitária e societária



- Só amor de Deus pelo homem explica o sacrifício de Cristo?
Tal foi o Amor de Deus pela humanidade, que não hesitou em tornar-se carne, em Jesus, filho de Maria. Máximo foi o gesto de Jesus, de fidelidade ao Projeto do Reinado de Deus, de justiça, de amor e de paz, pois não pode haver maior prova de amor do que a de quem dá a vida pelos irmãos.  Tal entrega reforça a confiança e a aposta daqueles e daquelas que se põem a caminho, nas pegadas de Jesus, como discípulos e discípulas missionários.

- Como o senhor vê esse distanciamento entre a vida, no dia a dia, de competição de agressões à ética, e a ideia do amor ao próximo deixada como mensagem de Cristo?
Ao longo da história, não apenas hoje, a caminhada dos cristãos – como, de resto, a dos humanos - se tem dado e se vem dando entre luzes e sombras, entre rosas e espinhos, entre avanços espetaculares e retrocessos tenebrosos. Isto se deve a uma confluência de fatores, entre os quais, a coexistência em nós de grandes potencialidades e assustadores limites. Não obstante nossos limites, somos chamados a construir uma nova sociedade, alternativa à barbárie do sistema capitalista e modelos totalitários que atentam contra a dignidade do Planeta, dos humanos e de toda a comunidade dos viventes.

- O sacrifício de Cristo, a mensagem dele são exemplos de humildade e obediência, de superação e de perdão. No entanto, o homem, talvez pelo livre arbítrio, ou ignora isso ou não se conforma com seu papel na vida ou não aceita se submeter?

O Projeto de Jesus – a partir mesmo de Sua práticas, de Seus caminhos – é de nos chamar incessantemente para a Liberdade. Ele nos chama, mas nós atendemos ou não ao Seu chamado. Ele não se impõe. Para quantos têm a graça de responder positivamente ao Seu chamado, Seu Projeto se revela invariavelmente como de justiça, de misericórdia, de amor e de paz com a Natureza, entre os humanos e ao interno de cada um, de cada uma. Para outros, outras, que se negam a atender ao Seu chamado, os sinais não são nada animadores. Mesmo assim, Ele não desiste de ninguém, mantém sempre abertas as portas para uma conversão de nossa parte.

- Há um lado profano na Páscoa, com encenações populares da morte de Judas e restrições alimentícias. Não lhe parece uma contradição?
Na história do Cristianismo, a despeito do núcleo da mensagem do Evangelho centrado no essencial (as experiências de justiça, de misericórdia, de amor e de paz), tem havido uma atração forte pelo lado religioso, pelo lado simbólico, conforme os apelos culturais. Em dose apropriada, isto parece saudável. Ruim é quando o provisório vira o definitivo; quando o acessório toma o lugar central...


- Como a ressurreição de Cristo, comemorada no domingo pascoal, pode ser interpretada hoje?
O fato de a gente comemorar o aniversário de alguém num dia determinado, não implica que sua vida se restrinja àquele dia. Pela tradição católica, a festa de Páscoa incide no Domingo da Ressurreição. O importante é manter-nos vigilantes ao sentido de Páscoa como um processo, a ser experienciado pelos cristãos e cristãs todos os dias, buscando fazer parte ativa do movimento de Jesus, seja nos espaços eclesiais, seja nos embates por uma Cidadania ativa.


- Como o senhor vê o comércio extremo do período, que leva a uma situação em que o ovo de chocolate é mais compreendido do que a morte e ressurreição de Cristo?
Uma coisa é a fé, outra é a religião. Enquanto a primeira discerne o essencial da mensagem da Páscoa – viver como ressuscitados -, a religião se faz mais vulnerável a valores de mercado, por vezes até contrários ao núcleo da mensagem evangélica. Isto me faz lembrar um conhecido mote, glosado pela dupla de repentista, os Nonatos: “No comércio da fé, Jesus não passa / De um produto vendido a prestação”...


- A morte e ressurreição de Cristo ainda hoje são temas muito profundos na cultura popular. O que explica a perpetuação no tempo de um sofrimento dessa magnitude?
O exemplo de Jesus Cristo é um exemplo de solidariedade, de amor ao próximo, no entanto, o homem, quer por razões econômicas, quer por ações políticas, se afasta do mandamento de amar ou próximo. Para onde caminhamos?

As massas populares, mergulhadas em seu severino cotidiano, vendo-se abandonadas por quem mais delas deveria cuidar, apelam para a sua fé genuína. Vêem-se a si mesmas no sofrimento do Crucificado. Vivendo, por vezes, como ovelhas sem pastor, apelam para o verdadeiro Pastor, que deu a Sua vida pelos crucificados de todos os tempos. Quem é fiel ao sentido da Páscoa, adere ao movimento cristão de fazer “descer os pobres da cruz”: a cruz das injustiças, a cruz das desigualdades brutais, a cruz do feminicídio, a cruz da homofobia, a cruz do racismo, a cruz da corrupção...


- A verdade prevalecerá independentemente de riqueza, guerra e poder?

É o que nos é proposto por Jesus; é o que o sentido de Páscoa nos propõe, menos como um dogma, e mais como um convite, uma instigação a nós, cristãos e cristãs, junto com os demais humanos. Isto não se dará sem nossa abertura e acolhida ao convite. Ele não vai impor essa verdade, Ele a propõe a todos e a cada um, cada uma de nós. A força do amor é sempre maior do que a força da morte. Em última instância, prevalece a verdade. A mentira não terá a última palavra.


- O que mais dificulta ao homem o real entendimento da mensagem de Cristo?
Entre tantos obstáculos aí presentes, além do inacbamento do ser humano e seus limites, também se inclui o fato de que o seguimento de Jesus não demanda apenas um simples ato de razão, de crença intelectual. Há de se articular esta dimensão a outras, tais como a adesão afetiva, o compromisso da vontade e o crer com as mãos (dimensão práxica). Isto requer contínua vigilância e oração. “Vigiai e orai...”. O agir nessa direção, embora passe também pela nossa participação efetiva, é um dom de Deus: “Não foram vocês que Me escolheram. Fui Eu que os escolhi, para que vão e dêem fruto, e o seu fruto permaneça.” (Jo 15,16).


- Como o senhor vê a abertura que a Igreja católica está buscando desde que o papa Francisco assumiu o pontificado?

O Papa Francisco, graças ao seu testemunho profético e de verdadeiro pastor, tem ajudado enormemente a restituir a esperança a tanta gente que se achava abandonada por parte da alta hierarquia eclesiástica. Ao retomar com força o espírito renovador e os ensinamentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), das Conferências de Medellín (1968), Puebla (1979), mais recentemente, a de Aparecida, da qual ele foi importante protagonista, o Bispo de Roma vem contribuindo densamente pela renovação evangélica da Igreja Católica. Sempre fiel ao conhecido apelo “Ecclesia semper renovanda est”, na perspectiva contínua de sua refontização, de sua fidelidade ao Evangelho, e, portanto, à centralidade dos pobres e sofredores como alvo prioritário dos cuidados da Igreja, sua disposição de dialogar com o mundo, sua abertura ecumênica, sua disposição de reformar as estruturas da Igreja, o Papa vem tendo uma crescente acolhida, não apenas de católicos, mas também de outras Igrejas cristãs, de várias expressões religiosas e de muita gente sem confissão definida. Um sinal dos tempos!
 
Essa abertura que aceita pessoas com opção sexual homoafetiva e a um segundo casamento já encontra resistência nos mais conservadores. É uma evolução natural ou uma conquista de minorias?

As grandes mudanças – ao interno das igrejas ou no âmbito macrossocial – são obra também do que Dom Helder chamava de “minorias abraâmicas” cuja ação persistente acaba contagiando positivamente tantos outros setores. Não se trata de mudanças repentinas. Demandam décadas, às vezes, mas delas já podemos perceber sinais alentadores. Em outubro próximo, acontecerá mais uma assembléia de bispos, em Roma, para continuar tratando de desafios das relações familiares, inclusiv dos mencionados na pergunta.


- É possível a Igreja superar seus dogmas em nome desse amor, cuja expressão maior pode ser encontrada da Páscoa?

Na mensagem evangélica, prevalece o princípio do Amor/da Misericórdia. E este mandamento está acima de posições dogmáticas, doutrinárias. A Páscoa nos chama à conversão, movida pelo Amor e pela Misericórdia. Eis qual é a cláusula pétrea do Evangelho: o exercício do Amor e da Misericórdia, em especial com os pobres e com os pecadores. Jesus não veio para quem se crê são, veio salvar os pecadores, veio libertar os cativos, apelando para a contribuição destes.

- Como um cientista social, como o senhor vê a religião?
Ao longo da história, há registros de povos de todas as idades e de todos os lugares que expressavam e expressam suas convicções – filosóficas, culturais – das mais variadas formas. Como ser humano, não sinto qualquer problema em expressar, também como sociólogo, minhas convicções religiosas ou, mais precisamente, não sinto qualquer embaraço de expressar as razões daquilo em que creio. Ao contrário, sinto-me mais humanizado e disposto a ajudar outras pessoas a encontrarem seu caminho de realização, não importando o nome que atribuam à Força motriz que as conduz no processo de humanização e de convivência amorosa com a Mãe-Natureza e toda a comunidade de viventes.

- Ciência e religião podem caminhar juntas?
Não, para quem faz da própria ciência uma religião, a sua. Sim, para quem entende que a própria ciência parte do senso comum para suas elaborações ulteriores. Ao buscar superar o senso comum, não está isenta de incorrer, por vezes, em falácias. Por outro lado, importa saber lidar adequadamente com os fenômenos religiosos, sem a pretensão de “prová-los”, isto é, tentando (em vão) transformá-los em objetos de ciência. Com os devidos cuidados, de parte a parte, é, sim, possível – e desejável - uma convivência, não apenas pacífica, mas igualmente fecunda.



- Onde ciência e religião divergem e para onde convergem?


terça-feira, 13 de novembro de 2018

POR UMA MÍSTICA REVOLUCIONÁRIA – O TESTEMUNHO DE JESUS DE NAZARÉ Notas a partir do cap. XI “Crente fiel” – do livro de José Antonio Pagola. Jesus, aproximação histórica


POR UMA MÍSTICA REVOLUCIONÁRIA – O TESTEMUNHO DE JESUS DE
NAZARÉ
Notas a partir do cap. XI “Crente fiel” – do livro de José Antonio Pagola. Jesus, aproximação histórica

Alder Júlio Ferreira Calado


“No comércio da fé, Jesus não passa / De um produto vendido a prestação.”
(Mote glosado por Raimundo Nonato e NonatoCosta, cf.
https://www.youtube.com/watch?v=-PZqA44XhmM )

“Este povo me louva com os lábios, mas longe de Mim está seu coração.” (Mt 15,8)
Quem quer que, como discípula ou discípulo do Movimento de Jesus, se dê ao trabalho criterioso e honesto – respondendo, por conseguinte, ao que o Sopro Divino (cf. Mc 4, 9) tem a falar às nossas consciências – de examinar o conjunto dos Evangelhos, o núcleo por excelência da fé cristã, e passar a avaliar as práticas rotineiras das instituições eclesiásticas, no mundo, salvo raras exceções, há de constatar gravíssimas contradições e antagonismos. Em não poucos casos, vai constatar práticas e concepções, não apenas distanciadas deste Núcleo de nossa fé, mas em evidente contradição. Tomemos como ilustrações alguns exemplos, em termos de questionamentos:
- Tem base evangélica o desenfreado ritualismo, tantas vezes, fonte de desvairado fanatismo de quem, atrevendo-se a falar em nome de Deus, se acumplicia a uma cultura de morte:
-- Tem base evangélica a crescente tendência de um televangelismo, mantido a peso de ouro, com contribuições de grupos de magnatas, quando se percebe, na leitura orante e atenta dos Evangelhos, a evidente opção de Jesus pelos meios mais pobres e mais simples e anunciar e inaugurar entre nós o Reino de Deus?
Expressão de uma complexa e extensa teia de relações, o coexistir também se apresenta mergulhado em contradições, abrigando, querendo ou não, a permanente tensão entre o bem e o mal, que se alojam em cada um, em cada uma de nós. O mal também comporta sua face de mistério. Jesus de Nazaré foi, algumas vezes, alvo desta tensão (cf. Mt 4, 1-11). As chamadas tentações por Ele enfrentadas, no deserto, constituem um fato ilustrativo deste mistério. Hoje, não poderia ser diferente. Quando nos pomos a lançar um olhar crítico, tomando como referência e baliza, o conjunto das narrativas conhecidas como Evangelhos, e buscamos avaliar, por exemplo, o que se passa hoje nos templos das igrejas que se dizem cristãs, ao lado de práticas saudáveis, nos defrontamos com tantas outras, majoritárias, que pouco ou nada nos remetem ao Projeto do Deus de Jesus de Nazaré, tal o grau de insanidades e perversidades aí em circulação. Tais constatações nos interpelam ainda mais, quando tentamos buscar identificar, como o faz o autor do capítulo ora comentado elementos mais característicos da Espiritualidade ou da Mística testemunhada por Jesus de Nazaré, por meio de uma leitura atenta das fontes evangélicas.
Conquanto mais frequentemente situada no campo das abordagens teológicas, a categoria “Mística” também pode ser trabalhada, em uma perspectiva inter/transdisciplinar, até porque pode ser tomada também numa acepção laical (cf. reflexão feita acessando-se o link: https://www.youtube.com/watch?v=9qP7xhrKpkg).  Aqui optamos por uma abordagem inter/transdisciplinar, ao incursionarmos pela Mística, assumida por um olhar revolucionário, isto é, por uma interpretação do seu potencial transformador, seja do ponto de vista societal, comunitário ou do ponto de vista pessoal. Aqui, estamos entendendo “Mística” como uma energia interior que inspira, nutre e sustenta práticas e concepções que se acham às antípodas das práticas e concepções hegemônicas, em qualquer sociedade de classes, em determinado tempo e lugar.


O fato de Jesus haver sido criado conforme os valores de sua gente não impediu que Ele exercitasse, ao longo de sua vida, uma postura crítica ante a Cultura do seu Povo, assim como o fato de ter sido um homem do seu tempo não significou que introjetasse e reproduzisse acriticamente os valores, concepções, costumes e práticas então dominantes. Ele buscou resistir a um comportamento gregário: acolheu os valores que apontavam positivamente em direção ao processo de humanização, ao tempo em que foi capaz de resistir e até de opor-se aos contravalores dominantes.


Que traços principais da vida de Jesus assinalam sua atitude revolucionária frente ao sistema de valores dominantes em seu tempo? Que práticas suas se revelam frontalmente antagônicas ao modo de sentir, de pensar e de agir da sociedade do seu tempo – e, por extensão, das formações sociais hegemônicas em outros tempos, inclusive na atualidade?

Comecemos, como faz o autor do livro ora comentado, pela relação que Ele assume perante o Deus de seu Povo. Enquanto seus contemporâneos cultivavam de Deus uma figura poderosa, medonha, por vezes punitiva, controladora – no que reforçava aquela estrutura patriarcal, gerontocrática, extremamente hierarquizada, organizada com base em leis rígidas, manipuladas por uma casta de sacerdotes de doutores da Lei, Jesus passa a ter com Deus uma relação característica dos laços entre pai e filho: Deus como “Abba”, como um pai amoroso, cheio de bondade, de ternura e de compaixão para com seus filhos e filhas. Daí nasce e se aprofunda, para sempre, uma relação de confiança, de entrega filial, de bem-querer, de bondade incondicional.

Outro aspecto forte da Mística revolucionária característica e testemunhada por Jesus, ao longo de sua convivência com as multidões que o seguiam, com os discípulos e discípulas, com as mulheres, com uma variedade de perfis humanos, em especial do povo dos pobres – camponeses, diaristas, pescadores, cegos, surdos-mudos, aleijados, leprosos, pessoas de má fama, etc. – remete à sua clara oposição, por gestos e palavras, aos manipuladores de consciência, pela via da religião. Resulta célebre aquela lista de invectivas contundentes contra a casta sacerdotal, os doutores da lei, os fariseus, etc., aos quais faz referência o cap. 23 do Evangelho de Mateus.

Judeu como os demais, Jesus mostrava-se, no entanto, bastante atento às armadilhas perversas de uma religão formalista, tendente a induzir multidões de seguidores, a se pautarem por meras formalidades legalistas, com evidentes propósitos de dominação: “Esse povo me honra com os lábios, mas longe de mim está o seu coração!”. (Mt 15,8)

Sem deixar de ser judeu e de apreciar os bons valores de sua gente, inclusive os inspirados em sua religião, tais como a confiança no Deus Libertador (mas não no Deus vingador e punitivo), no cultivo de sua identidade como Povo de Deus (mas não de sua perigosa pretensão a ser proprietário de Deus), das posturas proféticas do Antigo Testamento (mas não com cultivo à ódio aos inimigos), Jesus vai progressivamente tomando distância de seus contemporâneos, ao sustentar críticas contundentes ao comportamento de seus conterrâneos e contemporâneos, numa lista nada desprezível de aspectos:
-
 -sua radical oposição à lei do talião (olho por olho, dente por dente...);
 -sua iracúndia profética contra os sumos sacerdotes e os doutores da lei e escribas: “

De que Mística o Deus de Jesus de Nazaté, desde Seu Pai, e por meio do Seu Espírito, O investiu, e Ele próprio se deixou impregnar, em sua vida pública?

Tal é a força frontal que a Mística testemunhada por Jesus O marca, em Sua trajetória, que resulta impossível compreendê-Lo em sua identidade, apartado desta energia frontal. E por diversas razões. Para Jesus tratava-se de anunciar e inaugurar, já neste mundo, o Projeto do Pai, que consistia fundamentalmente em defender e promover a vida, em todas as suas manifestações: tratava-se de inaugurar a vida em sua plenitude! Tal a profundidade do Seu compromisso, que Ele elegeu os últimos, justamente os que viviam excluídos do banquete da vida, para serem seus primeiros e preferidos destinatários, e mais ainda: protagonistas dos caminhos rumo a esta vida. Cercou-se e acercou-se dessa gente marginalizada, proibida de viver com dignidade, seja do ponto de vista material (alimentação, trabalho, roupa, habitação, etc.), seja do ponto de vista de suas mais fundas aspirações imateriais. Impossível para Ele, fazer tal escolha, sem se contrapor, de modo contundente, com toda sorte de adversidades que atravessava este caminho, em especial os representantes da aristocracia do seu tempo. Para estes, suas práticas e suas palavras são extremamente duras: “É mais fácil um camelo entrar num buraco de agulha do que os ri um rico se salvar!” (Mt 19, 24)

Tal constância de conduta em favor das vítimas mais vulneráveis era a verdadeira expressão da força de Sua Mística, de sua contínua refontização e comunhão com o Pai, por meio da ação do Seu Espírito. É assim que O vemos frequentemente retirar-se para orar ao Seu Pai, para escutá-Lo, com atenção e fidelidade. Momentos decisivos para a manutenção fiel de suas práticas, de suas atitudes  em defesa e em promoção da vida, sobretudo a partir da vida daqueles e daquelas, numerosos, destituídos de proteção, de quem deles e delas tivesse cuidado. Por conta deste seu testemunho contundente, em incontáveis vezes, teve que entrar em conflito, aberto ou implícito, com representantes dos segmentos aristocráticos dominantes – com os fariseus, com os escribas, com os doutores da lei, com os sumos sacerdotes, com as autoridades representantes do poder romano. Estes entendiam tratar-se de alguém perigoso, cuja prática ameaçava os interesses dos “de cima”. Em verdade, ainda que de modo implícito, tais autoridades podiam depreender que esse homem, mais do que defender pobres e desvalidos, também estava apontando para as verdadeiras raízes daquelas injustiças estruturais, sinalizando a necessidade de uma mudança radical na forma de organização daquela sociedade. Não foi por acaso que teve que enfrentar o martírio...

Sem o constante exercício desta Mística revolucionária, dificilmente se entende a proposta de Jesus. Sem prejuízo de suas atividades contínuas de profeta itinerante, Jesus tomava tempo para a Oração, para momentos de comunhão mais intensa com o Pai, sempre guiado por Seu Espírito. A própria e única Oração que Ele nos ensinou – a do Pai Nosso – é um vivo atestado da essência de Sua mensagem, ao nela propor dois votos e três pedidos: o de que “seja santificado Teu Nome”, isto é, que este Deus da Vida e da Liberdade se enraíze nos corações das gentes; que “venha a nós o Teu Reino”: ao contrário das práticas e dos valores então dominantes, que as sementes do Reino de Deus fossem acolhidas, e  frutificassem no mundo, enquanto rogava ao Pai que não falte o pão de cada dia, o sustento diário de seus filhos e filhas, em igualdade de condições; o pedido do perdão por rejeitarmos ou tardarmos demais a vida a nós do Seu Reinado de amor, de justiça, de paz, de partilha e solidariedade; e que Ele não nos deixe sucumbir às tentações do Mal, mas nos livre de todo egoísmo, da idolatria, das mais variadas formas de culto.

A Mística revolucionária que marca profundamente a Espiritualidade de Jesus, opõe-se frontalmente ao comportamento esquizofrênico dominante, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito coletivo, expresso em atitudes de se sentir uma coisa, pensar-se uma segunda, querer-se uma terceira, fazer-se uma quarta, comunicar-se uma quinta... A Mística de Jesus é integrativa, conecta organicamente Seu sentir, Seu pensar, Seu querer, Seu agir, Seu discurso, na direção do Reino de Deus e Sua justiça. Expressa bem mais Sua compaixão ante quem, atiçado pela profunda indignação diante da hipocrisia e das dissimulações, lança impropérios implicando por vezes até palavras ofensivas e imprecações do que em relação a quem se tem como santo e, em nome de Deus, não hesita em prestar cultos a ídolos do poder, do ter, do prestígio. É assim, inclusive, que interpreto as duras palavras pronunciadas pela dupla de repentistas, em desabafo contra tanta hipocrisia cometida em nome de Deus.

João Pessoa, 13 de novembro de 2018