ROTEIRO DE ENTREVISTA CONCEDIDA POR
ALDER JÚLIO F. CALADO AO JORNAL “CORREIO DA PARAÍBA”, DE 05/04/2015
- Qual o significado da Páscoa?
Na tradição judeu-cristã, o termo
“Pàscoa” vem associado à experiência de passagem libertadora, portanto de uma situação
de escravidão para a liberdade. Um povo (Israel)( que vivia oprimido por faraó
do Egito, graças à com-paixão e intervenção de seu Deus, consegue libertar-se
das garras do opressor. No Cristianismo, Jesus torna-se a grande referência de
vitória sobre a morte, através de sua Ressurreição, que dá sentido e razão à fé
cristã.
- É um momento de reflexão que exige
do homem mais fé do que razão?
Para os cristãos, a Páscoa constitui
a principal sustentação de sua fé, expressa pela Ressurreição de Jesus Cristo.
Ao fortalecer a fé dos cristãos, a experiência da Páscoa não dispensa a razão.
Antes, fortalece a complementaridade desejável entre fé e razão, articulação
expressa na conhecida fórmula “Scientia ac fides”.
- Como surgiu a Páscoa?
Na tradição judeu-cristã, a Páscoa
vem alimentada tanto pelas narrativas do Antigo Testamento, em especial pelo
Livro do Êxodo, como pelos relatos apresentados pelo Novo Testamento. Em ambos
os casos, o foco é o processo de libertação conduzido por Deus em prol do seu
Povo, e com a participação deste. No caso do Cristianismo, a Páscoa
protagonizada pelo Crucificado e Ressuscitado presente na história, constiui a
principal razão de ser da fé cristã.
- Ela é um significado universal,
outras religiões também comemoram a Páscoa ou é restrita aos judeus e cristãos?
Ainda que a Páscoa constitua uma
experiência mais diretamente ligada ao povo judeu-cristão, especialmente no
caso do Cristianismo, a proposta se dirige a toda a humanidade, a todos os
povos. Jesus veio para que todos tenham a vida, e vida em abundância. No
Cristianismo, o “Novo Israel” corresponde a um chamamento a todos os povos, sem
exclusão. O Papa Francisco não tem cessado de apontar nessa direção.
- Que mensagem o cristão não pode
esquecer nesse período?
Celebrar a Páscoa implica, mais que
dizer-se cristão ou mesmo adorar a Jesus, entrar no Seu caminho:
comprometer-se, dia após dia, com as grandes causas da humanidade, na
perspectiva da busca incessante do Reino de Deus e Sua Justiça. Isto requer um
incessante processo de conversão, de “Metanóia”, tanto de caráter pessoal
quanto de ordem comunitária e societária
- Só amor de Deus pelo homem explica
o sacrifício de Cristo?
Tal foi o Amor de Deus pela
humanidade, que não hesitou em tornar-se carne, em Jesus, filho de Maria.
Máximo foi o gesto de Jesus, de fidelidade ao Projeto do Reinado de Deus, de
justiça, de amor e de paz, pois não pode haver maior prova de amor do que a de
quem dá a vida pelos irmãos. Tal entrega
reforça a confiança e a aposta daqueles e daquelas que se põem a caminho, nas
pegadas de Jesus, como discípulos e discípulas missionários.
- Como o senhor vê esse
distanciamento entre a vida, no dia a dia, de competição de agressões à ética,
e a ideia do amor ao próximo deixada como mensagem de Cristo?
Ao longo da história, não apenas
hoje, a caminhada dos cristãos – como, de resto, a dos humanos - se tem dado e
se vem dando entre luzes e sombras, entre rosas e espinhos, entre avanços espetaculares
e retrocessos tenebrosos. Isto se deve a uma confluência de fatores, entre os
quais, a coexistência em nós de grandes potencialidades e assustadores limites.
Não obstante nossos limites, somos chamados a construir uma nova sociedade,
alternativa à barbárie do sistema capitalista e modelos totalitários que
atentam contra a dignidade do Planeta, dos humanos e de toda a comunidade dos
viventes.
- O sacrifício de Cristo, a mensagem
dele são exemplos de humildade e obediência, de superação e de perdão. No
entanto, o homem, talvez pelo livre arbítrio, ou ignora isso ou não se conforma
com seu papel na vida ou não aceita se submeter?
O Projeto de Jesus – a partir mesmo
de Sua práticas, de Seus caminhos – é de nos chamar incessantemente para a
Liberdade. Ele nos chama, mas nós atendemos ou não ao Seu chamado. Ele não se
impõe. Para quantos têm a graça de responder positivamente ao Seu chamado, Seu
Projeto se revela invariavelmente como de justiça, de misericórdia, de amor e
de paz com a Natureza, entre os humanos e ao interno de cada um, de cada uma.
Para outros, outras, que se negam a atender ao Seu chamado, os sinais não são
nada animadores. Mesmo assim, Ele não desiste de ninguém, mantém sempre abertas
as portas para uma conversão de nossa parte.
- Há um lado profano na Páscoa, com
encenações populares da morte de Judas e restrições alimentícias. Não lhe
parece uma contradição?
Na história do Cristianismo, a
despeito do núcleo da mensagem do Evangelho centrado no essencial (as
experiências de justiça, de misericórdia, de amor e de paz), tem havido uma
atração forte pelo lado religioso, pelo lado simbólico, conforme os apelos
culturais. Em dose apropriada, isto parece saudável. Ruim é quando o provisório
vira o definitivo; quando o acessório toma o lugar central...
- Como a ressurreição de Cristo,
comemorada no domingo pascoal, pode ser interpretada hoje?
O fato de a gente comemorar o
aniversário de alguém num dia determinado, não implica que sua vida se restrinja
àquele dia. Pela tradição católica, a festa de Páscoa incide no Domingo da
Ressurreição. O importante é manter-nos vigilantes ao sentido de Páscoa como um
processo, a ser experienciado pelos cristãos e cristãs todos os dias, buscando
fazer parte ativa do movimento de Jesus, seja nos espaços eclesiais, seja nos
embates por uma Cidadania ativa.
- Como o senhor vê o comércio extremo
do período, que leva a uma situação em que o ovo de chocolate é mais
compreendido do que a morte e ressurreição de Cristo?
Uma coisa é a fé, outra é a religião.
Enquanto a primeira discerne o essencial da mensagem da Páscoa – viver como
ressuscitados -, a religião se faz mais vulnerável a valores de mercado, por
vezes até contrários ao núcleo da mensagem evangélica. Isto me faz lembrar um
conhecido mote, glosado pela dupla de repentista, os Nonatos: “No comércio da
fé, Jesus não passa / De um produto vendido a prestação”...
- A morte e ressurreição de Cristo
ainda hoje são temas muito profundos na cultura popular. O que explica a
perpetuação no tempo de um sofrimento dessa magnitude?
O exemplo de Jesus Cristo é um
exemplo de solidariedade, de amor ao próximo, no entanto, o homem, quer por
razões econômicas, quer por ações políticas, se afasta do mandamento de amar ou
próximo. Para onde caminhamos?
As massas populares, mergulhadas em
seu severino cotidiano, vendo-se abandonadas por quem mais delas deveria
cuidar, apelam para a sua fé genuína. Vêem-se a si mesmas no sofrimento do
Crucificado. Vivendo, por vezes, como ovelhas sem pastor, apelam para o
verdadeiro Pastor, que deu a Sua vida pelos crucificados de todos os tempos.
Quem é fiel ao sentido da Páscoa, adere ao movimento cristão de fazer “descer
os pobres da cruz”: a cruz das injustiças, a cruz das desigualdades brutais, a
cruz do feminicídio, a cruz da homofobia, a cruz do racismo, a cruz da
corrupção...
- A verdade prevalecerá
independentemente de riqueza, guerra e poder?
É o que nos é proposto por Jesus; é o
que o sentido de Páscoa nos propõe, menos como um dogma, e mais como um
convite, uma instigação a nós, cristãos e cristãs, junto com os demais humanos.
Isto não se dará sem nossa abertura e acolhida ao convite. Ele não vai impor
essa verdade, Ele a propõe a todos e a cada um, cada uma de nós. A força do
amor é sempre maior do que a força da morte. Em última instância, prevalece a
verdade. A mentira não terá a última palavra.
- O que mais dificulta ao homem o
real entendimento da mensagem de Cristo?
Entre tantos obstáculos aí presentes,
além do inacbamento do ser humano e seus limites, também se inclui o fato de
que o seguimento de Jesus não demanda apenas um simples ato de razão, de crença
intelectual. Há de se articular esta dimensão a outras, tais como a adesão
afetiva, o compromisso da vontade e o crer com as mãos (dimensão práxica). Isto
requer contínua vigilância e oração. “Vigiai e orai...”. O agir nessa direção,
embora passe também pela nossa participação efetiva, é um dom de Deus: “Não
foram vocês que Me escolheram. Fui Eu que os escolhi, para que vão e dêem
fruto, e o seu fruto permaneça.” (Jo 15,16).
- Como o senhor vê a abertura que a
Igreja católica está buscando desde que o papa Francisco assumiu o pontificado?
O Papa Francisco, graças ao seu
testemunho profético e de verdadeiro pastor, tem ajudado enormemente a
restituir a esperança a tanta gente que se achava abandonada por parte da alta
hierarquia eclesiástica. Ao retomar com força o espírito renovador e os
ensinamentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), das Conferências de Medellín
(1968), Puebla (1979), mais recentemente, a de Aparecida, da qual ele foi
importante protagonista, o Bispo de Roma vem contribuindo densamente pela
renovação evangélica da Igreja Católica. Sempre fiel ao conhecido apelo
“Ecclesia semper renovanda est”, na perspectiva contínua de sua refontização,
de sua fidelidade ao Evangelho, e, portanto, à centralidade dos pobres e
sofredores como alvo prioritário dos cuidados da Igreja, sua disposição de
dialogar com o mundo, sua abertura ecumênica, sua disposição de reformar as
estruturas da Igreja, o Papa vem tendo uma crescente acolhida, não apenas de
católicos, mas também de outras Igrejas cristãs, de várias expressões
religiosas e de muita gente sem confissão definida. Um sinal dos tempos!
Essa abertura que aceita pessoas com
opção sexual homoafetiva e a um segundo casamento já encontra resistência nos
mais conservadores. É uma evolução natural ou uma conquista de minorias?
As grandes mudanças – ao interno das
igrejas ou no âmbito macrossocial – são obra também do que Dom Helder chamava
de “minorias abraâmicas” cuja ação persistente acaba contagiando positivamente
tantos outros setores. Não se trata de mudanças repentinas. Demandam décadas,
às vezes, mas delas já podemos perceber sinais alentadores. Em outubro próximo,
acontecerá mais uma assembléia de bispos, em Roma, para continuar tratando de
desafios das relações familiares, inclusiv dos mencionados na pergunta.
- É possível a Igreja superar seus
dogmas em nome desse amor, cuja expressão maior pode ser encontrada da Páscoa?
Na mensagem evangélica, prevalece o
princípio do Amor/da Misericórdia. E este mandamento está acima de posições
dogmáticas, doutrinárias. A Páscoa nos chama à conversão, movida pelo Amor e
pela Misericórdia. Eis qual é a cláusula pétrea do Evangelho: o exercício do
Amor e da Misericórdia, em especial com os pobres e com os pecadores. Jesus não
veio para quem se crê são, veio salvar os pecadores, veio libertar os cativos,
apelando para a contribuição destes.
- Como um cientista social, como o
senhor vê a religião?
Ao longo da história, há registros de
povos de todas as idades e de todos os lugares que expressavam e expressam suas
convicções – filosóficas, culturais – das mais variadas formas. Como ser
humano, não sinto qualquer problema em expressar, também como sociólogo, minhas
convicções religiosas ou, mais precisamente, não sinto qualquer embaraço de
expressar as razões daquilo em que creio. Ao contrário, sinto-me mais humanizado
e disposto a ajudar outras pessoas a encontrarem seu caminho de realização, não
importando o nome que atribuam à Força motriz que as conduz no processo de
humanização e de convivência amorosa com a Mãe-Natureza e toda a comunidade de
viventes.
- Ciência e religião podem caminhar
juntas?
Não, para quem faz da própria ciência
uma religião, a sua. Sim, para quem entende que a própria ciência parte do
senso comum para suas elaborações ulteriores. Ao buscar superar o senso comum,
não está isenta de incorrer, por vezes, em falácias. Por outro lado, importa
saber lidar adequadamente com os fenômenos religiosos, sem a pretensão de
“prová-los”, isto é, tentando (em vão) transformá-los em objetos de ciência.
Com os devidos cuidados, de parte a parte, é, sim, possível – e desejável - uma
convivência, não apenas pacífica, mas igualmente fecunda.
- Onde ciência e religião divergem e
para onde convergem?
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