quarta-feira, 14 de novembro de 2018

ENTREVISTA CONCEDIDA POR ALDER JÚLIO F. CALADO AO JORNAL “CORREIO DA PARAÍBA”, DE 05/04/2015


ROTEIRO DE ENTREVISTA CONCEDIDA POR ALDER JÚLIO F. CALADO AO JORNAL “CORREIO DA PARAÍBA”, DE 05/04/2015

- Qual o significado da Páscoa?
Na tradição judeu-cristã, o termo “Pàscoa” vem associado à experiência de passagem libertadora, portanto de uma situação de escravidão para a liberdade. Um povo (Israel)( que vivia oprimido por faraó do Egito, graças à com-paixão e intervenção de seu Deus, consegue libertar-se das garras do opressor. No Cristianismo, Jesus torna-se a grande referência de vitória sobre a morte, através de sua Ressurreição, que dá sentido e razão à fé cristã.

- É um momento de reflexão que exige do homem mais fé do que razão?
Para os cristãos, a Páscoa constitui a principal sustentação de sua fé, expressa pela Ressurreição de Jesus Cristo. Ao fortalecer a fé dos cristãos, a experiência da Páscoa não dispensa a razão. Antes, fortalece a complementaridade desejável entre fé e razão, articulação expressa na conhecida fórmula “Scientia ac fides”.

- Como surgiu a Páscoa?
Na tradição judeu-cristã, a Páscoa vem alimentada tanto pelas narrativas do Antigo Testamento, em especial pelo Livro do Êxodo, como pelos relatos apresentados pelo Novo Testamento. Em ambos os casos, o foco é o processo de libertação conduzido por Deus em prol do seu Povo, e com a participação deste. No caso do Cristianismo, a Páscoa protagonizada pelo Crucificado e Ressuscitado presente na história, constiui a principal razão de ser da fé cristã.


- Ela é um significado universal, outras religiões também comemoram a Páscoa ou é restrita aos judeus e cristãos?
Ainda que a Páscoa constitua uma experiência mais diretamente ligada ao povo judeu-cristão, especialmente no caso do Cristianismo, a proposta se dirige a toda a humanidade, a todos os povos. Jesus veio para que todos tenham a vida, e vida em abundância. No Cristianismo, o “Novo Israel” corresponde a um chamamento a todos os povos, sem exclusão. O Papa Francisco não tem cessado de apontar nessa direção.

- Que mensagem o cristão não pode esquecer nesse período?
Celebrar a Páscoa implica, mais que dizer-se cristão ou mesmo adorar a Jesus, entrar no Seu caminho: comprometer-se, dia após dia, com as grandes causas da humanidade, na perspectiva da busca incessante do Reino de Deus e Sua Justiça. Isto requer um incessante processo de conversão, de “Metanóia”, tanto de caráter pessoal quanto de ordem comunitária e societária



- Só amor de Deus pelo homem explica o sacrifício de Cristo?
Tal foi o Amor de Deus pela humanidade, que não hesitou em tornar-se carne, em Jesus, filho de Maria. Máximo foi o gesto de Jesus, de fidelidade ao Projeto do Reinado de Deus, de justiça, de amor e de paz, pois não pode haver maior prova de amor do que a de quem dá a vida pelos irmãos.  Tal entrega reforça a confiança e a aposta daqueles e daquelas que se põem a caminho, nas pegadas de Jesus, como discípulos e discípulas missionários.

- Como o senhor vê esse distanciamento entre a vida, no dia a dia, de competição de agressões à ética, e a ideia do amor ao próximo deixada como mensagem de Cristo?
Ao longo da história, não apenas hoje, a caminhada dos cristãos – como, de resto, a dos humanos - se tem dado e se vem dando entre luzes e sombras, entre rosas e espinhos, entre avanços espetaculares e retrocessos tenebrosos. Isto se deve a uma confluência de fatores, entre os quais, a coexistência em nós de grandes potencialidades e assustadores limites. Não obstante nossos limites, somos chamados a construir uma nova sociedade, alternativa à barbárie do sistema capitalista e modelos totalitários que atentam contra a dignidade do Planeta, dos humanos e de toda a comunidade dos viventes.

- O sacrifício de Cristo, a mensagem dele são exemplos de humildade e obediência, de superação e de perdão. No entanto, o homem, talvez pelo livre arbítrio, ou ignora isso ou não se conforma com seu papel na vida ou não aceita se submeter?

O Projeto de Jesus – a partir mesmo de Sua práticas, de Seus caminhos – é de nos chamar incessantemente para a Liberdade. Ele nos chama, mas nós atendemos ou não ao Seu chamado. Ele não se impõe. Para quantos têm a graça de responder positivamente ao Seu chamado, Seu Projeto se revela invariavelmente como de justiça, de misericórdia, de amor e de paz com a Natureza, entre os humanos e ao interno de cada um, de cada uma. Para outros, outras, que se negam a atender ao Seu chamado, os sinais não são nada animadores. Mesmo assim, Ele não desiste de ninguém, mantém sempre abertas as portas para uma conversão de nossa parte.

- Há um lado profano na Páscoa, com encenações populares da morte de Judas e restrições alimentícias. Não lhe parece uma contradição?
Na história do Cristianismo, a despeito do núcleo da mensagem do Evangelho centrado no essencial (as experiências de justiça, de misericórdia, de amor e de paz), tem havido uma atração forte pelo lado religioso, pelo lado simbólico, conforme os apelos culturais. Em dose apropriada, isto parece saudável. Ruim é quando o provisório vira o definitivo; quando o acessório toma o lugar central...


- Como a ressurreição de Cristo, comemorada no domingo pascoal, pode ser interpretada hoje?
O fato de a gente comemorar o aniversário de alguém num dia determinado, não implica que sua vida se restrinja àquele dia. Pela tradição católica, a festa de Páscoa incide no Domingo da Ressurreição. O importante é manter-nos vigilantes ao sentido de Páscoa como um processo, a ser experienciado pelos cristãos e cristãs todos os dias, buscando fazer parte ativa do movimento de Jesus, seja nos espaços eclesiais, seja nos embates por uma Cidadania ativa.


- Como o senhor vê o comércio extremo do período, que leva a uma situação em que o ovo de chocolate é mais compreendido do que a morte e ressurreição de Cristo?
Uma coisa é a fé, outra é a religião. Enquanto a primeira discerne o essencial da mensagem da Páscoa – viver como ressuscitados -, a religião se faz mais vulnerável a valores de mercado, por vezes até contrários ao núcleo da mensagem evangélica. Isto me faz lembrar um conhecido mote, glosado pela dupla de repentista, os Nonatos: “No comércio da fé, Jesus não passa / De um produto vendido a prestação”...


- A morte e ressurreição de Cristo ainda hoje são temas muito profundos na cultura popular. O que explica a perpetuação no tempo de um sofrimento dessa magnitude?
O exemplo de Jesus Cristo é um exemplo de solidariedade, de amor ao próximo, no entanto, o homem, quer por razões econômicas, quer por ações políticas, se afasta do mandamento de amar ou próximo. Para onde caminhamos?

As massas populares, mergulhadas em seu severino cotidiano, vendo-se abandonadas por quem mais delas deveria cuidar, apelam para a sua fé genuína. Vêem-se a si mesmas no sofrimento do Crucificado. Vivendo, por vezes, como ovelhas sem pastor, apelam para o verdadeiro Pastor, que deu a Sua vida pelos crucificados de todos os tempos. Quem é fiel ao sentido da Páscoa, adere ao movimento cristão de fazer “descer os pobres da cruz”: a cruz das injustiças, a cruz das desigualdades brutais, a cruz do feminicídio, a cruz da homofobia, a cruz do racismo, a cruz da corrupção...


- A verdade prevalecerá independentemente de riqueza, guerra e poder?

É o que nos é proposto por Jesus; é o que o sentido de Páscoa nos propõe, menos como um dogma, e mais como um convite, uma instigação a nós, cristãos e cristãs, junto com os demais humanos. Isto não se dará sem nossa abertura e acolhida ao convite. Ele não vai impor essa verdade, Ele a propõe a todos e a cada um, cada uma de nós. A força do amor é sempre maior do que a força da morte. Em última instância, prevalece a verdade. A mentira não terá a última palavra.


- O que mais dificulta ao homem o real entendimento da mensagem de Cristo?
Entre tantos obstáculos aí presentes, além do inacbamento do ser humano e seus limites, também se inclui o fato de que o seguimento de Jesus não demanda apenas um simples ato de razão, de crença intelectual. Há de se articular esta dimensão a outras, tais como a adesão afetiva, o compromisso da vontade e o crer com as mãos (dimensão práxica). Isto requer contínua vigilância e oração. “Vigiai e orai...”. O agir nessa direção, embora passe também pela nossa participação efetiva, é um dom de Deus: “Não foram vocês que Me escolheram. Fui Eu que os escolhi, para que vão e dêem fruto, e o seu fruto permaneça.” (Jo 15,16).


- Como o senhor vê a abertura que a Igreja católica está buscando desde que o papa Francisco assumiu o pontificado?

O Papa Francisco, graças ao seu testemunho profético e de verdadeiro pastor, tem ajudado enormemente a restituir a esperança a tanta gente que se achava abandonada por parte da alta hierarquia eclesiástica. Ao retomar com força o espírito renovador e os ensinamentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), das Conferências de Medellín (1968), Puebla (1979), mais recentemente, a de Aparecida, da qual ele foi importante protagonista, o Bispo de Roma vem contribuindo densamente pela renovação evangélica da Igreja Católica. Sempre fiel ao conhecido apelo “Ecclesia semper renovanda est”, na perspectiva contínua de sua refontização, de sua fidelidade ao Evangelho, e, portanto, à centralidade dos pobres e sofredores como alvo prioritário dos cuidados da Igreja, sua disposição de dialogar com o mundo, sua abertura ecumênica, sua disposição de reformar as estruturas da Igreja, o Papa vem tendo uma crescente acolhida, não apenas de católicos, mas também de outras Igrejas cristãs, de várias expressões religiosas e de muita gente sem confissão definida. Um sinal dos tempos!
 
Essa abertura que aceita pessoas com opção sexual homoafetiva e a um segundo casamento já encontra resistência nos mais conservadores. É uma evolução natural ou uma conquista de minorias?

As grandes mudanças – ao interno das igrejas ou no âmbito macrossocial – são obra também do que Dom Helder chamava de “minorias abraâmicas” cuja ação persistente acaba contagiando positivamente tantos outros setores. Não se trata de mudanças repentinas. Demandam décadas, às vezes, mas delas já podemos perceber sinais alentadores. Em outubro próximo, acontecerá mais uma assembléia de bispos, em Roma, para continuar tratando de desafios das relações familiares, inclusiv dos mencionados na pergunta.


- É possível a Igreja superar seus dogmas em nome desse amor, cuja expressão maior pode ser encontrada da Páscoa?

Na mensagem evangélica, prevalece o princípio do Amor/da Misericórdia. E este mandamento está acima de posições dogmáticas, doutrinárias. A Páscoa nos chama à conversão, movida pelo Amor e pela Misericórdia. Eis qual é a cláusula pétrea do Evangelho: o exercício do Amor e da Misericórdia, em especial com os pobres e com os pecadores. Jesus não veio para quem se crê são, veio salvar os pecadores, veio libertar os cativos, apelando para a contribuição destes.

- Como um cientista social, como o senhor vê a religião?
Ao longo da história, há registros de povos de todas as idades e de todos os lugares que expressavam e expressam suas convicções – filosóficas, culturais – das mais variadas formas. Como ser humano, não sinto qualquer problema em expressar, também como sociólogo, minhas convicções religiosas ou, mais precisamente, não sinto qualquer embaraço de expressar as razões daquilo em que creio. Ao contrário, sinto-me mais humanizado e disposto a ajudar outras pessoas a encontrarem seu caminho de realização, não importando o nome que atribuam à Força motriz que as conduz no processo de humanização e de convivência amorosa com a Mãe-Natureza e toda a comunidade de viventes.

- Ciência e religião podem caminhar juntas?
Não, para quem faz da própria ciência uma religião, a sua. Sim, para quem entende que a própria ciência parte do senso comum para suas elaborações ulteriores. Ao buscar superar o senso comum, não está isenta de incorrer, por vezes, em falácias. Por outro lado, importa saber lidar adequadamente com os fenômenos religiosos, sem a pretensão de “prová-los”, isto é, tentando (em vão) transformá-los em objetos de ciência. Com os devidos cuidados, de parte a parte, é, sim, possível – e desejável - uma convivência, não apenas pacífica, mas igualmente fecunda.



- Onde ciência e religião divergem e para onde convergem?


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