ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ, NO PROCESSO DE (DES)HUMANIZAÇÃO: considerações
em torno da busca de se fazer uso libertário dos sentidos, em tempos de
obscurantismo
Alder Júlio Ferreira Calado
“Têm boca, mas não falam; olhos têm, mas não vêem.
Têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram.
Têm mãos, mas não apalpam; pés têm, mas não andam; nem som algum sai da sua garganta.” (Salmo 115, 5-7)
Têm ouvidos, mas não ouvem; narizes têm, mas não cheiram.
Têm mãos, mas não apalpam; pés têm, mas não andam; nem som algum sai da sua garganta.” (Salmo 115, 5-7)
As linhas que seguem, têm o
propósito de realimentar a reflexão crítica sobre o bom ou mau uso que fazemos
dos nossos sentidos, aqui focando com especial ênfase os significados e o
alcance da visão ou da cegueira, em tempos de obscurantismo. Comecemos por uma obviedade:
ao longo de nossa história e da história de vida de cada uma e de cada um de
nós, coabitam bem e mal, tal como acontece alternância entre noite e dia, luz e
trevas, quente e frio... Eis uma característica de todo ser inacabado, e, por
isto mesmo, historicamente vocacionado à Liberdade e, por conseguinte, a ir
superando seus próprios limites, a partir do despertar e do contínuo exercício
de suas potencialidades.
Nesse sentido ao revisitarmos a
história recente ou menos recente damo-nos conta da alternância ou da
convivência de nossas qualidades e dos nossos defeitos.
O fato de nos sentirmos
historicamente chamados a desenvolver nossas potencialidades (pessoais e
coletivas) não apaga, por si, o permanente risco de estarmos sujeitos a
sucumbir a condições portadoras, não de humanização, mas de desumanização. Além
das condições históricas e conjunturais, que constituem importante fator concorrente,
convém lembrar também o concurso de fatores internos, na medida em que, para
além dos fatores externos, aí também incidem fatores subjetivos, estes últimos
especialmente associados ao nosso processo de formação contínua.
Por este processo de formação
contínua passam diferentes elementos formativos, um dos quais tem a ver com o
desenvolvimento de nossa capacidade perceptiva: ver melhor o que antes não
percebíamos, ou mal percebíamos; ouvir falas e sons a que antes vivíamos
surdos; sentir coisas, fatos, acontecimentos que antes nos passavam
despercebidos... Cada um destes sentidos (e de outros mais), só se desenvolve
dentro de um processo contínuo de formação, cujo os protagonistas e ambiência
são nossas organizações de base, atuando como principais forças motrizes de
nossa sociedade, partindo de uma atenção especial do desenvolvimento também das
qualidades pessoais, e sempre num “continuum”.
Tal processo formativo, não se
faz à parte do contexto histórico, mas profundamente inserido nos entrechoques
da história, razão por que conjunturas há favoráveis, e outras desfavoráveis ou
mesmo adversas, como esta em que nos encontramos.
Querendo ou não, como seres inacabados,
temos que conviver com a oscilação que nos tem acompanhado, ao longo da
história, entre sensibilidade e insensibilidade: entre cegueira e lucidez;
entre apurada audição e surdez; entre sabores e dissabores; entre a pronúncia
de nossa palavra e sucumbir ao silenciamento.
Aqui me sinto encorajado a
dizer algo sobre várias formas de cegueira e de insensibilidade frente à nossa
realidade.
Mesmo tratando-se de cegueira interior,
a trajetória histórica da humanidade, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito
coletivo, se acha marcada, de fatos e acontecimentos trágicos, em diferentes
tempos e lugares. No contexto atual, em escala internacional ou local,
sentimo-nos rodeados de sinais espantosos, a este respeito: o discernimento ou
a lucidez não parece ser uma de nossas características dominantes, na
atualidade, para dizer o mínimo... isto afeta gravemente nosso processo de
humanização, sob vários aspectos. As redes sociais, saudadas com entusiasmo,
como uma das maravilhas tecnológicas do nosso tempo, ao tempo em que nos
embriagam pelas suas potencialidades, também nos anestesiam, afetando em uma
imensa massa de usuários, sua criticidade. Só para mencionarmos 2 casos
emblemáticos, pensemos nos profundos estragos recentes causados pelo uso
acrítico das redes sociais, nos episódios eleitorais dos Estados Unidos e do
Brasil, antes, durante e depois do processo eleitoral. Entendemos que tais
efeitos se devem mais à extrema vulnerabilidade da massa de usuários, do que
aos seus manipuladores. Com efeito, as famigeradas “Fake News” produzem
consequência quase nula na vida de cidadãs e cidadãos que não cessem de
exercitar seu senso crítico.
O processo de humanização, se, quando e onde posto em prática,
implica necessariamente, o exercício contínuo da crítica e da autocrítica. Estas
se manifestam como condição essencial ao processo de humanização, inclusive na
capacidade dos sujeitos cognoscentes lerem, interpretarem e interferirem
adequadamente em sua realidade. A realidade social, é, como se sabe,
profundamente complexa e extensa. Em vão, se busca compreendê-la, sem dotar-se
continuamente de lentes adequadas a sua leitura e interpretação. A realidade
social, se acha em movimento incessante, de tal modo que um acompanhamento
eficaz de seus desdobramentos também requer que os sujeitos cognoscentes também
se ponham em movimento. Isto não se dá espontaneamente, mas é obra de um longo
e permanente processo formativo, sem o qual todas as condições se dão para
monstruosos equívocos de repercussão gravíssima. Uma destas consequências
aponta para o alto grau de reducionismo a que ficam sujeitos seus pretensos analistas,
na medida em que, não tomando em conta inúmeras variáveis deste processo, acabam
contentando-se com o que parece acontecer em determinado momento, e logo
apressando-se em assumir como verdade, sem se atentar para tantos outros
ângulos componentes desta mesma realidade. Tais pessoas se comportam como quem
conclui, de forma apressada, o desfecho de um filme, baseando-se apenas em uma
única cena de uma longa série... gravíssimo reducionismo se comete, aí, ao
pretender-se enquadrar a realidade, que é um filme, que é dinâmica, apenas numa
foto.
E, por força do hábito, tal proceder vai se estendendo às mais
distintas situações do dia-a-dia, sendo reforçado pelos mecanismos de inércia,
isto é, pela ausência de critérios consistentes. Basta conferir as redes
sociais que também veiculam mensagens de pessoas da mesma corrente ou da parte
de amigos ou parentes que se inter-alimentam, permanentemente. É assim que se
vão formando as tais “convicções”, nos mais diferentes campos da vida: da
política ao futebol; da religião às condições de trabalho, etc., etc. Tais são as convicções, que viram dogmas:
nenhuma chance para dúvidas. Aí já não tem lugar o saudável dito proverbial,
segundo qual “De omnius dubtandum” (“deve-se duvidar de tudo”).
João Pessoa, 28 de novembro de 2018
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