POR
UMA MÍSTICA REVOLUCIONÁRIA – O TESTEMUNHO DE JESUS DE
NAZARÉ
Notas a
partir do cap. XI “Crente fiel” – do livro de José Antonio Pagola. Jesus,
aproximação histórica
Alder Júlio Ferreira Calado
“No
comércio da fé, Jesus não passa / De um produto vendido a prestação.”
(Mote
glosado por Raimundo Nonato e NonatoCosta, cf.
https://www.youtube.com/watch?v=-PZqA44XhmM
)
“Este
povo me louva com os lábios, mas longe de Mim está seu coração.” (Mt 15,8)
Quem quer
que, como discípula ou discípulo do Movimento de Jesus, se dê ao trabalho
criterioso e honesto – respondendo, por conseguinte, ao que o Sopro Divino (cf.
Mc 4, 9) tem a falar às nossas consciências – de examinar o conjunto dos
Evangelhos, o núcleo por excelência da fé cristã, e passar a avaliar as práticas
rotineiras das instituições eclesiásticas, no mundo, salvo raras exceções, há
de constatar gravíssimas contradições e antagonismos. Em não poucos casos, vai
constatar práticas e concepções, não apenas distanciadas deste Núcleo de nossa
fé, mas em evidente contradição. Tomemos como ilustrações alguns exemplos, em
termos de questionamentos:
- Tem
base evangélica o desenfreado ritualismo, tantas vezes, fonte de desvairado
fanatismo de quem, atrevendo-se a falar em nome de Deus, se acumplicia a uma
cultura de morte:
-- Tem
base evangélica a crescente tendência de um televangelismo, mantido a peso de
ouro, com contribuições de grupos de magnatas, quando se percebe, na leitura
orante e atenta dos Evangelhos, a evidente opção de Jesus pelos meios mais
pobres e mais simples e anunciar e inaugurar entre nós o Reino de Deus?
Expressão de uma complexa e extensa teia de relações, o coexistir
também se apresenta mergulhado em contradições, abrigando, querendo ou não, a
permanente tensão entre o bem e o mal, que se alojam em cada um, em cada uma de
nós. O mal também comporta sua face de mistério. Jesus de Nazaré foi, algumas
vezes, alvo desta tensão (cf. Mt 4, 1-11). As chamadas tentações por Ele enfrentadas,
no deserto, constituem um fato ilustrativo deste mistério. Hoje, não poderia ser
diferente. Quando nos pomos a lançar um olhar crítico, tomando como referência
e baliza, o conjunto das narrativas conhecidas como Evangelhos, e buscamos
avaliar, por exemplo, o que se passa hoje nos templos das igrejas que se dizem cristãs,
ao lado de práticas saudáveis, nos defrontamos com tantas outras, majoritárias,
que pouco ou nada nos remetem ao Projeto do Deus de Jesus de Nazaré, tal o grau
de insanidades e perversidades aí em circulação. Tais constatações nos
interpelam ainda mais, quando tentamos buscar identificar, como o faz o autor
do capítulo ora comentado elementos mais característicos da Espiritualidade ou
da Mística testemunhada por Jesus de Nazaré, por meio de uma leitura atenta das
fontes evangélicas.
Conquanto mais frequentemente situada no campo das abordagens
teológicas, a categoria “Mística” também pode ser trabalhada, em uma
perspectiva inter/transdisciplinar, até porque pode ser tomada também numa
acepção laical (cf. reflexão feita acessando-se o link: https://www.youtube.com/watch? v=9qP7xhrKpkg).
Aqui optamos por uma abordagem inter/transdisciplinar,
ao incursionarmos pela Mística, assumida por um olhar revolucionário, isto é,
por uma interpretação do seu potencial transformador, seja do ponto de vista
societal, comunitário ou do ponto de vista pessoal. Aqui, estamos entendendo
“Mística” como uma energia interior que inspira, nutre e sustenta práticas e
concepções que se acham às antípodas das práticas e concepções hegemônicas, em qualquer
sociedade de classes, em determinado tempo e lugar.
O fato de Jesus haver sido criado conforme os valores de sua
gente não impediu que Ele exercitasse, ao longo de sua vida, uma postura
crítica ante a Cultura do seu Povo, assim como o fato de ter sido um homem do
seu tempo não significou que introjetasse e reproduzisse acriticamente os
valores, concepções, costumes e práticas então dominantes. Ele buscou resistir
a um comportamento gregário: acolheu os valores que apontavam positivamente em
direção ao processo de humanização, ao tempo em que foi capaz de resistir e até
de opor-se aos contravalores dominantes.
Que traços principais da vida de Jesus assinalam sua atitude
revolucionária frente ao sistema de valores dominantes em seu tempo? Que práticas
suas se revelam frontalmente antagônicas ao modo de sentir, de pensar e de agir
da sociedade do seu tempo – e, por extensão, das formações sociais hegemônicas
em outros tempos, inclusive na atualidade?
Comecemos, como faz o autor do livro ora comentado, pela
relação que Ele assume perante o Deus de seu Povo. Enquanto seus contemporâneos
cultivavam de Deus uma figura poderosa, medonha, por vezes punitiva,
controladora – no que reforçava aquela estrutura patriarcal, gerontocrática,
extremamente hierarquizada, organizada com base em leis rígidas, manipuladas
por uma casta de sacerdotes de doutores da Lei, Jesus passa a ter com Deus uma
relação característica dos laços entre pai e filho: Deus como “Abba”, como um
pai amoroso, cheio de bondade, de ternura e de compaixão para com seus filhos e
filhas. Daí nasce e se aprofunda, para sempre, uma relação de confiança, de entrega
filial, de bem-querer, de bondade incondicional.
Outro aspecto forte da Mística revolucionária característica e
testemunhada por Jesus, ao longo de sua convivência com as multidões que o
seguiam, com os discípulos e discípulas, com as mulheres, com uma variedade de
perfis humanos, em especial do povo dos pobres – camponeses, diaristas,
pescadores, cegos, surdos-mudos, aleijados, leprosos, pessoas de má fama, etc. –
remete à sua clara oposição, por gestos e palavras, aos manipuladores de
consciência, pela via da religião. Resulta célebre aquela lista de invectivas
contundentes contra a casta sacerdotal, os doutores da lei, os fariseus, etc.,
aos quais faz referência o cap. 23 do Evangelho de Mateus.
Judeu como os demais, Jesus mostrava-se, no entanto, bastante
atento às armadilhas perversas de uma religão formalista, tendente a induzir
multidões de seguidores, a se pautarem por meras formalidades legalistas, com
evidentes propósitos de dominação: “Esse povo me honra com os lábios, mas longe
de mim está o seu coração!”. (Mt 15,8)
Sem deixar de ser judeu e de apreciar os bons valores de sua
gente, inclusive os inspirados em sua religião, tais como a confiança no Deus Libertador
(mas não no Deus vingador e punitivo), no cultivo de sua identidade como Povo
de Deus (mas não de sua perigosa pretensão a ser proprietário de Deus), das
posturas proféticas do Antigo Testamento (mas não com cultivo à ódio aos
inimigos), Jesus vai progressivamente tomando distância de seus contemporâneos,
ao sustentar críticas contundentes ao comportamento de seus conterrâneos e contemporâneos,
numa lista nada desprezível de aspectos:
-
-sua radical oposição à
lei do talião (olho por olho, dente por dente...);
-sua iracúndia profética
contra os sumos sacerdotes e os doutores da lei e escribas: “
De que Mística o Deus de Jesus de Nazaté, desde Seu Pai, e por
meio do Seu Espírito, O investiu, e Ele próprio se deixou impregnar, em sua
vida pública?
Tal é a força frontal que a Mística testemunhada por Jesus O
marca, em Sua trajetória, que resulta impossível compreendê-Lo em sua identidade,
apartado desta energia frontal. E por diversas razões. Para Jesus tratava-se de
anunciar e inaugurar, já neste mundo, o Projeto do Pai, que consistia
fundamentalmente em defender e promover a vida, em todas as suas manifestações:
tratava-se de inaugurar a vida em sua plenitude! Tal a profundidade do Seu compromisso,
que Ele elegeu os últimos, justamente os que viviam excluídos do banquete da vida,
para serem seus primeiros e preferidos destinatários, e mais ainda:
protagonistas dos caminhos rumo a esta vida. Cercou-se e acercou-se dessa gente
marginalizada, proibida de viver com dignidade, seja do ponto de vista material
(alimentação, trabalho, roupa, habitação, etc.), seja do ponto de vista de suas
mais fundas aspirações imateriais. Impossível para Ele, fazer tal escolha, sem
se contrapor, de modo contundente, com toda sorte de adversidades que
atravessava este caminho, em especial os representantes da aristocracia do seu
tempo. Para estes, suas práticas e suas palavras são extremamente duras: “É
mais fácil um camelo entrar num buraco de agulha do que os ri um rico se
salvar!” (Mt 19, 24)
Tal constância de conduta em favor das vítimas mais
vulneráveis era a verdadeira expressão da força de Sua Mística, de sua contínua
refontização e comunhão com o Pai, por meio da ação do Seu Espírito. É assim
que O vemos frequentemente retirar-se para orar ao Seu Pai, para escutá-Lo, com
atenção e fidelidade. Momentos decisivos para a manutenção fiel de suas
práticas, de suas atitudes em defesa e
em promoção da vida, sobretudo a partir da vida daqueles e daquelas, numerosos,
destituídos de proteção, de quem deles e delas tivesse cuidado. Por conta deste
seu testemunho contundente, em incontáveis vezes, teve que entrar em conflito,
aberto ou implícito, com representantes dos segmentos aristocráticos dominantes
– com os fariseus, com os escribas, com os doutores da lei, com os sumos
sacerdotes, com as autoridades representantes do poder romano. Estes entendiam
tratar-se de alguém perigoso, cuja prática ameaçava os interesses dos “de
cima”. Em verdade, ainda que de modo implícito, tais autoridades podiam
depreender que esse homem, mais do que defender pobres e desvalidos, também
estava apontando para as verdadeiras raízes daquelas injustiças estruturais,
sinalizando a necessidade de uma mudança radical na forma de organização daquela
sociedade. Não foi por acaso que teve que enfrentar o martírio...
Sem o constante exercício desta Mística revolucionária,
dificilmente se entende a proposta de Jesus. Sem prejuízo de suas atividades
contínuas de profeta itinerante, Jesus tomava tempo para a Oração, para
momentos de comunhão mais intensa com o Pai, sempre guiado por Seu Espírito. A
própria e única Oração que Ele nos ensinou – a do Pai Nosso – é um vivo
atestado da essência de Sua mensagem, ao nela propor dois votos e três pedidos:
o de que “seja santificado Teu Nome”, isto é, que este Deus da Vida e da
Liberdade se enraíze nos corações das gentes; que “venha a nós o Teu Reino”: ao
contrário das práticas e dos valores então dominantes, que as sementes do Reino
de Deus fossem acolhidas, e
frutificassem no mundo, enquanto rogava ao Pai que não falte o pão de
cada dia, o sustento diário de seus filhos e filhas, em igualdade de condições;
o pedido do perdão por rejeitarmos ou tardarmos demais a vida a nós do Seu
Reinado de amor, de justiça, de paz, de partilha e solidariedade; e que Ele não
nos deixe sucumbir às tentações do Mal, mas nos livre de todo egoísmo, da
idolatria, das mais variadas formas de culto.
A Mística revolucionária que marca profundamente a
Espiritualidade de Jesus, opõe-se frontalmente ao comportamento esquizofrênico dominante,
seja no âmbito pessoal, seja no âmbito coletivo, expresso em atitudes de se
sentir uma coisa, pensar-se uma segunda, querer-se uma terceira, fazer-se uma
quarta, comunicar-se uma quinta... A Mística de Jesus é integrativa, conecta
organicamente Seu sentir, Seu pensar, Seu querer, Seu agir, Seu discurso, na
direção do Reino de Deus e Sua justiça. Expressa bem mais Sua compaixão ante
quem, atiçado pela profunda indignação diante da hipocrisia e das
dissimulações, lança impropérios implicando por vezes até palavras ofensivas e imprecações
do que em relação a quem se tem como santo e, em nome de Deus, não hesita em
prestar cultos a ídolos do poder, do ter, do prestígio. É assim, inclusive, que
interpreto as duras palavras pronunciadas pela dupla de repentistas, em desabafo
contra tanta hipocrisia cometida em nome de Deus.
João Pessoa, 13 de novembro de 2018
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