quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Intérpretes do Brasil (XIII): O aporte crítico-propositivo de Ailton Krenak

 Intérpretes do Brasil (XIII): O aporte crítico-propositivo de Ailton Krenak 


Alder Júlio Ferreira Calado


Pelo que, até agora, vimos aprendendo dos principais intérpretes da sociedade brasileira, em especial dos Afrodescendentes, constatamos profundas afinidades também com nossos povos originários - tal como fizeram questão de ressaltar diversas figuras dos intérpretes até aqui revisitados. Eis por que recorremos, desta vez, a um dos seus representantes mais conhecidos da atualidade, Ailton Krenak.


E o fazemos em um momento emblemático para a humanidade, em um contexto sombrio da volta de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, escolhido que foi pela maioria daquele povo, não obstante o conjunto de horrores - ecológicos, econômicos, políticos, culturais, religiosos e outros -, de que foi evidente protagonista, para a infelicidade do Planeta, dos humanos e demais viventes; das Mulheres, dos Afro- Ameríndios, dos pobres, dos homossexuais… a cerimônia de posse resultou emblemática, em suas múltiplas manifestações distópicas, sintetizadas por imagens e discursos similares ao que sucede com a decadência dos impérios: mentiras, violência, estupidez, arroubos necrófilos… nossas organizações de base, no Brasil, na América latina e no mundo não se deixarão intimidar. Ao contrário, ao seguirem exercitando a memória histórica dos oprimidos, encontrarão meios de resistências e de enfrentamento exitoso destes e de outros desafios. Costurada  de ensinamentos libertários, muito nos tem inspirado nesta direção. Filho do Povo Krenak, sobretudo a partir dos 17 anos, começou a despertar para as enormes potencialidades transformadoras da memória histórica dos povos originários, vários dos quais expulsos de suas terras e dados como extintos, pelos brancos. 


Desde então, nos anos 70, cuida de reunir diversas lideranças indígenas, com o apoio de algumas entidades aliadas, a exemplo do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), e passa a organizar encontros e assembleias indígenas, de que resultam iniciativas promissoras como a União dos Povos Indígenas, a Associação dos Povos das Florestas, além de articulação com representantes indígenas no Congresso Nacional Constituinte, a exemplo do Deputado Juruna. Por esta via, os Povos Indígenas conseguem, não apenas visibilidade nacional como também uma participação mais forte no Processo Constituinte de 1987 e 1988, culminando com importante conquista do reconhecimento explícito de seus direitos na Constituição de 1988, sabendo, contudo, ainda tratar-se de um reconhecimento formal. Eis a dicção do artigo:Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.   


Ailton Krenak nasceu no Município mineiro de Itabirinha, em 1953, tendo migrado com sua família para o Paraná, onde foi alfabetizado, tornando-se produtor gráfico e jornalista. Sobretudo a partir dos anos 80, vai intensificando seus esforços de reunir e organizar, juntamente com outras lideranças indígenas, diversos povos originários, das águas e das florestas, por meio de várias iniciativas, tais como União dos Povos Indígenas, Aliança dos Povos da Floresta, na ininterrupta busca de fazer respeitar  seus direitos, secularmente violados. 


Foi também durante este período, que essas lideranças, entre as quais Krenak, se uniram às lutas dos seringueiros, liderados por Chico Mendes, tendo cumprido relevante papel político, no processo constituinte de 1987-1988, durante o qual resultaria emblemática a cena em que Ailton Krenak aparece pintando a cara, enquanto falava aos parlamentares.   


Nos anos 90, tendo retornado a Minas Gerais, continuando seus esforços de reunir e organizar os povos indígenas cria o Núcleo de Cultura Idigena passando a ensaiar relevantes experiências organizativas e formativas dos povos originários, empreendimentos que alcançaram crescente notoriedade, tanto no âmbito nacional como em escala internacional.   


Entre as iniciativas que Ailton Krenak protagonizou, já no final dos anos 90/inícios dos 2000, tem a ver com a publicação de seus escritos e documentários, dentre os quais destacamos “O eterno retorno do Encontro”, escrito publicado no livro “A outra margem do rio” organizado por Adauto Novaes (199), e a longa entrevista concedida para o Museu da pessoa, 2007/2008, em que revela “memórias de sua infância e sucessivas migrações que passaram ao longo do processo de ocupação de territórios por eles habitados”. 

Em seu fecundo acúmulo de saberes recolhidos da íntima convivência com os povos originários do Brasil, das América do Norte (do Norte, Central, do Caribe e do Sul e do mundo), Ailton Krenak segue sendo uma das principais referências de intérpretes do Brasil e do mundo, especialmente no que tange ao enfrentamento aos crescentes apelos distópicos e necrófilos das práticas, dos valores e da ideologia do Capitalismo, em sua faze/fase imperialista que vem se expandindo sobretudo há algumas décadas, em escala mundial.


No caso específico do Brasil, na última década, uma das manifestações mais deletérias do Capitalismo ocorreu (ocorreu ou vem ocorrendo), em Minas Gerais, e mais especificamente na região leste do Estado, banhada pelo sagrado Rio Doce, com a ocorrência de dois gravíssimos crimes socioambientais, protagonizados pelas empresas transnacionais de mineração, inclusive a samarco, um em 2015 e outro em 2016, tendo provocado ampla devastação ao longo do Vale do Rio Doce, onde também se radica (no médio Rio Doce) a Aldeia Krenak, da qual Ailton é filho. Recusando-se a chamar tais crimes de “acidentes”, Krenak os classifica como incidentes na lista de crimes socioambientais praticados por aquelas empresas, não sem a cumplicidade dos entes estatais do Brasil, aos quais cumpriria, não apenas autorizar, mas igualmente exigir práticas preventivas, fiscalizar e punir os responsáveis por descumprimentos de normas preventivas. 


Das tantas atividades protagonizadas por Krenak, também fazem parte seus escritos e documentários. Dentre seus principais livros, podemos destacar: O lugar onde a terra descansa (2000); Ideias para Adiar o Fim do Mundo (São Paulo: Companhia das Letras, 2019); O Amanhã Não está à Venda (São Paulo: Companhia das Letras, 2020); A Vida Não é Útil (São Paulo: Companhia das Letras, 2020); Futuro Ancestral (São Paulo: Companhia das Letras, 2022); Kuján e os Meninos Sabidos (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2024) .


Quanto a seus aportes artísticos - lembrando tratar-se do principal protagonista do Núcleo de Cultura Idigena - a que destacamos apenas: Ailton Krenak - O Sonho da Pedra (2018); Participação no documentário Guerras do Brasil;  Participação no TEDTalks: Life, Always: Aílton Krenak at TEDxVilaMadá; Participação no documentário Kopenawa: Sonhar a Terra-Floresta.



O que aprendemos com Ailton Krenak?  


Ao revisitarmos o legado de cada figura que consideramos intérprete do Brasil estamos cônscios de que tomamos apenas algumas de uma vasta constelação, ao mesmo tempo em que de seus aportes, sem desconhecer também seus inacabamentos. Neste exercício contínuo da memória histórica dos oprimidos, ao buscarem destacar contribuições específicas de cada um, de cada uma também não abrimos mão de sublinhar seus pontos comuns. É o que, também aqui, buscamos apontar. Um rápido exame das contribuições destacadas, nestas páginas, nos ajuda a perceber, por exemplo, diversas afinidades eletivas observáveis entre a dos povos originários e cosmovisão dos povos afro-diaspóricos principalmente quando as contrastamos com a cosmovisão dos povos ocidentais.  


Percebemos, por exemplo, que os povos originários e os povos afrodescendentes se mostram em comunhão com a Mãe Terra e os demais e os  seres do Planeta - os animais, os vegetais, os minerais, além dos humanos. Diferentemente dos povos ocidentais ao fazerem uso da razão, não a absolutizam reconhecendo e dela fazendo uso como um dom precioso, a exercitam em harmonia com outras dimensões igualmentes relevantes para a condição humana: afetividade, o bem querer, o agir e a forma de se comunicarem. Não se sentem superiores - tão pouco donos -, aos demais seres da Terra, mas em harmonia vital com todos eles, conscientes de que, em sua diversidade, formam uma unidade no seio da Mãe-Terra. À diferença dos ocidentais não tratam os demais seres nem a própria Mãe Terra como  mercadoria, meros objetos de sua propriedade, destinados ao comércio, conforme seus caprichos. 


Voltando-nos mais diretamente à trajetória de Ailton Krenak seja pela suas tantas exposições e entrevistas, seja pelos seus escritos, aprendemos que nossa condição humana, longe de estar assegurada apenas pelos humanos, só se mantém graças às efetivas relações com os demais seres. Na atual quadra histórica de barbárie capitalista, hegemonizada por práticas da extrema Direita, em escala mundial, inclusive no Brasil, o atual modo de produção de consumo e de gestão se tem distanciado cada vez mais do processo de humanização, a medida que: 

  • Transformam o Planeta e seus habitantes em mera mercadoria destinada à satisfação dos caprichos mortíferos de uma minúscula parcela de plutocratas;

  • Agride mortalmente oceanos, solos, subsolos, matas, animais e florestas, e os próprios humanos condenando-os a um processo de morte;

  • Destroi os bens fundamentais, transformando-os em meros recursos ou mercadorias de consumo;


Fazendo coro com outras vozes proféticas, inclusive com a anarquista Marília Lacerda de Moura, Ailton Krenak também denuncia o especismo, prática ainda tão presente em nossos tempos, graças a qual os humanos teimam em pretender-se superiores ou mesmo donos dos demais seres, inclusive sob inspiração de várias correntes religiosas, das quais não se pode excluir o próprio cristianismo, em sua versão hegemônica. 


Enquanto componentes e militantes das organizações de base de nossa sociedade, sentimo-nos interpelados ao contínuo exercício da memória histórica, como alavanca de resistência e de enfrentamento das forças necrófilas hegemônicas em nossos dias.


João Pessoa, 05 de fevereiro de 2025                


   








                                                                    


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