JESUS
VIVE, APESAR DE NOSSAS IGREJAS: notas a partir dos capítulos finais do livro
"Jesus, aproximação histórica", de autoria do teólogo José Antonio
Pagola
Alder Júlio Ferreira Calado
A menos de uma semana da celebração da festa do nascimento de Jesus,
no mundo cristão, ocorre-nos refletir sobre o papel dos cristãos no mundo de
hoje, à luz do que os Evangelhos relatam sobre o próprio Jesus, suas palavras,
seus gestos, suas posições. Um olhar crítico sobre o que Jesus fez e anunciou,
por um lado, e o que andam fazendo os que se dizem seus seguidores, por outro
lado, revela um grande fosso, um gigantesco hiato, seja no que se tem
observado, salvo exceções, nas igrejas cristãs, seja em parte considerável de
seus membros, em especial seus dirigentes. Como a festa do Natal do Senhor
também se presta para um momento propício à conversão, quem sabe se as linhas
que seguem, nos podem trazer algum estímulo, nesse sentido...
As pesquisas realizadas pelo teólogo espanhol José Antonio
Pagola, que lhe tomaram anos e anos de trabalho, e que culminaram no livro
“Jesus, aproximação histórica”, seguem provocando, numa série considerável de
edições, mundo afora, impactos significativos. Pela relevância das fontes por
ele consultadas, bem como pela abordagem que priorizou, demo-nos ao trabalho
de, ao longo da leitura desta obra, feita em grupo (o Grupo Kairós, por
sugestão de um de seus membros, João Fragoso, nele vem trabalhando
semanalmente, desde fevereiro do corrente ano), compartilhar diversos textos
com notas acerca de vários pontos dele – nele colhidos. As presentes linhas têm
o propósito de trazer à tona aspectos relevantes, concernentes aos últimos
capítulos do livro, com objetivo, de não apenas ajudar a divulgar e a
incentivar a leitura desta obra, mas sobretudo de chamar a atenção para os
descaminhos e os escândalos crescentes, observáveis nas práticas de não poucos
que se confessam cristãos, em especial Igrejas e/ou seus dirigentes.
Há, com efeito, episódios e acontecimentos protagonizados por
Igrejas Cristãs e seus membros – em especial, seus dirigentes – que bradam aos
céus, pela evidente incoerência infidelidade e distanciamento dos valores
essenciais do Reino de Deus, anunciado e inaugurado por Jesus. Como entender tais
desencontros e tais escândalos especialmente quando praticados “em nome de
Deus” ou do Evangelho?
Diferentemente da pregação irenista (passiva, pacifista,
semelhante à “pax romana”...), muito frequente, e por vezes abusiva, por parte
de “televangelizadores” e dirigentes eclesiásticos, os Evangelhos nos trazem um
outro perfil de Jesus, o de um profeta do Reino de Deus que, pela fidelidade ao
Projeto do Pai, e conduzido pelo Espírito Santo, não hesita em defender e
promover a causa libertária dos pobres, dos rejeitados, dos injustiçados dos
desvalidos o que acende a ira dos privilegiados de todos os tempos e lugares. É
inconcebível com efeito, pretender-se defender e promover os direitos dos
“debaixo”, e, ao mesmo tempo, satisfazer aos interesses dos privilegiados:
"Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou
se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao
Dinheiro". (Mateus 6:24)
Em seu tempo de vida pública, Jesus teve que enfrentar, com
frequência, situações conflitivas, diante das quais não se omitiu, mas buscou
responder à altura, sempre denunciando os privilegiados daquela sociedade – os
sumos sacerdotes, os doutores da lei, os escribas, os fariseus, os
representantes da dominação romana... a este respeito, várias são as passagens
evangélicas que atestam a firme posição do “Profeta itinerante do Reino de
Deus”, a exemplo (só para mencionar um) de suas invectivas proferidas contra a
elite do seu tempo, das quais tratamos de sublinhar do capítulo 23 de Mateus
alguns versículos:
- “Os
mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. (v.2)”
- “Tudo o que
fazem é para serem vistos pelos homens. Eles fazem seus filactérios bem largos
e as franjas de suas vestes bem longas (v.5)”;
- “Mas vocês não
devem ser chamados mestres; um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são
irmãos. (v.8)”;
- “Tampouco vocês
devem ser chamados “chefes”, porquanto vocês têm um só Chefe, o Cristo. (v.10)”;
- “O maior entre
vocês deverá ser servidor. (v.11)”;
- “Ai de vocês,
mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o Reino dos céus diante dos
homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de
fazê-lo. (v.13)”;
- “Ai de vocês,
mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês devoram as casas das viúvas e,
para disfarçar, fazem longas orações. Por isso serão castigados mais severamente.
(v.14)”;
- “Ai de vocês,
mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro
e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a
justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês devem praticar estas coisas, sem
omitir aquelas. (v.23)”;
- “Guias cegos!
Vocês coam um mosquito e engolem um camelo. (v.24)”;
- “Ai de vocês,
mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do
prato, mas por dentro eles estão cheios de ganância e cobiça (v.25)”;
- “Ai de vocês,
mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados:
bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de
imundície. (v.27)”;
- “Assim são
vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia
e maldade. (v.28)”;
- “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus,
hipócritas! Vocês edificam os túmulos dos profetas e adornam os monumentos dos
justos. E dizem: “Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados,
não teríamos tomado parte com eles no derramamento do sangue dos profetas”. Assim, vocês testemunham contra si mesmos que são
descendentes dos que assassinaram os profetas. (v.29-31)”;
A quantas situações concretas da atualidade nos remete
cada uma destas invectivas! Vale a pena tomarmos um tempo mais amplo para
refletirmos sobre tais situações. Convém, todavia, que, antes de apontar o dedo
para outrem, tratemos de nos colocar, primeiro, como alvo dessas invectivas. De
todos os modos, os contratestemunhos provocam profundos estragos à
credibilidade dos que se proclamam cristãos... Num rápido balanço da ação dos
cristãos no mundo atual, inclusive no Brasil, e tomando como referência o
critério evangélico, segundo o qual “pelo fruto se conhece a árvore”, não nos
sentimos confortados, muito menos seguros, da contribuição que se espera dos
cristãos como cidadãos do Reino de Deus, em sua atuação no mundo. Chamados a
ser “fermento na massa”, não raramente nosso comportamento tem sido, antes, de
joio ou de cizânia, haja vista o que sucedeu no mais recente processo
eleitoral, no Brasil. Sob vários pontos de vista, os critérios de escolha de
parcelas consideráveis de cristãos (católicos, protestantes, neopentecostais...)
pouco têm a ver com o perfil de Jesus, tal como traçado nos Evangelhos:
- Como escolher eleger candidatos e candidatas que se
mostram insensíveis aos clamores dos pobres (povos indígenas, quilombolas,
camponeses, operários...)?
- Como escolher candidaturas que se mostram insensíveis
aos direitos e dignidade das mulheres, das pessoas homoafetivas...?
- Como escolher candidaturas de pessoas ostensivamente
movidas pelo ódio e pelas constantes ameaças de violência como recurso para
equacionar os problemas nacionais?
- Como eleger candidaturas comprometidas com os
interesses das grandes transnacionais atuando em diversos ramos da economia, em
desfavor da dignidade dos “debaixo”, e, sobretudo em desrespeito a Mãe-Terra.
Consola-nos, por outro lado, ter presentes os belos
testemunhos presentes nas “correntezas subterrâneas”.
E não venham dizer que, se assim agiram cristãos e
dirigentes de tantas Igrejas, o fizeram por falta de opção, até porque, neste
caso, teriam, sim, a opção de votar nulo ou branco...
Escândalos e contratestemunhos de igrejas cristãs e/ou de seus
membros, acentuado distanciamento dos valores do Reino de Deus se apresentam
como verdadeiros e grandes desafios para as “Minorias Abrahamicas”, chamadas a
serem testemunhas proféticas do Reino de Deus e Sua justiça, principalmente em
tempos tenebrosos como os em que vivemos.
Várias outras
passagens aludem igualmente à firme posição de Jesus, diante de situações de
injustiça e de opressão praticadas pelos “de cima” contra os mais vulneráveis. Baste-nos
recordar a ira profética de que Jesus foi tomado, ao observar que o templo de
Jerusalém se convertera num antro de ladrões e salteadores, em nome da Lei ou
em nome de Deus... (cf. Mt 21, 12-14).
Retomando aspectos relevantes do livro ora comentado, eis
alguns aspectos que julgamos oportunos e relevantes, a serem destacados do
capítulo XII (“Conflitivo e perigoso”). No final deste capítulo e no início do
capítulo XIII (“Mártir do Reno de Deus”), o autor do livro nos traz preciosos
episódios protagonizados por Jesus, como o de sua despedida, na última Ceia, em
duas emblemáticas cenas: a da bênção e partilha do pão e do vinho, e a do Lava-pés.
No caso da bênção e da fração do pão e da distribuição aos seus discípulos do
pão repartido e da partilha do cálice de vinho, Jesus resume, de modo didático
e contundente, o cerne da Boa Notícia por Ele anunciada, testemunhada, e à qual
Ele foi fiel, até o fim: repartir a própria a vida, doar sua vida em resgate de
muitos, de todos, testemunhando a olhos vistos que “Ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos.” (João, cap. 15:13). Aí se
condensa seu anúncio do Reino de Deus contra o qual nenhuma força humana pode
impedir. Nem a própria morte, pois o Amor é mais forte do que a morte. Aí se
acha o cerne do seu Evangelho, a ser seguido por seus discípulos e discípulas.
A segunda cena, à qual acima aludimos, e que se acha
intimamente associada à anterior (a da bênção e partilha do pão e do vinho como
memorial de Si próprio) desponta igualmente tocante, pelo teor de sua mensagem:
Jesus põe-se a lavar os pés de seus discípulos, numa atitude de autêntico
serviço humilde ao próximo, recomendando aos seus discípulos e discípulas que
façam o mesmo. Note-se que Ele não manda que outros façam, mas é o primeiro a
fazer o que recomenda aos outros.
É com esta marca tão Sua, que recebe do Pai força para
enfrentar o caminho da cruz, não como uma opção sua, mas, antes, como condição
de sua fidelidade ao Projeto de Deus, rejeitado pelos grandes e poderosos, que o
levaram à condenação à pena máxima e mais ignominiosa – o suplício da cruz,
reservado aos considerados mais perigosos e ameaçadores da ordem vigente, da “pax
romana”. O processo de Jesus – perseguição, detenção, interrogação, humilhação
pública, suplício, inclusive com coroa de espinhos, crucificação... – revela
sinais evidentes da recusa taxativa, por parte dos setores dominantes daquela
sociedade (como de todo o Projeto anunciado, proposto e testemunhado fielmente
por Jesus, até o fim, a despeito do medo, do abandono de não poucos de seus
discípulos). Cumpre observar que, nos momentos mais cruciais, foram as mulheres
e um ou outro de seus discípulos que, solidários, se puseram ao seu lado...
Malgrado toda sorte de adversidade que Jesus teve que
enfrentar, mais forte falou sua confiança no Pai. E não foi em vão: por Deus
Ele ressuscitaria, e se faz presente, ontem como hoje, naqueles e naquelas que
ousam testemunhá-lo.
Foi inspirado nessa confiança, que, já prevendo que seria
assassinado a mando do regime de El Salvador, Dom Oscar Romero não hesita em
afirmar que, se fosse assassinado, ressuscitaria na luta do seu povo. Nas “correntezas
subterrâneas, esta confiança segue firme, e “A esperança dos pobres vive e
viverá”...
Após contemplar diversos aspectos da Ressurreição de Jesus
(cf. cap. XIV: “Ressuscitado por Deus”), o autor cuida , no último capítulo de
sua obra (XV: “Aprofundando a identidade de Jesus”), de fazer uma bela sinopse
de suas pesquisas, fornecendo elementos sintetizadores acerca do que foi Jesus,
enquanto um judeu, vivendo e convivendo com o seu povo; acerca de como se
portava o vizinho de Nazaré, como se deu seu aprendizado, desde criança e
jovem, com o que observava e assimilava da vida de sua gente; sobre qual era o
perfil do “buscador de Deus”; sobre como se deu a atuação inicial deste “profeta
do Reino de Deus”, sobre como se revelava um curador e um Mestre de vida;
sublinha belíssimas passagens deste “Poeta da Compaixão”, deste “Amigo da
Mulher”. Ajuda-nos a mergulhar no cerne da espiritualidade de Jesus, este “crente
fiel”. A mística revolucionária de Jesus é que o preparou e o manteve firme
para enfrentar todo tipo de perseguição, inclusive o caminho da cruz,
confiante, sempre, no Projeto do Pai, que o ressuscitaria, lá onde estivessem dois
ou três reunidos em seu nome. Os sinais
de sua Ressurreição aparecem numerosos, em especial entre aqueles e aquelas que
não se cansam em testemunhar as marcas de seu Projeto – de defesa e promoção
dos “Últimos”, de denunciar toda sorte de exploração, dominação e
marginalização; a partilha, a solidariedade samaritana, a ousadia de irmos
ensaiando passos na construção de uma nova sociedade, alternativa à barbárie
capitalista.
João Pessoa, 20 de dezembro de 2018
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