QUEM DEVE A QUEM? Questionamentos acerca de uma história mal contada
sobre saqueadores seculares de riquezas de povos e nações e a situação atual de
suas vítimas...
Alder Júlio Ferreira Calado
Nossa América Latina
Pátria Grande e generosa
De seus bens já não mais goza
Sua riqueza se destina
A cumprir a triste sina
Sob o império de outra lei
A tornar mais rico o rei
Diz assim, na agonia:
Paguei mais do que devia
Devo mais do que paguei
Desde algumas décadas atrás, vem-se assistindo a uma exasperação de esdrúxulos
mecanismos de endividamento de nações e povos inteiros, mundo afora,
marcadamente nos países periféricos do Capitalismo. Seus principais
beneficiários, os agentes do sistema financista, donos de escandalosos paraísos
fiscais, encarregados de guardarem e de esconderem todo tipo de dinheiro sujo, proveniente
inclusive da indústria e comercio de armas e drogas, não cessam de festejar
sucessivos recordes de lucros. De onde virá tanta riqueza fácil? De um conjunto
articulado de fontes escusas, dentre as quais aqui nos ocuparemos de uma: os lucros
obtidos em função do negócio das dívidas escandalosamente acumulados à custa da
fome e da miséria de povos inteiros e nações, em várias partes do mundo. Também
na América Latina.
Multiplicam-se as pesquisas e os estudos realizados por órgãos e
instituições de reconhecida competência técnica, dando conta dos procedimentos
e mecanismos espúrios e artificiais de imputação de dívida e multiplicação
abusiva dos montantes das dívidas a esses países. Em não poucos casos, o
pagamento de tais "dívidas eternas" alcança mais da metade do total
do orçamento desses países, implicando, de um lado, o crescimento odioso de um
pequeno grupo de plutocratas-sanguessugas, e, de outro, a multiplicação
assombrosa dos índices de desigualdades sociais, nas mais distintas áreas da
realidade social.
Iniciativas reclamando revisão de tais injustiças têm sido levadas a
termo por vários países, dentre os quais o Equador. Todavia, até para solicitar
revisão da imposição unilateral desses mecanismos perversos de endividamento,
as nações encontram tremendas barreiras: desde o servilismo de seus governantes
ao sistema imperante às ameaças de toda sorte que lhes são lançadas, direta ou
indiretamente, pelos algozes, que se reclamam credores.
Com o propósito de compreender melhor os fatores axiais deste sistema de
exploração, tratamos de examinar brevemente raízes mais fundas deste processo.
Ganância, corrupção, violência, roubo, dominação – eis alguns dos componentes
inseparáveis de pessoas e grupos tomados por um projeto de poder, a ser
implementado, custe o que custar. Também presentes estiveram tais componentes,
no coração, na alma e sobretudo nas ações dos protagonistas do processo de
colonização. Não bastassem as dezenas de milhões de assassinatos ou chacinas
cometidas contra os aborígenes americanos, desde as primeiras décadas de
colonização, eis que prosseguiria, impassível, e voraz, a fome de poder dos
colonizadores, empenhados em extrair riquezas deste continente
recém-"descoberto" por colonizadores europeus, quando estes povos
aborígenes aí vivem a quarenta mil anos... A este respeito é vasta a literatura
no campo da História. Um dentre tantos analistas deste período, o uruguaio
Eduardo Galeano tornou-se célebre por alguns de seus livros, a começar pelo
intitulado "As Veias abertas da América Latina”. Trata-se de um
clássico do gênero que vai à raiz do processo de enriquecimento de países
europeus, feito literalmente à custa do suor, do sangue e das riquezas minerais
da América Latina além dos profundos estragos infligidos à Mãe-Terra. Há quem
afirme terem sido extraídos e transportados para a Europa, entre 1503 e 1660,
nada menos do que 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata (cf. o
teor do protesto feito pelo Cacique Guaicaipuro Cuautémoc, cuja leitura
recomendo: https://www.aporrea.org/actualidad/a5059.html)
Acerca do pronunciamento do Cacique Guaicaipuro Cuautémoc, chama-nos a
atenção sua linha de argumentação, dirigida aos povos europeus envolvidos na
pilhagem das riquezas latino-americanos, durante o processo de colonização,
apenas fixando-se entre o período compreendido dentre 1503 e 1660. Seguindo os
critérios próprios da economia capitalista – que não são os dele -, o Cacique põe-se a expor uma
sequência lógica e sociológica de argumentos fáticos:
- ao considerar os colonizadores ironicamente como cristãos, contém-se
em acusa-los de pilhadores das riquezas que inundaram a Europa, trazidas do
continente americano;
- o cacique prefere interpretar o feito como uma tomada de empréstimo
atípica;
- como todo empréstimo, também aquele, pela regras do jogo do Mercado
capitalista, implica o compromisso de pagamento;
- todo pagamento de uma dívida implica cobrança de juros e outros
serviços do gênero;
- considerando que, entre a
tomada dos primeiros empréstimos, em 1503, já alcançam cinco séculos, é claro
que o acúmulo de juros sobre juros, ano por ano, acarreta um montante
assombroso;
- além de tal pagamento ainda deve ser tomado em conta o massacre de
milhões de aborígenes, sangue que não tem preço, mas implica punição dos culpados...
E por aí segue a lista de cobranças feitas pelo cacique aos
colonizadores europeus...
Pois bem, diante da crueldade com que os mesmos “tomadores” hoje lidam
com imputadas dívidas de tantos povos e nações, brada aos céus o tamanho da
insensibilidade dos novos colonizadores, diante das injustiças, primeiro, do
processo abonável dos mecanismos de cobrança de duvidosas dívidas; em segundo
lugar, pela indiferença diante do crescimento da miséria de milhões e milhões
de seres humanos, nos diversos continentes, acusados de grandes devedores...
Note-se que aqui só tomamos em consideração a pilhagem empreendida pelos
colonizadores da América Latina, no que se refere ao roubo de ouro e prata... O
quê dizer de outros metais preciosos, até hoje levado a efeito? O quê dizer do
super-lucrativo comércio de africanos e africanas aqui escravizados, somando
cerca de mais de 3,5 milhões? O que dizer da pilhagem praticada, ainda hoje, no
continente africano e na Ásia?
E hoje, sem que os cristãos ocidentais tenham renunciado à sua
cobiça de terras e riquezas de outros povos e nações, ao redor do mundo, são
parcelas crescentes das vítimas desses países que, desta vez, pedem entrada na
terra dos seus invasores, na condição de migrantes forçados, rejeitados e
maltratados por cristãos que celebram o Natal de Jesus, que lhes diz: “O que
vocês fizerem a um desses irmãos, é a Mim que o estão fazendo”...
João Pessoa, 24 de dezembro de 2018
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