MOVIMENTOS
POPULARES E ORAGANIZAÇÕES DE BASE, NO BRASIL: refontização como condição de
retomada de seu potencial transformador
Alder Júlio Ferreira Calado
Solidários a quem, nos últimos tempos, vem chamando a atenção
de nossas organizações de base – em especial dos movimentos populares
(inclusive os mais ligados à chamada “Igreja na Base” – para a necessidade e
urgência de esboçarem sinais convincentes de uma autocritica, ousamos retomar a
reflexão, desta vez, para ponderar acerca de um fenômeno pouco destacado em
textos analíticos da atual crise, em que vive mergulhada nossa sociedade, e que
tem a ver com os descaminhos daquelas forças sociais historicamente
vocacionadas a atuarem como sujeitos de transformação. Referimo-nos a uma
espécie de desfontização, isto é, à crescente tendência de subestimação ou
mesmo de abandono de suas principais fontes de inspiração, seja no tocante às
forças que se querem inspiradas na Filosofia da Práxis (da qual o legado
Freireano, é instigante interlocutor), seja daquelas que têm na corrente
conhecida como Teologia da Libertação, suas fontes principais de referência. As
linhas que seguem, têm como objetivo ajudar a retomar o debate sobre esta
questão. Iniciamos por refrescar a memória de elementos axiais, característicos
do nosso processo organizativo e formativo, e de mobilização, vivenciado em
final dos anos 70/ inicios dos anos 80, no Brasil e na América Latina. Em
seguida, cuidamos de assinalar uma sucessão de revezes históricos de nossas
organizações de base, graças ao abandono ou à insuficiência de seu empenho
organizativo, formativo e de luta, inspirado em suas principais fontes de
referência. Por último, tratamos de fornecer algumas pistas, a título de ensaio
de passos, na busca de retomada, em novo estilo, da necessária refontização.
1. Breve rememoração de nossas referências
teórico-práticas...
Em fins dos anos 70/começos dos anos 80,
ainda durante a ditadura civil-militar, chama a atenção o fecundo investimento
exercitado pelos movimentos populares e por nossas organizações de base em
bebermos principalmente em duas fontes organicamente articuladas: a do legado
marxiano (em interlocução com a Educação Popular de matrix Freireana) e a da
“Igreja na Base” (inspirada principalmente na Teologia da Libertação).
Em cada uma dessas
principais referências teórico-práticas, tratemos de rememorar os pontos
considerados mais fortes.
No caso do legado marxiano, nossa atenção se voltava,
fundamentalmente para os seguintes aspectos:
- o esforço continuado em fazer uma análise objetiva da realidade objetiva, isto é: potenciar o
empenho numa leitura acurada, servindo-nos de conceitos considerados mais
eficazes de uma aproximação mais objetiva da complexidade daquele contexto
histórico. Neste sentido, cuidávamos em priorizar conceitos tais como: “Modo de
produção”, “Formação social “luta de classes”, “Mais valia”, “Classe
Trabalhadora”, “Consciência de Classe”, “Estado”, “Alienação”, cuja aplicação se buscava sempre ancorar em
relevantes princípios como o do Movimento, o da transformação universal, o da
interconexão, o da unidade dos contrários, etc. Eram princípios como estes que,
trabalhados à base da prática como critério de verdade, ajudavam os militantes
– homens e mulheres – a ter claras distinções tais como origem de classe,
posição de classe, protagonismo nas decisões tomadas pela base, alternância de
cargos e funções, a função de delegação, entre outras.. Mas, não se tratava apenas
de ter clareza sobre tais conceitos. Mais importante ainda se sentia a
necessidade de se examinar se e como cada um deles se aplicava ao contexto
concreto, também no exercício de análise de conjuntura. De modo semelhante,
tínhamos como fundamental um cuidadoso exercício (coletivo e pessoal) de
levantar sobre a realidade em análise os mais diversos ângulos sob os quais ela
precisava ser analisada, isto é, não se poderia contentar com um exame apenas,
do ponto de vista econômico, mas igualmente examinar como os fatos econômicos
se associavam organicamente ao contexto político e cultural.
Se enraizavam diversas
formas de atuação desses militantes, seja no campo da organização, seja no
terreno do processo formativo, seja nas ações de mobilização e lutas sociais
mais diretas. Não apenas em cada uma destas, mas sobretudo em seu
interrelacionamento. Tratemos de trazer alguns exemplos ilustrativos, acerca
disto.
No campo organizativo, por exemplo, aprendia-se que a força e
a eficácia de nossas ações organizativas residiam no jeito de nos organizarmos.
Um desses jeitos – e não o menos
importante! – consistia em que, se o nosso grande objetivo era o de ajudarmos a
construir as bases de uma sociabilidade alternativa à barbárie capitalista,
tínhamos, não apenas de nos esforçarmos (coletiva e pessoalmente) em manter
sempre aceso este rumo, ou seja, manter firmes os traços fundamentais do rumo
almejado, da nova sociedade, mas igualmente nos comprometermos com os caminhos
coerentes com tal rumo. A liberdade que almejávamos só seria acessível por caminhos
também de liberdade. Isto já nos predispunha a manter-nos alertas em relação
aos modos convencionais de organização, como os seguidos pelas forças sindicais
hegemônicas, pelos grupos partidários convencionais. Estávamos convencidos de
que tínhamos que seguir à contra-corrente de suas práticas e concepções.
Em termos práticos, isto significava,, do ponto de vista
organizativo, priorizar iniciativas tais como:
- Levar um estilo de vida próximo das bases;
- Criar e promover núcleos (pequenas comunidades, conselhos
populares, círculos de cultura ou que outro nome tivessem), nos mais variados
lugares: nas fábricas, nos bairros periféricos, nas universidades, nos
colégios, nas pequenas comunidades rurais, nos ambientes de trabalho, etc.);
- Assegurar condições para o exercício da autonomia, em
relação ao Mercado e ao Estado, por meio do autofinanciamento, recorrendo aos “tostões”
de seus membros, como contribuição regular;
- Assegurar a tomada de decisões pela base, compartilhando-as
à outras instâncias, por meio de seus delegados e delegadas;
- Garantir o rodízio ou alternância de cargos e funções, de
modo que, passado o período de sua gestão, quem está na coordenação volte para a
base, e quem é da base venha ocupar a coordenação;
- Investir no estudo continuado dos bons clássicos e contemporâneos;
- Promover a circulação regular de revista e jornais, de caráter
informativo e formativo...
O diferencial desse jeito organizativo reside no investimento e cultivo
incessante do protagonismo comunitário, isto é, na ação animada, sob os mais
diversos aspectos, pelo conjunto dos protagonistas, não se abrindo brecha para
oportunicistas e controladores individuais ou de pequenos grupos. Mas, isto só
se torna exequível, se e quando o processo organizativo caminha de braços dados
com o processo formativo. Um coordenar ou um pequenos grupo de direção
até pode tentar controlar a base, mas só se esta não estiver metida num
processo de formação crítica, capaz de anular qualquer esboço de manipulação
por parte de um membro ou dirigente ou de um pequeno grupo. Lá onde isto não
teml ugar, o campo fica escancarado à ação deletéria de espertalhões, com
vistas à imposição dos próprios interesses e projetos, com e pior: com a
urgência e coonestação da própria base, aí transformada em massa de
manobra.
Um de tantos casos, nesse campo, se dá, quando a forte desconfiança que
antes se tinha do Estado, enquanto capaz de protagonizar mudanças substantivas
do interesse dos "de baixo", passa ser usado e abusado, como
instrumento de mudança de mudança social, conforme a aposta e interesses de um
pequenos grupo, ávido de poder e de alcançar seu projeto, por mais que insista
em tratar-se de um um projeto "da Classe Trabalhadora"...
Acrescentar: Autonomia, postura ética, crítica e autocrítica
2.
Em que resultaram a crescente inobservância e o
abandono das fontes teórico-práticas de referência?
Em vez da busca de uma nova sociedade, a opção recauiu no
investimento em um novo Estado.... Diversos são os dados de pesquisa dando
conta dos frutos alcançados por nossas organizações de base e movimentos populares,
enquanto foram levadas a sério suas principais fontes de referência, inclusive
no campo de conquistas relativas à reforma agrária. À medida, porém, que tais
referências prático-teóricas passaram a ser secundarizadas ou mesmo abandonadas,
eis que graves consequências foram sucedendo-se, dentre as quais destacamos
algumas, de passagem:
-o aliancismo como estratégia “necessária”, dando lugar
contribuindo progressivamente para a perda de identidade de classe, bem como da
autonomia em relação ao mercado capitalista e ao seu Estado;
-inversão de prioridades ético-políticas: em vez de
fortalecimento dos núcleos, a corrida pelos espaços estatais...
- Em vez de um sindicalismo de base e combativo, prevalece um
sindicalismo de resultados e atuando como correia-de-transmissao do Partido...
-Dependência dos recursos do Estado e do Mercado, em vez da
aposta nos próprios tostões...
-Em vesz de decisõespela base, o investimento progressivo numa
condução feita uma pessoa ou por um pequeno grupo...
-Em vez da aposta em projetos populares, a avidez pelas
grandes obras, denunciadas, no período da ditadura civil-militar, a justo
título, como “obras faraônicas” (a exemplo das grandes hidrelétricas e da
própria transposição de água de São Francisco;
-A embriaguez pelo poder acirra a estratégia de agradar dois
senhores...
- O enraizamento nos espaços populares sede lugar à opções por
espaços privilegiados e o consequente abandono das bases...
3. Que lições recolher, em vista da necessária
retomada, em novo estilo?
Diante de tantos e tão graves reveses, impõe-se recolher
lições ainda que duras, no sentido de um efetivo exercício de autocrítica,
menos por palavras e mais por práticas convincentes. Exercício de autocrítica a
ser seguido de iniciativas concretas, em vista da retomada, em novo estilo, do
Trabalho de Base, tanto no que se refere às ações de caráter organizativo,
tanto no tocante às tarefas formativas, quanto aos compromissos de mobilização.
Tarefas estas a serem retomadas a partir das referências teórico-práticas acima
mencionadas.
Concretamente, que passos poderiam ajudar nesta retomada do
trabalho de base, que tal pensar nas seguintes sugestões sugestões?
-Não seria interessante mostrar sinais concretos de autocritica,
não tanto por palavras ou promessas, mas por práticas efetivas?
-Em vez da avidez por vanguardismos inconsistentes, po que não
participar em pé de igualdade de uma retomada, em novo estilo?
- Que tal retomar a criação e ampliação de núcelos e conselhos
populares?
- Não será o caso de combatermos o caciquismo, retomando as
práticas comunitárias características
das origens, reinvestir no mecanismo da alternância e no princípio da delegação?
-Que tal retomar práticas por meio de condições favoráveis ao
exercício da autonomia (em relação ao Estado e ao Mercado), por meio do
autofinanciamento?
- No plano formativo, que tal reinvestir na memória histórica
dos oprimidos valorizando e incentivando o estudo comunitário da contribuição
dos movimentos populares no mundo, na A. Latina e no Brasil?
- O que dizer do incentivo à leitura em grupo de biografias de
figuras revolucionários e revolucionárias de ontem e de hoje?
- Que tal, em vez de centrar toda a atenção formativa apenas
na esfera política, ampliar o alcance da formação, de modo a alcançar tantas
outras dimensões do processo de humanização?
-Por que não retomar as relações internacionalistas, em novo
estilo?
-Não será fundamental priorizarmos a necessidade de mudança de
estilo de vida (mais próximo da população, com sobriedade e simplicidade de
vida, priorizar as lutas em defesa e promoção da Mãe-Terra?
- Em breve, não será o caso de fortalecer a sociedade civil,
empoderando-a, com base na reconquista da confiança e da solidariedade popular?
João Pessoa, 28 de dezembro de 2018.
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