domingo, 17 de setembro de 2023

“Uma Filosofia da Literatura", de Marcelo Bezerra Oliveira

                                            Uma Filosofia da Literatura*


Filosofia da Literatura em uma perspectiva heurística: notas acerca do livro “Uma Filosofia da Literatura", de Marcelo Bezerra Oliveira           

                                                  Alder Júlio Ferreira Calado


Todo convite ao filosofar é bem-vindo, especialmente quando bem fundamentado do ponto de vista teórico metodológico. Marca genuína do autor tem sido o da problematização heurística. Enquanto trabalho sistemático de maior fôlego, este aparece como um dos portadores de notável pioneirismo, no espectro literário brasileiro.

Um dos seus pontos altos é o critério pertinente da seleção dos autores e autoras – alvo. Assim como Gramsci, o autor sustenta o direito universal ao filosofar. Esta obra se destaca tanto pela sua qualidade criativa, quanto pela amplitude temática desenvolvida


Tal é o apreço do autor pelo filosofar, que dedica em torno de 15 páginas do livro a refletir sobre os óbices múltiplos que, no Brasil, ainda persistem, dificultando e limitando o exercício do filosofar. Começa a destacar os obstáculos que a própria estrutura acadêmica dominante impõe a este exercício, seja pela imposição de uma política de produção filosófica artificial, embasada em uma estéril concorrência, um produtivismo mecanicista, seja por propagar um ensino dicotomizado em “ disciplinas” estanques.

Ao ressaltar os principais limites ao pensamento filosófico, faz questão de insistir nas condições indispensáveis ao exercício crítico sem liberdade, os humanos não alcançam o exercício do filosofar , a medida que não se sentem sujeitos cognoscentes, pois estão submetidos a contextos impositivos que lhes tolhem a capacidade crítica e autônoma, ao mesmo tempo em que não ousam o exercício do livre pensar, limitando-se a produzir textos de interesse alheio, descontextualizados de sua realidade. Neste sentido, tornam-se presas fáceis de uma produção filosófica eurocêntrica. 


Perguntando-se e refletindo acerca das possibilidades de uma filosofia da literatura, o autor, iniciando pelo sentido do filosofar, cuida de argumentar em torno do vasto campo cognitivo enfrentado pelo filosofar. Situada no mundo da Cultura entendida como mundo ou realidade, ele vai mostrando a complexidade e a vastidão do campo da filosofia, implicando toda uma diversidade de relações – econômicas, políticas, culturais, artísticas, religiosas, sócio- ambientais e outras sobre as quais incidem perguntas e possibilidades do filosofar.

No caso específico do livro, trata-se de se debruçar sobre as múltiplas relações oferecidas pela Arte ou pelas Artes , em cujo campo cognitivo se situa a Literatura. Sendo a transversalidade uma dimensão fundamental do saber filosófico, ele também se pergunta pelas relações cognitivas de caráter estético, entendendo deste mesmo campo fazer parte a Literatura.

Quanto à Literatura ou às Literaturas, o autor explicita o que é próprio desta Arte, exemplificando com os romances, os contos, as crônicas e outras manifestações do gênero de que vai se ocupar, especialmente no que concerne  à Literatura Brasileira, por meio da qual ele trata de refletir as diversas possibilidades cognitivas oferecidas pela Literatura, cujos autores nos trazem os mais diversos olhares sobre o mundo, sobre a natureza, sobre os humanos, em breve, sobre a vida. 

O capítulo 5º em que o autor explicita as referências teóricas em que bebe, em vista de sua incursão pelo filosofar estético, constitui um dos pontos altos o seu exercício, à medida que descortina ângulos novos  da análise e da fruição estético-literária. Ao recorrer ao baú estético marxiano/ marxista, o autor logra percorrer fontes mais límpidas do filosofar estético, por diversas razões. Compreende a obra de arte como expressão de múltiplas mediações. Diferentemente de uma concepção positivista que enxerga um quadro, por exemplo, como mero produto do seu autor, nele identifica uma multiplicidade de fatores: não se trata de mero reflexo do pintor, mas expressa tanto a autoria do pintor como as relações histórico-contextuais incidentes no próprio autor.

Ao revisitar, a partir de Marx ( especialmente, os “ Manuscritos Econômico- Filosóficos “ ,de 1844, e sua  “Ideologia alemã”, escrita em co-autoria com Engels), e toda uma plêiade de filósofos marxistas, inclusive  Trotskt, Lukács e Gramsci, sem esquecer a fecunda contribuição de Adolfo Sanchez- Vasquez, o autor descortina, com grande potencial heurístico, facetas surpreendentes do filosofar estético, com incidência direta também na Literatura.

No caso de sua revisitação a Trotsky e Lukács, vai destacar o exame percuciente  de suas categorias analíticas voltadas à Arte em geral, e à Literatura em particular, de modo a ressaltar, com brilhantismo, o caráter inovador de sua contribuição, à medida que conseguem superar as concepções até então dominantes de Arte e Literatura, ao perceberem a complexidade de mundivisões  nelas constantes. A grande contribuição marxista, no que concerne à reflexão antropo-filosófica do campo estético, reside em sua capacidade criativa e problematizadora, de modo a trazerem à tona as contradições e o caráter ambíguo da produção estética.  


Sempre teoricamente bem embasado nas dinâmicas relações Filosofia- História – Literatura, o autor, ao enfrentar a questão de gêneros literários, começa por apresentar (duas ou mais) concepções de Romance, passando, em seguida, a historicizar e caracterizar cada um desses gêneros. De fato, o surgimento do Romance, embora tendo raízes medievais, se realiza , na modernidade, como expressão do desenvolvimento  das relações industriais capitalistas , sobretudo a partir do século XVIII. Neste período, os textos literários compreendidos como Romance expressavam as marcas do ideário de uma sociedade marcada pelas contradições e ambiguidades que seus autores transpareciam em seus escritos, inspirados em narrativas exóticas, a revelarem situações e comportamentos normóticos, prisioneiros  da ideologia dominante.

Em contraposição a este formato de Romance, emergem figuras de romancistas dotadas de grande inventividade, a intuírem e a exercitarem um novo modo de fazer Romance, desta vez com enorme liberdade de criação, em razão do que preferem expressar sua rebeldia por meio de narradores dispostos a revelar sua própria trajetória, livres de amarras pré-determinadas. Desta segunda concepção de Romance fazem parte autores como Dostoievski, Balzac e, sobretudo, Walter Benjamin, a demonstrar a inventividade da corrente literária marxista, interpretando-os como profundos humanistas, isto é, conhecedores perspicazes da condição humana, seja nas atitudes éticas mais elevadas, seja nas piores misérias, de modo a nos fazerem lembrar o conhecido pensamento de Terêncio, poeta latino: “Homosum et nihil  humani a ne alienum puto” ( “sou um ser humano e nada do que é humano me causa estranheza”).                    


Páginas antológicas, escreve o autor, ao incursionar pela literatura produzida por autores com Albert Camus e João Paul Sartre, um filosofar profundamente marcado pelo que-fazer literário, a partir de um horizonte existencialista. Cada um ao seu modo, ambos apresentam uma reflexão literária problematizadora do existir. Neles, a condição humana é tematizada com profundidade  e amplitude. Neles, a existência é tematizada, em suas mais recônditas manifestações, desde o cotidiano como palco de experiências e aprendizados, em que se mesclam afetos, sentimentos, absurdidades, revolta, negação, esforço de superação. Seja no caso de Camus, em vários de seus livros, inclusive, “ O Homem Revoltado”, seja no caso de Sartre, em diversas de suas obras literárias e mais explicitamente filosóficas, a exemplo de “A Crítica da Razão Dialética” , cujo prefácio ( “questão de método”) acabou tornando-se igualmente famoso pela sua acuidade crítica.

À semelhança do que faz em relação a Camus e a Sartre, recolhendo o melhor da contribuição existencialista para a produção literária , o autor também aponta a contribuição de filósofos franceses tais como Deleuze e Derrida .

Após uma sólida fundamentação - com profundidade  e amplitude - do que-fazer literário , em geral, Marcelo Bezerra Oliveira passa a fazer uma detida incursão filosófica pela literatura brasileira, a começar pela influência barroca presente em nossos primeiros escritores, observando que se tratou de um período relativamente longo ( em torno de dois séculos) de nossa literatura e nomeando uma lista considerável de seus representantes. O autor ainda ressalta os principais traços do barroco, nomeadamente sua tendência ao uso de metáforas e linguagem hermética.

Após contextualizar, de forma minuciosa  e erudita, como lhe é de praxe, as origens e as características antropo-filosóficos das correntes Naturalismo/ Realismo, o autor relata e analisa , com acuidade, as marcas e as afinidades dessas Correntes de nossa Literatura. Faz questão de realçar suas ambiguidades e numerosas nuanças, de modo a prevenir a leitoras e leitores desavisados da complexidade destas formas literárias e seus respectivos autores. Dentre seus principais representantes, enfatiza figuras como a de Manuel Antônio de Almeida e, com mais ênfase, Machado de Assis.


Prosseguindo em sua refinada leitura filosófica de nossa Literatura, Marcelo Bezerra Oliveira cuida de ressaltar as mais destacadas figuras do Naturalismo / Realismo, tais como Domingos Olímpio ( Luzia-Homem ), integrante da conhecida Escola de  Recife, ( da qual também fizeram parte castro Alves e Tobias Barreto, entre outros), Manuel Oliveira Paiva ( Guidinha do Poço ), Manuel Antônio de Almeida ( Memórias de um Sargento de Milícias ), Aluízio de Azevedo ( O Cortiço ), chama atenção do leitor, da leitora a acuidade analítica do autor, ao ressaltar a relevância temática trabalhada por estes autores, ora enfatizando a dimensão homoafetiva presente nas temáticas desenvolvidas por Domingos Olímpio e Manuel Oliveira Paiva, ora trazendo à luz a  de classe social manifesta por Manuel Antônio de Almeida e Aluízio Azevedo, sempre demonstrando uma refinada  sensibilidade. 

Ainda nesta toada, o autor, ao revisitar Rodolfo Teófilo ( especialmente em sua obra A fome ) e Adolfo Caminha (notadamente em seu texto Bom Crioulo), ressalta traços semelhantes no tocante à dimensão da homossexualidade presente em suas personagens, ao mesmo tempo em que enfatiza seu potencial perceptivo das múltiplas relações (antropológicas, psicológicas, sociológicas, todas mediadas pelo pensar filosófico.

É- no entanto- e a justo título! a Machado de Assis que o autor dedica dezenas de páginas (em torno de 40). Com efeito, seja pela vastidão de seus escritos – poesia, romance, contos, crônicas...), seja sobretudo pela complexidade dos temas de sua preferência, é plenamente compreensível que o autor nele se tenha detido mais demoradamente de forma percuciente, pondo-se a analisar os escritos machadianos, de forma crítica e heurística, sempre atento a sua cosmovisão da condição humana, em suas contradições e ambiguidades, em suas luzes e sombras, destacando , ao mesmo tempo, seus intertextos e metatextos  perante  grandes escritores da literatura ocidental, a exemplo de B. Pascal, de Schopenhauer, entre tantos .

Digna de nota, em relação a sua análise sobre os escritos de Machado de Assis e de outros, é a capacidade que o autor exibe de identificar aspectos mais recônditos, extraindo valores de alto teor antropofilosófico, exercitando assim a excelência de sua “transcognitividade”, à medida que, qual tecelão de palavras, é capaz de revelar elementos quase invisíveis presentes na obra literária desses autores, ao exercitar uma costura erudita explorando as interfaces ora mais diretamente da Filosofia, ora da Crítica Literária, ora da Análise Sociológica, ora da Psicanálise, entre outros campos de saberes.

Isto sucede também no caso de Graça Aranha, outro personagem ilustre da Escola de Recife. O autor, uma vez mais, logra identificar elementos preciosos da obra de Graça Aranha, especialmente de seu “Canaã”, ao ressaltar a imensa sensibilidade  cósmica, deste ilustre maranhense,  em sua  contemplação da natureza, quase franciscana, ao mesmo tempo em que consegue trazer à tona sua acuidade na percepção das contradições e do drama social do contexto colonialista/ escravista  subjacente nas primeiras décadas do século XX ( e ainda hoje...).  


Ao imergir na densa obra de Euclides da Cunha, destacando especialmente a refinada expressão estética/ ética de os sertões, o autor consegue reunir elementos mais expressivos  do legado desta figura. Embasado em análises de reconhecidos críticos literários, historiadores da Literatura Brasileira e outros pensadores, Marcelo Bezerra Oliveira traz à tona os mais diversos traços da obra Euclidiana. Enfatiza sua múltipla formação intelectual – de engenheiro, de poeta, de cientista, exercitando diversos saberes ( da Geografia à Antropologia; da História a Zoobotânica; da Solidez Linguística e de Estilo Literário à Sociologia; da Antropogeografia ao Positivismo (comteano/ spenceriano...), o autor descortina um vasto leque de traços euclidianos, partindo de sua refinada qualidade de observador, destacando suas múltiplas e contraditórias formas de analisar, correspondendo também as múltiplas fontes em que bebeu, para relatar , em três grandes partes ( A Terra, O Homem e A Luta), sempre de forma profundamente poética, o genocídio contra a comunidade de Canudos, cometida pelo Exército Brasileiro. Cumpre, em breve, anotar que, tomando certa distância de avaliações unilaterais sobre o autor, Marcelo B. Oliveira, sempre bem fundamentado, tem o cuidado de exaltar as grandes qualidades de Euclides, sem ignorar-lhe os limites positivistas. 

 

Com reconhecida argúcia interpretativa, Marcelo B. Oliveira  se aventura, qual Teseu a enfrentar o Minotauro no labirinto de  Knossos, munido do fio do novelo de Ariadne, a percorrer o labirinto de Grande Sertões: Veredas, obra- prima de João Guimarães Rosas. Com mérito, o autor, sempre priorizando os traços filosóficos de sua leitura, exercita uma admirável transcognitividade no ato de ler, razão pela qual consegue haurir o fundamental da trama genialmente tecida por João Guimarães Rosas. Com efeito, a notória complexidade do texto roseano desafia leitores e leitoras a todo tempo, sob múltiplos aspectos, pois em Grandes Sertão Veredas, encontramos um emaranhado de neologismos, em busca de decifrar o enigma humano. Nele, encontramos: alegorias, mitopoéticas, sabedoria experiencial, aporias, aforismos, paradoxos , ambiguidades, eloquentes silêncios  e outros mais, todos exercitados à procura do sentido da vida, do ser humano, das veredas do Grande Sertão, nelas fazendo sobressair o mistério, o inacabamento, o ser não sendo e o não sendo como expressão do ser.

Convincente, portanto, a forma como o autor sintetiza sua leitura de Grande Sertão Veredas, ao afirmar: “razão mítica, razão passiva ou destino, razão dualista e memória subjetiva do passado-passado presentificado”.

No que toca à rica e envolvente produção literária de Lima Barreto, Marcelo B. Oliveira, sem perder a qualidade de seu talento interpretativo, faz uma brilhante imersão pelo complexo universo artístico-literário de Lima Barreto. Tendo presentes os condicionamentos histórico-culturais do mundo de então, o autor passa a perscrutar as tramas psicossociais de Lima Barreto e de suas múltiplas personagens, em muitas das quais ele se inspira como em uma narrativa auto-biográfica. Como sempre lembra o autor, seu interesse central, antes de uma análise literária ou de uma história da literatura brasileira, centra-se na perspectiva antropofilosófica apresentada por Lima Barreto, fazendo-lhe justiça, ao reconhecer sua genialidade artístico-literária, impregnada de expressões de protesto contra as injustiças sociais, os preconceitos classistas e raciais, descritos de forma impactante, refletindo nas personagens vítimas dessas injustiças, sua própria trajetória existencial, fazendo aí presente a “razão rebeliativa” de que fala Marcelo B. Oliveira.


Dando sequência a sua leitura antropofilosófica de nossa literatura, o autor traz à  tona o “dramance”da terra e da gente nordestinas, mergulhando em seu universo ora mítico-religioso, ora fatalista, ora de tom denunciativo (frequentemente sem perspectiva anunciadora), de modo que o conjunto de personagens desta rede de “dramance” aparecem como destituídas dos meios necessários ao seu processo de humanização. Nesta perspectiva, segue o autor a perfilar diferentes autores, especialmente do “dramance nordestino”, tais como José Américo de Almeida ( A Bagaceira), Raquel de Queiroz  ( O Quinze, João Miguel, Caminho de Pedras), Amando  Fontes (“Corumbas”), Graciliano Ramos (, Angústia, São Bernado e Vidas Secas), José Lins do Rego (  Menino de Engenho, Doidinho ),Jorge Amado em sua vasta obra,  Gilberto Freire ( Casa Grande e Senzala)  , Francisco Julião, entre outros. Importa assinalar que o autor também contempla, com  seu olhar filosófico autores do “dramance” regionalista fora do nordeste, a exemplo de Mário de Andrade.

          No caso específico Amando Fontes e de Guimarães Rosa, Marcelo Bezerra  Oliveira  logra uma incursão antropofilosófica de grande alcance interpretativo, à medida que identifica e analisa traços biopsicossociais da personalidade de seus personagens, interpretando-os como manifestações ora de uma angústia existencial, ora mergulhados em um sentimento de absurdo diante de suas condições histórico-culturais e sociológicas, finalizando os piores traços do modo de produção capitalista, seja no âmbito rural, seja no ambiente urbano, sempre a denunciar o processo de desumanização ao qual aqueles personagens estavam submetidos. 


Nestor Duarte , Francisco Julião, Jorge Amado, José Lins do Rego e outros também constituem  alvo de exame filosófico por parte do autor. No caso de Nestor Duarte, ele destaca, para fins de análise antropofilosófica, seu “Gado humano”, enquanto de Francisco Julião toma como objeto de estudo seu “ Irmão juazeiro”. Quanto a jorge Amado, o autor elege como objeto de sua reflexão : Capitães de Areia, Cacau e Seara Vermelha, enquanto de José Lins do Rego, ele destaca  Menino de Engenho. Nestes e nos demais, Marcelo Bezerra Oliveira realça uma característica comum: a subjetividade coletiva presente na obra literária desses autores. Neles, prevalece uma narrativa “em seus dramances”, de uma tendência a captarem a forma como seus personagens se põem diante dos desafios enfrentados pela gente nordestina, de modo a trazerem presentes elementos literários que apontam a conflitividade das relações sociais hegemônicas em uma sociedade marcada por uma estrutura social profundamente piramidal, na qual os trabalhadores do campo e da cidade são tratados como gado ou mão de obra semi escrava, em que prepondera a força dos latifundiários e de um patronado violento, herdeiro da Casa Grande.


Atendo-se mais diretamente a elementos filosóficos presentes nas principais obras de José Lins do Rego (“ Menino de Engenho”, “Doidinho” , “Fogo Morto“), o autor, fundamentado em sua razão dialética,  como de hábito, empenha-se em trazer à tona crenças, valores dominantes nos diversos personagens dessas obras, de modo a realçar o que de comum nelas encontra: sentimento de impotência ante o fatalismo, o determinismo do destino, levando as personagens ao conformismo, à aceitação passiva da dor, do sofrimento, da angústia, da falta de sentido da vida. Em seu olhar antropofilosófico, o autor não deixa de expressar, como gesto solidário, seu lamento pelas condições opressivas de uma sociedade escravagista, que não permitia aos personagens uma atitude rebeliativa diante daquela estrutura.

Osvaldo de Andrade merece um capítulo à parte na obra de Marcelo Bezerra Oliveira e a justo título! Com efeito, aquele autor que se destaca desde sua reconhecida participação na semana de arte moderna de 1922, em sua antropofagia cultural, inova com relação à tendência dominante, pelo menos em parte dos escritos literários da época, diante da tendência de reprodução de valores eurocêntricos, em vez de se inspirarem com autonomia, nos valores de nossa gente.

Já havendo contemplado, em seu olhar filosófico, o protagonismo feminino de Raquel de Queiroz, eis que Marcelo Bezerra Oliveira nos brinda, em sua incursão antropofilosófica, com a prosa-poética de Clarice Lispector, da qual  analisa as principais obras, de modo a ressaltar a singularidade estética desta autora que ora se aproxima de uma cosmovisão existencialista, ora surpreende com personagens e situações particularmente clariceanas, de difícil enquadramento classificatório. Clarice Lispector, em sua vasta produção estético-literária, expressa as contradições e os traços mais recônditos da condição humana, em um misto de imanência – transcendência , de silenciamento - eloquência  de glória e de miséria do tudo e do nada da condição humana.


Reiteramos a sólida fundamentação teórico- conceitual a que recorre o autor, em sua incursão analítica da Literatura Brasileira. De fato, graças ao persistente recurso inter / transdisciplinar, ora fazendo apelo à filosofia, ora à Antropologia , ora à História, ora à Sociologia, ora à Ciência Política de inspiração marxiana/ marxista, ora à Crítica Literária, ora à Psicanálise, ora à Razão Mítico- Religiosa, Marcelo Bezerra Oliveira  se mostra amplamente municiado a percorrer o labirinto de situações-limite que circundam as inúmeras personagens de vários gêneros literários que analisa com acuidade. É por conta desta rede teórico -conceitual, que o autor consegue desvendar ou suspeitar a presença de situações-limite existenciais apenas insinuadas ou levemente enunciadas. Situações-limite  que aparecem nos relatos especialmente de romances de numerosos autores e autoras da Literatura Brasileira, acerca de uma grande diversidade temática, especialmente no que se refere à homoafetividade  e à situação paradoxal razão- loucura . Vale assinalar o reconhecimento explicitado pelo autor com relação aos avanços científicos e a conscientização da sociedade mais recentes sobre situações-limite hoje relatadas, inclusive no âmbito da Literatura.              

 

Primoroso é o capítulo que o autor dedica à análise filosófica da fome, tema amplamente presente em tantos autores e autoras de nossa Literatura Brasileira. Percorrendo seus principais romances e personagens, Marcelo B. Oliveira desvela, com acuidade, uma variedade de situações-limite a envolverem uma multiplicidade de personagens, para exercitar uma refinada crítica filosófica sobre o fenômeno da fome, em sua dimensão sociológica, recorrendo como referência interpretativa filósofos de amplo reconhecimento, especialmente inspirando-se em karl Marx. A partir deste sólido referencial teórico, o autor nos brinda com uma reflexão repleta de argumentos convincentes. Para tanto, não exita em ilustrar com passagens tocantes o sentir, o pensar e o agir de figuras de destaque de nossa Literatura, inclusive fazendo questão de citar Carolina Maria de Jesus, em seu depoimento impactante sobre o sentido da fome.

Sobre Castro Alves, o autor nos oferece uma apreciação de profundo alcance filosófico, ao enfatizar relevantes  valores da poética de Castro Alves, do qual destaca, além de uma rara sensibilidade dos mais altos valores humanos também seu compromisso político com a libertação dos africanos escravizados. Sempre combinando denúncia -anúncio e participação nas manifestações contra a escravidão.    

Impacta-nos  sobremaneira a profundidade filosófica com que o autor imerge no universo poético de Cecília Meireles- sobre quem dedica cerca  de vinte e cinco páginas -, haurindo preciosos elementos que  torna matéria-prima de sua análise filosófica. É facilmente perceptível o encanto com que Marcelo B. Oliveira saboreia cada elemento estético presente na vastíssima obra de Cecília Meireles, atendo-se mais detidamente a seu “Romanceiro da Inconfidência”, sem negligenciar outros escritos seus. Em sua incursão analítica, destaca a Liberdade como a força motriz dos escritos cecilianos, razão por que ressalta seu horizonte filosófico-existencial.

Ao identificar e analisar as principais palavras geradoras de seu universo vocabular, o autor não exita em avaliar sua obra, situando-a /comparando-a com os  mais reverenciados escritores, a exemplo de Castro Alves, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Clarice Lispector, Mário de Andrade, entre outros .


O penúltimo capítulo do livro propõe-se a avaliar criticamente as produções literárias do atual contexto brasileiro. O autor se mostra convencido da tendência hegemônica da atualidade literária, fortemente impactada pela ideologia da pós modernidade, influenciada pelos valores do Mercado capitalista impulsionadas pelos ventos liberais, as produções literárias da atualidade, salvo exceções, se acham impregnadas de excentricidade, da ideologia da auto-ajuda e valores semelhantes, a contrastarem com a profundidade das produções literárias de autores e autoras que o autor analisa detidamente.

Neste sentido, Marcelo B. Oliveira faz questão de ressaltar os valores estético-literários presentes, também e principalmente, em diversas autoras de nossa produção literária, tais como Maria Firmina dos Reis, Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Conceição Tavares, Carolina Maria de Jesus, entre outras, sempre acentuando a relevância da cotidianidade como fonte principal de sua literatura sentinte.

Em suas notas inconclusivas (“ Inconclusões”), Marcelo B. Oliveira  ressalta o lugar da complexidade dos valores que inspiram a produção literária brasileira. Com efeito, o exercício do filosofar enfrenta múltiplas situações-limite vivenciadas por dezenas, centenas de personagens que protagonizam nossos romances, nossos contos, nossas crônicas e nossa Poesia, de modo a mostrar a necessidade de um profundo mergulho por nessas águas literárias, como condição necessária ao filósofo, à filósofa, para uma percepção aguda a ser exercitada no observar, no ver, no sentir, no apreender os elementos mais recônditos que tecem a trama das experiências existenciais de autores, de autoras e respectivas personagens, de suas produções estético-literárias.

Sem negar a pluralidade de fontes em que bebe o autor, em suas incursões antropo-filosóficas, não se pode negar a influência dominante de seu olhar histórico-dialético como procedimento mais forte de sua percepção. 

Estamos diante de uma obra rara, com traços de pioneirismo, na leitura filosófica de textos literários produzidos no Brasil e alhures.


*Em razão da avançada deficiência visual do autor deste texto, coube a Águeda Ferreira Calado, minha irmã, uma tríplice tarefa: a de ler para mim, por telefone, a íntegra do livro; a digitação, após cada capítulo, dos comentários que eu lhe ditava; a revisão do texto. Eis por que lhe expresso, de público, meu reconhecimento e minha gratidão.



                               João pessoa, 17 de setembro de 2023 


 






 


 


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