Tarefa-desafio
das organizações de base da sociedade civil
Alder
Júlio Ferreira Calado
Em
pleno momento de indignação e revolta (ainda silenciosa) da sociedade
brasileira, ante a segunda denúncia gravíssima envolvendo Temer, eis que
assistimos, atônitos, à mais recente onda privatista e de desmantelamento do
que resta das riquezas nacionais, em várias frentes: venda, a preços
irrisórios, de amplas extensões do
território nacional, extinção ou redução de reservas socioambientais, alienação
de empresa estatais estratégicas (caso
da Eletrobrás), escandalosas renúncias fiscais em favor de grandes empresas
(exemplo do vergonhos perdão da monstruosa dívida do Banco Itaú, favorecimento escandaloso aos interesses de transnacionais, de grandes
empreiteiras, dos setores rentistas e financeiros, etc.
Neste
exato momento, na Câmara de Deputados, se acha em processo de votação uma
Medida Provisória (REFIS – escandaloso projeto de rolagem das dívidas de
grandes empresas com o Fisco, favorecendo inclusive a diversos deputados e
senadores empresários...). Se aprovada, vai beneficiar diretamente gandes
empresas, das quais fazem parte, além de outros parlamentares, o próprio
Relator da talMedida Provisória..., o que acarretará um quase perdão das dívidas desses setores
para com o Fisco. Escandalosa renúncia fiscal!
Não
param aí as aberrações. Alcançam também outras instâncias estatais, e de modo
grave, a implicar uma banditização do Estado, com evidentes e perniciosos
efeitos diretos sobre o conjunto da população.
É
da natureza da História – como, de resto, de todo processo de humanização – a
alternância de épocas de relativa calmaria e de turbulências, leves e
profundas. Estas, aliás, se produzem com bem maior frequência. Registro a não
perdermos de vista, para fugirmos de toda onda reducionista ou fatalista. Como
alertava uma figura de referência do século XIX, a humanidade só se coloca
problemas para os quais encontra solução, ou, em suas próprias palavras: “É por
isso que a humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e assim,
numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando
as condições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em
vias de aparecer.” (cf. MARX, K. Contribuição
à crítica da Economia Política, Prefácio, página 25. São Paulo: Martins
Fontes, 2ª ed., 1983). Os profundos impasses atuais não devem ser nem
subestimados nem absolutizados. Hão de ser enfrentados como desafios às forças
historicamente vocacionadas a superá-los, com discernimento e de forma
processual.
Isto
implica uma atitude inicial de conhecimento adequado da natureza da crise
enfrentada, bem como uma atitude de enfrentamento exitoso. Uma vez conhecidos e
reconhecendos, não sem uma efetiva (auto)avaliação, os gravíssimos impasses
societais em que nos vemos mergulhados, sentimo-nos historicamente impelidos a
ousarmos passos de processual retomada de nossas tarefas históricas, a partir
de onde começamos a desandar. Este é o propósito dessas linhas: ajudar nesse
esforço de retomada, em novo estilo, das lutas sociais que correspondam ao
horizonte desejado. Para tanto, cuidamos de, primeiro, realçar, de passagem,
alguns pontos mais salientes da profunda crise multifacetária de nosso atual
contexto. Em seguida, focamos alguns elementos históricos recentes, em busca de
“refrescar” nossa memória de nossas lutas sociais, num período em que nos
pareciam fecundas, a julgar pelos frutos então colhidos. Num terceiro momento,
ousamos (re)trazer ao debate algumas teses que, fazendo coro com vozes
relativamente pouco escutadas, vimos alimentando,
já
há um certo tempo.
Impasses mais
desafiadores do momento histórico atual
Não
sendo a primeira vez que nos defrontamos com semelhantes desafios estruturais e
conjunturais, deparamo-nos, contudo, ante um quadro histórico atípico, a medida
que nos vemos mergulhados em plena “mudança de época”. Neste caso,
defrontomo-nos com um desafio de monta, do qual tratamos de condensar seus
principais traços, especialmente no campo sócio-econômico. A despeito de conquistas
sociais recentes, que beneficiaram amplas camadas mais vulneráveis da
população, eis que por razões de conjuntura internacional recessiva, combinadas
com profundos equívocos ético-políticos das classes dirigentes espúriamente
mancomunadas com setores da classe dominante (grandes empreiteiras, grupos
financistas e rentistas...), acabamos mergulhados num quadro de profunda crise
política, econômica, ética, ecológica. Embora vários dos vícios atualmente em
curso, já se fizessem presentes em contexto recente, não há negar o crescente
agravamento que se tem a cada dia, a partir da assunção do (des)governo Temer,
cuja voracidade privatista não tem limite. Tudo se põe a venda, a começar de
sua honorabilidade, haja vista sucessivas negociatas com parlamentares e
partidos de sua base. Flagrado em
imagens extremamente comprometedoras, e amplamente divulgadas, de pouco têm
valido suas tentativas recorrentes de autojustificativa. Estas só têm servido
para expô-lo ao ridículo, do que são prova seus altíssimos índices de rejeição:
em torno de 97%! Ainda assim, ele vem logrando cooptar, a peso de ouro,
parcelas significativas de deputados, dispostos, mais uma vez, a fazer “tabula
rasa” das numerosas falcatruas que lhe são imputadas, juntamente com seu núcleo
duro, do qual alguns já se acham presos, e mais dois de seus ministros mais
importantes sofrem as mesmas graves acusações.
Tais
episódios, todavia, estão longe de esgotar a sucessão de graves escândalos a
respingarem pelas diversas instâncias do Estado (Executivo, Legislativo e
Judiciário), a exporem suas raízes com alto grau de putrefação, expondo-se como
grave expressão de crescente banditização do Estado, com as piores
consequências ético-políticas daí advindas. Como não associar a esta
banditização do Estado o agigantamento da violência social, expressos pelos
índices exorbitantes de assassinatos, de feminicídios e tantas foramas de
vioência contra as mulheres, contra as vítimas de homofobia, contra os jovens,
contra as etnias tratadas como marginais, como o tráfico de pessoas, de drogas,
de armas, como as crescentes agressões à Mãe-Natureza?
Por
outro lado, precisamos questionar e aprofundar a reflexão crítica sobre se isto
constitui uma fatalidade, perante a qual temos que nos render, ou se somos chamados
a buscar saídas alternativas a este modelo necrófilo, a curto, médio e longo
prazos. Neste sentido, um primeiro passo pode ser o de buscarmos, na história
recente (e menos recente), situar a partir de onde as condições começaram a a
favorecer tal desfecho, razão por que entendemos conveniente rememoar traços recentes
da caimnada de nossas organizações de base.
Ensinamentos de
outras conjunturas adversas às classes populares
A
despeito de equívocos também cometidos, no final da década 70 e começos dos
anos 80, podemos observar que nossas organizações de base (movimentos
populares, Movimento Pro-PT, pastorais sociais, associações, etc.) apresentavam
um modode se organizarem e de investirem em seu processo formativo, dos quais
foram se distanciando, em especial a partir da virada do século. Foram deixando
para trás ou negligenciando aspectos organizativos tais como: enraizamento
popular, no campo e na cidade; criação e animação de núcleos, conselhos,
círculos de cultura, pequenas comunidades, etc., que funcionavam com autonomia,
tomando decisões pela base, e de modo conectado a outras instâncias, por meio
do prinício da delegação; buscando alternar cargos e funções, de modo a não
permitir uma razoável circularidade entre membros de coordenação e membros de
base; apostando no autofinanciamento de suas atividades; mantendo-se muito
reticentes em relação à participação nos espaços estatais, dos quais pouco ou
nada esperavam, pois os avaliavam como cúmplices do Mercado capitalista.
Era,
em grande medida, sua aposta no processo formativo contíno de seus membros. Com
efeito, tinha-se claro que o agir de quem pretende buscar construir, a curto,
médio e longo prazos, uma sociedade renovada, tem que contar com uma formação
contínua de seus agentes. Uma formação que era protagonizado por um conjunto de
organismos, tais como Instituo Cajamar, veículos de comnicação alternativos
(boletins, Cadernos do CEAS, SEDOC, Revista Tempo e Presença, Mundo Jovem,
Teoria e Debate, periódicos a alimentarem debates informativos e, sobretudo,
formativos, enquanto nos espaços eclesiais da Igreja na Base, não faltavam iniciativas
formativas, como a oferecida pelo CEBI, por textos da Teologia da Libertação,
da Teologia da Enxada e outroa fontes prenhes de alternatividade ao modelo vigente.
Toda essa moçada estava convencida de quem sem tais subsídios teóricos (ou
melhor, prático-teóricos), corria-se o risco de um ativismo perigoso, pois,
como dizia José Dolores, uma personagem do filme “Queimada”, “É melhor saber
para onde ir, sem saber como, do que saber como, e não saber para onde
ir.”
Era
assim que conseguíamos consolidar convições tais como a primazia do agir sobre
o discurso; a primazia causa, e não o apego cego e incondicional a figuras de
líderes; a aposta no protagonismo de todos; a tomada de decisões pela base; o
mecanismo de alternância de cargos e funções; estilo de vida semelhante ao da
gente a quem buscámos servir; radical desconfiança dos espaços palacianos ou
assemelhados; ao autofinanciamento como condição de exercício da autonomia
frente ao Mercado e frente ao Estado; a consciência da natureza do Estado como
parceiro inseparável do Mercado; o investmento mais nos processos do que nos
resultados; a fidelidade à causa liberária dos “de baixo” (“Eu acredito que o
mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor”: apenas um de
tantos cânticos de referência daquela época, expressando, inclusive, a força da
mística revolucionária, testemujnada por tantas figuras, também pelo cltivo da
memória histórica, da gratidão a tantos mártires da terra, da Liberdade,
muleres e homens de ontem e de hoje.
À
medida, porém, em que isto foi sendo negligenciado ou deixado para trás, por
conta da aposta exagerada noscaminhos convencioanis do fazer político, este
legado precioso ia empalidecendo, na mesma proporção da aposta exagerada no
atalho da política convencional, antes tão combatida, por gestos e palavras...
Não terá sido a partir daí, que as coisas começam a desandar?
Ousando ensaiar
passos rumo ao esforço de reinvenção da Política, na perspectiva de uma nova
sociedade
Ainda
que estejamos cheios de incertezas e dúvidas, de uma coisa estamos certos: não
dá mais para seguirmos apostando neste jeito de se fazer Política! Por mais
sedutoras que possam ser nossas falas, os frutos colhidos desmentem e desmontam
nossos argumentos. É chegado o momento de priorizarmos a busca de novos
caminhos do fazer Política. Com este propósito, não haverá de ser inútil
perguntar-nos:
-
Que tal ousarmos, com serenidade e humildade, ensaiar passos em direção a um
reinventar da prática política, na perspectiva de uma nova sociedade?
-
Que tal assegurarmos tempo e energia criativa nesta perspectiva, e já a partir
de caminhos e procedimentos acumulados em nossa ainda recente caminhada?
-
No final dos anos 70-começos dos anos 80, nossas organizações de base
mostravam-se bastante desconfiadas em relação ao Estado, como instrumento
eficaz a serviço da construção de uma sociedade alternativa ao modelo vigente.
Será que os acontecimentos recentes nos desaconselham tal desconfiança ou, ao
contrário, a reforçam?
-
Uma leitura mais atenta dos bons clássicos será que não aponta nesta direção?
-
Dos Estados antigos aos Estados modernos, qual tem sido seu papel essencial, em
relação aos interesses das classes populares?
-
Bem ou mal, o Estado moderno, na formulação de clássicos como Maquiavel, Hobbes
e outros, respondeu aos desafios das sociedades do seu tempo. Será que, em
plena “mudança de época”, os atuais desafios não nos demandam ousar ensaiar
passos em busca de construir novo(s) organismo(s) de gestão societal, na
perspectiva das classes populares?
- O estado de busca permanente, não comportando
certezas, favorece algum achado. Neste sentido recorrendo às experiências de
nossa caminhada recente (no Brasil e no mundo), não será o caso de buscarmos
construir processualmente um novo modo de produção, um novo modo de consumo e
um novo modo de gestão societal, a partir de caminhos organizativos e
formativos já vivênciados?
-
É possível apostar numa nova sociedade, descolando-nos do seu horizonte e dos
seus caminhos?
-
Sem jamais abdicarmos da necessidade de avançarmos para além do conhecimento e
das experiências exitosas acumuladas, ainda que reconheçamos os limites e o
estágio embrionário das experiências organizativas e formativas já vivênciadas,
elas não devem ser um ponto de partida para novos achados?
-
Que tal, olhos fitos nos novos desafios, reabastecer-nos de princípios e
procedimentos exitosos, vivenciados em época recente, tais como: o investimento
na organização e manutenção de núcleos ou de conselhos populares; o cuidado com
manter sua autonomia frente ao mercado e ao Estado, e de modo conectado a
outras instâncias da sociedade civil; o mecanismo da alternância de cargos e
funções; o permanente enraízamento nas organizações no campo e na cidade; a
moderação no estilo de vida; a mística revolucionária; a convicção de estarmos
fazendo acontecer a nova sociedade, ainda que molecularmente a partir dos
nossos feitos cotidianos expressão dos traços da nova sociedade...
João
Pessoa, 28 de setembro de 2017.
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