O ALCANCE
REVOLUCIONÁRIO DAS AÇÕES MOLECULARES
Alder Júlio Ferreira Calado
Ontem como hoje, ações espetaculares, de pirotecnia e de
efeito bombástico seguem exercendo um deslumbramento extraordinário aos olhos
de nosso mundo, movido pelas aparências, pela mórbida exibição de poder, de
riqueza, de privilégios, de prestígio, mantidos a todo o custo, em especial
pela razão da força. O noticiário midiático e nas redes sociais se acha repleto
destas manifestações: da insana truculência de chefes de Estado (a exemplo dos
presidentes dos Estados Unidos e da Coréia do Norte à desmedida ousadia de
figuras do mundo empresarial (transnacionais, grandes bancos, grandes empreiteiras,
empresas de mineração, hidro-agronegócio... a lista é grande...). Pior é que
não estão sozinhos, em sua necrófila investida. Infelizmente, conseguem
contaminar – em especial por meio dos grandes meios de comunicação social –
amplas parcelas da população, principalmente dos vastos segmentos sociais
extremamente vulneráveis em sua capacidade de leitura crítica e autocrítica do
mundo, da história. Não raro, estamos a nos defrontar com pessoas e grupos,
socialmente excluídos, a expressarem simpatia pelos atos de força dos “grandes”
deste mundo, sem se darem conta de que deles são paradoxalmente as principais
vítimas: “O Brasil só tem jeito com um regime de força!” “Trump tem mesmo é que
destruir a Coréia do Norte...” Tais declarações nos devem fazer refletir
bastante sobre essas manifestações, de modo a que, antes de lançarmos contra
essa gente nossos impropérios acusadores, busquemos examinar que condições
permitiram que tais pessoas e grupos cheguem a tal situação, e que parcela de
responsabilidade também nos cabe na produção desses descaminhos... É justamente
este o propósito destas linhas, buscando acentuar, com mais ênfase, a força
revolucionária das micro-ações do nosso dia-a-dia, inclusive fazendo apelo a
gestos ilustrativos observáveis em figuras de referência (de ontem e de hoje),
mas sobretudo em testemunhos de pessoas e grupos anônimos, espalhados por este
Nordeste, por este Brasil, pela América Latina, pelo mundo...
O
potencial das grandes ações vem de sua força seminal...
Ao longo de sua
trajetória histórica milenar, admiravelmente multiforme, a humanidade, para
além de tantos descaminhos, também cultivou um belo tesouro de sabedoria, do
qual nos dão testemunhos valiosos exemplos vindos de várias culturas. Da
cultura hebraica, por exemplo, podemos recolher narrativas edificantes, como as
que nos são legadas por relatos bíblicos, a exemplo das parábolas do Evangelho:
a da gratuidade da vida (“Observem as flores do campo!”, cf. Mt 6,25-34); a da
alegria compartilhada (“Onde estiver seu tesouro, aí estará também seu
coração.”, cf. Mt 6, 21); a que exorta
contra a insanidade da acumulação de riquezas (“Na mesma noite, morreu...!, cf.
Lc 12, 16ss), entre outras. Nas narrativas dos evangelhos sinóticos, é tocante
a atitude de Jesus de Nazaré, com relação à sua predileção pelos “de baixo”:
“Eu Te louvo, ó Pai..., porque escondeste estas coisas dos sábios e dos entendidos,
e as revelaste aos pequeninos”, cf. Mt 11,25). Igualmente emblemática, aquela
afirmação de Paulo: “O que é considerado bobagem aos olhos deste mundo, Deus
fez para confundir os sábios”, cf. 1 Cor 1,27ss).
Uma breve revisitação pelas páginas da História, alusivas a
algumas figuras de referência, de ontem e de hoje, nos ajuda a reforçar a
convicção de que a busca de uma vida em plenitude, pelas estradas do processo
de humanização, não passa pela aposta na força dos poderosos e dos ricos deste
mundo. Passa pela confiança e adesão aos pequenos projetos, às “correntezas
subterrâneas, às ações moleculares, portadoras de grande alcance transformador,
a seu tempo. Quando mais se apresentava desesperadora a situação de traição por
hierarcas eclesiásticos, eis que surge uma figura como Francisco de Assis, a
quem foi confiada a missão de ajudar a reformar aquela Igreja prestes a ruir.
Salta aos olhos a simplicidade de um Gandhi e seus seguidores, na busca de
libertar-se do império britânico – não pela força das armas, mas pela
não-violência ativa... Outro Francisco – o Bispo de Roma -, por sua vez,
desafiado a contribuir com o enfrentamento dos graves impasses da humanidade,
hoje, não aposta na força dos grandes. Antes, faz apelo aos “de baixo”, aos
movimentos populares, a cujos delegados convoca para um encontro, inicialmente
em Roma, depois mais dois, um deles na Bolívia... Assim agindo, o Bispo de Roma
testemunha o espírito do Evangelho, bem presente numa canção muito apreciada,
elaborada por um agricultor sergipano, Jorge de Lima: “Eu acredito que o mundo
será melhor, quando o menor que padece, acreditar no menor”.
Do fecundo protagonismo de pessoas e grupos vivendo e
servindo, na alegria do anonimato...
Com a menção apenas do refrão da letra da canção acima
exemplificada, já estamos adentrando o imenso e silencioso trabalho de pessoas
e comunidades, espalhadas pelo mundo: “Gente simples, vivendo em lugares pouco
conhecidos, e fazendo coisas maravilhosas”... Pessoas, comunidades, grupos, ora
trabalhando em mutirão, ora no silêncio fecundo (“O deserto é fértil”, dizia
Dom Helder Câmara), a testemunharem verdadeiras ações revolucionárias, a partir
de suas iniciativas, numa enorme diversidade temática e de modos de fazer,
todas marcadas pelo mesmo alvo: o de servir ao Público!
Público, sim! É desolador constatarmos a grave desfiguração e
desgaste sofridos pelas palavras, pelos conceitos. Um destes é precisamente o
conceito de “Público”, cuja etimologia nos remete a popular, a povo.
Infelizmente, “Público” acabou como sinônimo de estatal, governamental, num
reducionismo de efeitos perniciosos, à medida que o que deveria ser público,
isto é, do povo, acabou virando patrimônio de poucos. O fato de determinado
patrimônio aparecer como pertencente ao Estado (União, unidades federativas,
municípios) não só não significa necessariamente a serviço do povo, como também
pode ser privatizável e até virar contra os interesses do próprio povo.
Exemplos há, à saciedade. Por outro lado, fomos nos acostumando mal com o
distintivo “Estado” ou “Governo”, de modo a passar a crer que os gestores e
guardiães dos bens e serviços tutelados pelo (Executivo, Legislativo,
Judiciário) estariam automaticamente comprometidos com a causa pública. E assim
entendendo, passamos a incorporar e reproduzir a idéia de que, elegendo pessoas
dedicadas à Política, teríamos garantida a lisura da gestão do patrimônio
“público”. Ledo engano! Passadas décadas de experiência de sucessivas
legislaturas e de eleições e nomeações a cargos executivos, legislativos e do
campo judiciário, qual o verdadeiro balanço que podemos fazer?
Ao mesmo tempo em que fomos – e continuamos indo – com “muita
sede ao pote” eleitoral, sempre apostando em indivíduos salvadores da Pátria,
que nos governariam, com competência e lisura, eis que, nesta mesma proporção,
nos afastamos das pessoas e grupos que bem sabemos dedicarem sua vida a servir
os desvalidos, de mil e uma formas, com amor, alegria, discrição, leveza, e COM GRATUIDADE! Isto é ou não SERVIR O
PÚBLICO, como expressão maior de Cidadania, de uma ação POLÍTICA DO BEM COMUM?
Isto é ou não uma iniciativa REVOLUCIONÁRIA, ainda que molecular? Seguindo comprometidos,
de modo articulado, no plano das iniciativas macropolíticas (relação
Sociedade-Estado), podemos perceber o efeito potencializador das ações
moleculares. Estas passam a constituir uma condição de contínua fecundação das
macro-iniciativas. Estas só têm a ganhar com aquelas. Mais: sem as ações
moleculares, grande é o risco de se perder o horizonte transformador até das
macro-iniciativas.
Casos ilustrativos do potencial revolucionário das ações moleculares
Um amigo, que aprecia o anonimato, confidenciou ter feito uma
peregrinação, a pé, de Fortaleza a São Paulo, durante seis meses. A confidência
me vem ao espírito, a propósito de termos sempre presente que uma longa marcha
sempre começa por um primeiro passo. Sem os passos, a marcha não leva ao
destino. As ações moleculares potencializam as grandes iniciativas.
Cada uma, cada um de nós, ao ousar caminhar em direção a outas
pessoas – a cabeça pensa, desde o chão que pisamos... -, acaba surpreso com
tantos achados, em contato orgânico com as “correntezas subterrâneas”. Há, sim,
muitas iniciativas fecundas sendo vivenciadas, às vezes até em nosso entorno. À
medida que delas nos aproximamos, acabamos impactados positivamente com tais
processos de construção molecular de relações alternativas ao atual modelo
societal hegemônico. Trata-se de experiências e de iniciativas que impactam
positivamente, não apenas pelo conteúdo de suas propostas, mas igualmente com o
modo como são realizadas. Em forma de questionamentos, rememoremos algumas
delas.
- Já há algumas décadas, também no Semiárido, vêm sendo feitas
pesquisas e experiências frutuosas, no plano das tecnologias populares
alternativas de convivência com o Semiárido. Será que já nos demos ao trabalho
de conferir o alcance socioambiental de tais iniciativas?
- Com base em tais tecnologias, e para além delas, iniciativas
protagonizadas por organizações de base de nossa sociedade (inclusive por
movimentos do campo) se vêm mostrando extraordinariamente eficazes, no conteúdo
e na metodologia (construção de cisternas, de manejo do solo, de captação e
armazenamento de águas, de gestão hídrica, de práticas agroecológicas, etc.)
Temos tido a oportunidade de conhecer e apoiar tais iniciativas?
- Será que já nos demos conta de tais iniciativas, por
exemplo, na forma de lidarmos com os períodos de estiagem prolongada?
- O que seria da implementação de macropolíticas
socioambientais, sem a efetiva participação dos povos tradicionais e dos
segmentos diretamente envolvidos, no sentido de assegurar sua implementação? De
que adiantaria apenas assegurar captação e armazenamento de água, sem o
ininterrupto cuidado e zelo desses protagonistas? Já se pensou onde tudo isto
iria parar, sem uma educação socioambiental de zelo, de proteção, de estilo de
consumo, enfim, de cuidado?
- O que seria de políticas de revitalização dos rios, sem o
protagonismo dos comitês de bacia, por exemplo?
E questões como estas poderíamos acrescentar. Bastem-nos,
porém, as acima formuladas. Importa sempre não estabelecer uma dicotomia entre
as macro e as micro-relações. Estas, não
raramente, são negligenciadas, e os equívocos daí resultantes fazem muitos
estragos. Portanto, temos necessidade de reconhecer também a força
revolucionária das “pequenas” experiências e iniciativas, inclusive as de
caráter individual: desde o hábito de moderação pessoal no uso da água, nas
várias circunstâncias do nosso dia-a-dia até à nossa educação e reeducação
quanto a um estilo de vida não consumista, aprendendo a nos contentar com o
necessário, e com alegria, a exemplo dos povos originários e sua filosofia do
“Buen Vivir”
O que buscamos enfatizar, nessas linhas, foi o potencial
transformador das ações ( pessoais e coletivas) moleculares, desde que
adequadamente articuladas às ações macropolíticas. Neste sentido, cuidamos de
acentuar a dimensão também pessoal em busca da construção, processual, de um
novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão
societal.
Olinda, 21 de setembro de 2017
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