O QUE ESTÁ POR TRÁS DO CLAMOR POR REFORMAS, NAS
IGREJAS CRISTÃS, EM ESPECIAL NA IGREJA CATÓLICA ROMANA: mudar o quê? Para quê?
Por meio de quem?
Alder Júlio Ferreira Calado
Como sói acontecer em datas históricas emblemáticas,
também por ocasião da comemoração dos 500 anos da Reforma, situada a partir da
afixação, na porta do templo em Wittenburg (Alemanha) das 95 teses enunciadas
por Martinho Lutero, em 31 de outubro de 1517, temos a oportunidade de fazer um
exercício retroprospectivo acerca da situação estrutural e conjuntural, em
que se encontram as Igrejas Cristãs, em especial a Igreja Católica Romana.
Neste sentido, mesmo antes a realização do Concílio
Vaticano II, já se escutavam vozes proféticas clamando por reformas ao interno
da Igreja Católica. A despeito de diversas alterações positivas (certa
reconciliação com a Modernidade, abertura para o mundo, incentivo à leitura da
Bíblia, utilização do vernáculo, na Liturgia, reconhecimento da relativa
autonomia das realidades terrestres, haja vista diversos trechos de espírito
renovador, observáveis em seus 16 documentos (4 Constituições, 9 Decretos e 3
Declarações), entre outras) a que se chegara, durante a realização do referido
Concílio, as mudanças introduzidas não prosperaram, em grande medida, na vida
eclesial do cotidiano. Não obstante a força profética do Papa João XXIII e de
seus assessores mais próximos, a enorme maioria dos bispos não nutria maiores
simpatias pelo espírito reformista de que estava imbuído o bom Papa João, em
seu ardor profético por um Igreja dos pobres. Ainda a este respeito, não é
surpreendente que o Pacto das catacumbas tenha sido originalmente firmado, à
margem do Concílio, por apenas quarenta signatários. Em breve, antes, durante e
depois do Vaticano II, resultaram mais fortes as forças de resistência ao
esforço de mudança. Isto foi tanto mais forte, quando do longo período dos
pontificados de João Paulo II e de Bento XVI.
Em que pese toda essa resistência, sempre houve grupos
de Católicos, movimentos de leigos e leigas e mesmo de parte do clero e dos
religiosos e religiosas, a persistirem no empenho por mudanças estruturais e
conjunturais da Igreja, convencidos de que, seja como instituição social, seja
como instrumento a serviço do Reino de Deus, da Tradição de Jesus, “Ecclesia
semper reformanda est” (A Igreja deve ser sempre reformada), como ainda
recentemente, exortava o Papa Francisco, em sua mensagem de “Angelus”, do dia
27/08/2017.
Mesmo durante um período de relativo retrocesso,
vivido sobretudo a partir de meados dos anos 70 à primeira década deste século,
vozes proféticas minoritárias nunca deixaram de expressar seu descontentamento
e de clamar por mudança. Bastem-nos dois exemplos ilustrativos: a iniciativa
organizada, em meados dos anos 90, por leigos e leigas europeus, desde a
Áustria – o Movimento Internacional Somos Igreja, que hoje se acha presente em
algumas dezenas de países, em diversos continentes; a Coordenação da Conferência
das Religiosas dos Estados Unidos, mais conhecida pela sigla LCWR (Leadership
of Conference of Women Religious). Apenas dois exemplos, entre dezenas, de
iniciativas espalhadas pelo mundo católico, a clamarem cada vez mais fortemente
por urgentes mudanças na Igreja Católica Romana.
Nâo se trata apenas de associações, movimentos e
grupos de leigos e leigas. Há também associações de padres, a exemplo da
“Pfarrer-Initiative” (Iniciativa dos Párocos – Áustria), associação de párocos
da Áustria, bem como de numerosas outras iniciativas semelhantes em
funcionamento na comunidade de paísses do Reino Unido, na França, na Bélgica,
nos Estados Unidos, etc. Também, atuando ao interno da Igreja Católica ou em
caráter ecumênico, vale destacar fecundas experiências que clamam por
renovação, a exemplo de Átrio, Redes Cristianas (Espanha), Católicas pelo
Direito de Decidir (em vários países, inclusive no Brasil, atuando até com
curtos vídeos didáticos, “Catolicadas”, cf., por ex.:
Nesses últimos vinte anos, com efeito, vêm se
intensificando os clamores por mudança na(s) Igreja(s), em especial na Igreja
Católica Romana. Lembro, de passagem, dois casos emblemáticos. Um primeiro, uma
entrevista (profética!), concedida, em abril de 1998!, a um pesquisador
nordestino, pelo teólogo Pe. José Comblin. Pedindo perdão pela longa citação,
julguei oportuno destacar este trecho de sua resposta a uma pergunta final a
ele, então, dirigida:
"Um dia virá um Papa que vai deixar que se
discutam os problemas que interessam ao povo cristão. No Concílio Vaticano II,
Paulo VI proibiu que se falasse do celibato sacerdotal e da limitação dos
nascimentos. Isso não se podia discutir, mas era justamente o que todo mundo
queria discutir – se proíbe discutir o que se quer discutir.
No ano passado na Arquidiocese de Santiago do Chile
fizeram um Sínodo Diocesano e, na primeira etapa, o Arcebispo pediu que todos
os grupos mandassem um elenco de problemas a serem tratados no Sínodo. Dizia
para falarem com toda franqueza, com toda sinceridade. Chegaram quase cem mil
respostas e quase todas se referiam a questões como – por que os padres não
podem casar? Por que os divorciados/separados que fizeram uma nova união não
podem comungar: Por que a Igreja se opõe à limitação artificial dos
nascimentos? Todo mundo queria discutir sobre isso. Chegou ao conhecimento da
Nunciatura e veio uma carta de Roma dizendo que no Sínodo Diocesano é proibido
tratar desses problemas. Se é proibido falar das coisas que todo mundo queria
falar, não adianta. O Sínodo foi feito, mas ninguém mais se interessou por ele.
A mesma coisa perguntar qual será o Papa que vai
permitir que se discuta abertamente as coisas que todo mundo queria discutir? É
só permitir que se discuta, que se fale abertamente. Quando será a Perestroika?
Qual será? Será o sucessor agora? Ou o seguinte? Ou o seguinte do seguinte?
(risos).”
O segundo caso refere-se à última entrevista feita com
o Cardeal Carlo Maria Martini, pouco antes de sua páscoa definitiva, concedida
a jesuítas. Nela, entre outras afirmações, declarou que a Igreja Católica se
acha atrasada em cerca de duzentos anos. Vale a pena conferir esta entrevista,
cf. “link”:
Afinal, esses cristãos e esses católicos, espalhados
pelo mundo inteiro, clamam por que tipo de mudança:?
Bem no início de uma longa entrevista a uma rádio
de Santiago (Chile), o entrevistador, antes mesmo de lançar ao convidado (o
teólogo Pe. José Combiin), pôs-se a ler um longo trecho do romance “Os Irmãos
Karamazov”, mais precisamente o trecho extraído do capítulo sobre o Inquisidor.
No citado trecho, o inquisidor depara-se, desapontado, com a figura de Jesus, a
quem ele interpela: “Quesm és tu ?” E, a seguir, o próprio inquisidor intervém:
“Não repondas. Cala-te !” Guardadas as devidas particuladridades contextuais,
este trecho oferece uma ocasião propícia de (auto)avaliação da caminhada das
Igrejas cristãs, à luz do Evangelho: quanta infidelidade, quanto distanciamento
em relação à sua missão, julgada à luz da Tradição de Jesus. Malgrado tal e
tanta dissintonia, é sempre saudável lembrar que, em todos os tempos, por outro
lado, sempre houve testemunhas fiéis ao Evangelho. Sempre houve o testemunho do
“Resto”, do que Dom Helder costumava chamar de “MINORIAS ABRAHÂMICAS”, a
denunciarem os malfeitos das Igrejas, em especial dos representantes do poder,
e a anunciarem, por sua vida de simplicidade e desapego do poder (“Eu Te
bendigo, ó Pai... porque ensinastes estas
coisas aos pequeninos”, cf. Mt 11, 25), a conversão ao Seguimento de Jesus.
Hoje, também, o Espírito do Ressuscitado segue
animando o Povo de Deus, em especial o povo dos pobres – as mulheres, as
vítimas de migrações forçadas, as vítimas de feminicídio, de tráfico de
pessoas, de racismo, de homofobia, de toda sorte de discriminação e de prisão,
as pessoas idosas, os jovens, as crianças, as pessoas enfermas, etc., etc. – a
levantarem sua voz profética, em sucessivos apelos à conversão ao Evangelho, o
que implica, também, profundas reformas nas Igrejas cristãs, em especial na
Igreja Católica Romana. Aqui, buscamos sintetizar numa meia dúzia de pontos os
principais clamores por reforma, por parte de distintos grupos de católicos,
cuidando de justificar sua necessidade e urgência.
* O Evangelho, a Tradição de Jesus como baliza maior
de nosso processo de conversão
Sabemos da imensa diversidade de caminhos que tem o
Espírito Santo, fonte de vida plena, de Liberdade e de todo bem, para nossa
ação no mundo e na (s) Igreja(s), na perspectiva da Tradição de Jesus. É o
mesmo Espírito que, movendo-nos a atuar nessa imensa diversidade, Quem também
nos prepara para irmos costurando a unidade: “Que todos sejam Um..” (cf. Jo,
17, 20-21). Sucede que, ao nos conduzir pelos caminhos dessa imensa
diversidade, em busca de construirmos a unidade, não agimos, segundo os
caprichos de uns ou de outros. Cuidamos, sim, de buscar sintonizar com Seu
grande apelo: “Não foram vocês que Me escolheram, mas fui Eu quem os chamei, para
que vocês vão e deem fruto, e este fruto permaneça. ” (Jo 15, 16). Cuidamos de
seguir, portanto, balizas que Ele nos indica, todas marcadas pelo testemunho de
amor, de misericórdia, de disposição e disponibilidade ao serviço do Povo de
Deus, em especial os pobres e desvalidos, testemunho de justiça, de paz, de
solidariedade, de partilha. Partilha do pão. Partilha nossos dons imateriais,
indo bem à contracorrente das balizas dos poderes deste mundo: “Entre vocês não
será assim” (cf. Mc 10, 42-45).
Sucede que, ao longo de séculos de Cristandade, fomos
afastando-nos demasiado de tais balizas, seduzidos pelos ídolos do poder, do
ter, do prestígio. E, a despeito de vozes proféticas, de ontem e de hoje, eis
que as estruturas organizativas da(s) Igreja(s) têm resultado engessadas, mais
a serviço dos segmentos hierárquicos do que em proveito das maiorias do Povo de
Deus. Os esforços de renovação ou se frustraram ou ficaram a meio caminho. O
Concílio Vaticano II foi uma dessas oportunidades propícias, que resultaram
negligenciadas, em grande parte. Não se respondeu, com generosidade, da parte
dos hierarcas, ao forte apelo à “refontização”, à volta às origens das
comunidades cristãs. Acabaram prevalecendo as estruturas enrijecidas da Cúria
Romana e o Código de Direito Canônico, com alterações superficiais. Mesmo
documentos marcantes como a “Lumen Gentiuem” e a “Gaudium et Spes”, não
foram tomadas na devida conta.
Não sendo feitas as reformas necessárias, os problemas
se agravaram, como no caso da sucessão de escândalos de abusos sexuais de
crianças, à frente dos quais um número considerável de clérigos, em várias
partes do mundo. Diante das expectativas e de cobrança de justiça, por parte da
sociedade civil, o que se viu foi a tendência de se recorrer, antes ao Código
de Direito Canônico, do que ao Evangelho, ou mesmo aos Direitos Humanos, num
claro sinal de tratamento privilegiado aos algozes, em prejuízo da justa
assistência às vítimas.
Tais disfunções das estruturas eclesiásticas
refletem-se igualmente, no descumprimento do espírito de colegialidade, clamado
pelo Concílio vaticano II, de cuja seções decisivas só participam bispos,
ficando de fora (a não ser como convidados) leigas e leigos. Que constituem a
enorme maioria. Se no próprio desenrolar do Concílio, resulta flagrante a
concentração de poderes nas mãos da hierarquia, não se passa de outro modo a
organização eclesiástica, nas Dioceses e Paróquias. A exceções, mas estas não
infirmam a regra....
Centralidade do Povo de Deus na organização das
instâncias eclesiais, tendo os pobres como núcleo central do Evangelho.
O que parece uma ousadia temerária da parte do Papa
Francisco, ao sugerir, em pronunciamentos e escritos - A exemplo na Exortação
apostólica “Evangelli Gaudium” -, a centralidade do Povo de Deus na Organização
Eclesial na verdade constitui uma retomada do espírito do Concílio Vaticano II
(cf. Lumen Gentium ). Neste documento, não é a
hierarquia quem vem tratada, em primeiro lugar, mas é justamente o
povo de deus, a merecer tratamento de relevância também nas instâncias
organizativas da Igreja. O espírito do Vaticano II ganha especial relevo na
conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín, em 1968, quando o povo de
Deus, ao interno da Igreja Católica é tratado como protagonista da organização,
desde a opção pelos pobres, manifesta nas fecundas experiências das comunidades
Eclesiais de Base, bem como em diversos movimentos, associações, organizações,
serviços, pastorais sociais, ainda em curso na América Latina e em várias
partes do mundo.
Participação das Mulheres Católicas em todas as
instâncias de decisão da Igeja:
Desde seu início, do Movimento de Jesus – mesmo num
contexto histórico hostil à participação feminina, participaram várias
mulheres. É conhecida a postura de Jesus em relação às mulheres: de enorme
reconhecimento, promoção e de defesa de sua dignidade. Não são poucos nem
desprezíveis os episódios de sua atitude dialógica com as mulheres. É muito
provável que, inclusive nas fileiras dos discípulos mais próximos, sua postura
em relação, por exemplo, a Maria Madalena, tenha incomodado alguns dos Seus
discípulos, numa espécie de disputa do melhor lugar, diante de Jesus.
Passaram-se os séculos, e esta relação só se agravou. No caso da América
Latina, é sabida a forte participação das mulheres nas lides eclesiais. Elas
sempre foram a enorme maioria dos membros das CEBs. Nos espaços paroquiais e
diocesanos, é impensável o funcionamento das atividades do dia-a-dia, sem a
participação das mulheres. No entanto, isto não se dá, quando se trata da
tomada de decisões. Estas são, quase todas, da alçada do clero, todo ele formado
por homens. Quando se trata de execução das mais diferentes tarefas, recorre-se
às mulheres, mas das decisões elas estão fora, salvo algumas exceções – e mesmo
assim, em decisões secundárias...
Por longo tempo, as coisas se passaram, com relativa resignação.
De alguns tempos para cá, isto vem mudando, significativamente. Assim como nos
espaços da sociedade civil, também nos espaços eclesiais, um número crescente
de mulheres tem avançado consideravelmente nas pesquisas de distintos campos
científicos, inclusive no campo teológico. Vem do universo feminino o que de
melhor e mais criativo se pesquisa, por exemplo, no âmbito dos estudos
bíblicos, a partir do olhar feminista, no sentido que lhe emprega a teóloga
Teresa Forcades. Com efeito, as pesquisas teológicas protagonizadas por
mulheres cristãs (também católicas) têm tido um crescente reconhecimento, em
várias áreas, principalmente no campo da exegese bíblica, mas também no campo
do Ecofeminismo (Ivone Gebara). Esta densa contribuição tem alimentado a
qualidade do empenho de grupos, associações e movimentos de leigos e leigas,
nas diversas partes do mundo, municiando e fortalecendo os fundamentos dos
clamores por mudanças.
Reconhecer e respeitar o direito e o justo pleito das
mulheres – leigas, religiosas -, de participarem das decisões eclesiais, em
suas diversas instâncias, não significa apenas (mas, também isto!) abrir
caminho institucional ao atendimento à legítima postulação de realizarem a
vocação à ordenação ministerial das que se sentem chamadas por Deus, a
exercerem tais ministérios, mas significa ainda reconhecer a legitimidade de
seu pleito, de participarem das mais distintas instâncias decisórias da Igreja
Católica Romana. Seguir negando-lhes seu justo pleito significa descumprir o
direito de parcelas numerosas do Povo de Deus, ao interno da Igreja. Uma
injustiça a ser reparada, inclusive por se tratar de um vasto segmento do povo
de Deus marcado por uma história de perseguições e discriminações, de caráter
misógino. Há de lembrar-se que tal reparação já se tem dado em outras Igrejas
irmãs.
Reconhecimento a homens e mulheres ordenados,
a exercerem seu ministério, conforme sua vocação ao celibato ou à vida
matrimonial
Também aqui, deparamo-nos com uma demanda antiquíssima
e de solução ao inteiro alcance até de instancias mais comprometidas com a
disciplina eclesiástica. Já não faz sentido a manutenção da obrigatoriedade do
Celibato de pessoas vocacionadas ao exercício dos ministérios ordenados.
Trata-se de uma disciplina que não tem fundamentação evangélica, nem guarda
raízes sequer com a mais antiga tradição apostólica, haja vista que, entre os
apóstolos de Jesus havia também quem fosse casado,além do que, no atual
contexto histórico, não parece mais razoável tal exigência, se é que já o tenha
sido algum dia. O Estado Civil deve ser, como aliás já o é, uma opção para
homens e mulheres vocacionados aos ministérios ordenados.
Continuidade e aprofundamento do Diálogo entre as Irejas
Cristãs, desde as bases:
Nunca é demais lembrar-se a diversidade de caminhos
que o Espirito Santo inspira, a partir da qual somo chamados a construir a
unidade, segundo o que o mesmo Espirito Santo inspira. Os diferentes caminhos
assumidos pelos Cristãos e Cristãs, ao longo de séculos se deram por razões
sabidamente históricos. Também, a convergência há de se fazer, seguindo-se o
que o Espirito Santo tem a dizer às Suas Igrejas. Neste sentido a busca de
unidade há de se fazer, menos a partir de uma busca de uniformidade
doutrinária, e mais a partir de iniciativas concretas, tomadas desde suas
bases, e correspondentes às principais necessidades e aspirações do Povo de
Deus, para além das fronteiras Eclesiais. Nesta mesma linha, as iniciativas e
testemunho do Papa Francisco e de outras autoridades de Igrejas Cristãs e
Ortodoxas apontam na boa direção.
João Pessoa, 12 de setembro de 2017
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