Sob o impacto da crise
23/08/2005
Opinión
Movemo-nos sob o impacto de uma grave
crise ético-política de desdobramentos imprevisíveis. Tanto mais grave quando
percebemos vir associada a outras crises – ou, antes, a outras dimensões da
mesma crise de gravidade não menor - de sociedade, de Estado, de Governo, de
valores... Mesmo sabendo que sua complexidade e seu alcance, na medida em que
têm a ver com a dinâmica característica do Capitalismo (ainda que
cuidadosamente ocultada aos olhos do grande público), extrapolam a dinâmica
interna do Estado brasileiro, nossa reflexão contempla mais diretamente fatos
mais recentes, cujo epifenômeno se dá na sociedade brasileira. E para não
recuarmos muito no tempo, nossa reflexão parte de notícias e episódios mais
recentes, tais como as misteriosas circunstâncias do assassinato do então
prefeito Celso Daniel, de Santo André, em 2002, e, mais proximamente, o
escândalo Valdomiro Diniz, em fevereiro de 2004, e, ainda em curso nos últimos
três meses, recomeçando em maio de 2005 com o flagrante de propina a um alto
funcionário da Empresa dos Correios, logo seguido de entrevistas e depoimentos
prestados pelo Deputado Roberto Jefferson à mídia, à Comissão de Ética da
Câmara de Deputados e à CPMI dos Correios, chegando, até hoje (11/08/2005), ao
depoimento do conhecido “marqueteiro” Duda Mendonça, principal
artífice-maquiador da campanha presidencial de Lula, cujo contrato teria
custado a fortuna de 25 milhões de reais... Desde então, os espaços da mídia –
dos canais de rádio e televisão aos jornais; das revistas de âmbito nacional
aos espaços virtuais, inclusive as charges animadas; e daí ao cotidiano de
casa, da rua, da escola, do trabalho, das igrejas - não cessam de repercutir,
dia após dia, conforme os interesses em voga, uma sucessão de escândalos e
graves deslizes éticos envolvendo figuras exponenciais da combalida República
brasileira, especialmente o núcleo dirigente do Partido dos Trabalhadores, em
sua relação promíscua com os aparelhos do Estado, por meio de lídimos
representantes governamentais, em conluio com membros do Parlamento
(possivelmente dezenas de membros da Câmara de Deputados) e segmentos de
empresas estatais e figuras do setor empresarial. Estarrecida, a sociedade se
indigna, especialmente os segmentos populares mais organizados, diante dos
sucessivos escândalos de milionários saques bancários feitos por prepostos de
deputados e de partidos da base de apoio ao Governo, transportados em malas e
distribuídos em quarto de hotel, em troca de sua adesão ao Governo, por ocasião
das votações de projetos de lei de grande impacto para a sociedade. Escândalos
que constrangem e dilaceram a sociedade, seja pelo inédito volume de recursos
movimentados (fala-se até aqui em algo em torno de 55 milhões de reais, só em
relação ao esquema Marco Valério), seja pela freqüência, seja principalmente
pelo número e perfil dos envolvidos, em particular dirigentes e parlamentares
do PT em conluio com o ex-ministro da Casa Civil, principal figura
governamental e mais próxima do presidente dessa mal nascida e sempre
agonizante República. Ao mesmo tempo, importa ter presente que o que agora vem
a público é a apenas o epifenômeno dessa crise, a ponta do “iceberg”, sua
manifestação mais impetuosa e mais à vista. Ainda que sem deixar de acompanhar
atentamente essa avalanche de denúncias, acusações, depoimentos, entrevistas,
diariamente noticiados pela mídia, parece impossível um entendimento razoável
do caráter, do alcance e das conseqüências dessa crise complexa e
multifacetada, se não nos ativermos a seus diferentes fatores imediatos e menos
imediatos, conjunturais e estruturais. Nesse contexto, sentimo-nos
historicamente interpelados a refletir sobre várias questões que nos são
colocadas, dentre as quais: - Até que ponto o que anda acontecendo no Brasil
não é mais uma vulpina armação dos grupos dominantes? - Ou seria uma ardilosa
antecipação, pelas forças da oposição de direita, da campanha presidencial de
2006? - Por que tanta perplexidade ante denúncias de corrupção atribuídas a
figuras dirigentes do PT e do Governo Lula, se práticas de corrupção têm sido
uma praxe, ao longo da história da sociedade brasileira? - É possível a
qualquer partido no Governo ou a qualquer Governo manter-se completamente
blindado de deslizes por parte de membros isolados? - É admissível
generalizar-se a acusação ao conjunto do Governo ou ao conjunto do PT, em
função dos erros cometidos por alguns de seus dirigentes? - Episódios como o do
assassinato de Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André; o caso Valdomiro Diniz
e a série de denúncias mais recentes (de maio para cá) são mesmo isolados,
meros “acidentes de percurso” na trajetória de qualquer força política? - Em
caso de comprovação das acusações assacadas, o que teria levado dirigentes tão
importantes a tão graves deslizes? - Haverá saída para esse impasse? Em caso
positivo, que pistas ajudariam nessa direção? Em conformidade, por conseguinte,
com a linha de interpretação seguida em outras ocasiões (cf. Calado, 1977;
1998, 1999, 2003, 2004), e com apoio em analistas como Octavio Ianni, Michael
Löwy, Francisco Martins Rodrigues, César Benjamin, José Comblin, José Arbex
Júnior, Emir Sader, Frei Betto, Leonardo Boff, Francisco de Oliveira, Ivo do
Amaral Lesbeaupin, Pedro Ribeiro de Oliveira, João Pedro Stédile, Paul Singer,
A. Bogo, além de análises procedentes de outras forças de esquerda como PSTU,
PSOL, PCO, PCB, entre outros, o presente texto tem o objetivo de contribuir com
o esforço de avaliação mais detida das últimas ocorrências. Para tanto,
começamos por sublinhar as características ético-políticas da atual fase do
Capitalismo, dita “neoliberal”, cujos traços favorecem sobremaneira a
multiplicação das manifestações de expedientes de corrupção, por toda parte,
não apenas no Brasil. Em seguida, tratamos de nos debruçar sobre o quadro
específico da sociedade brasileira, sublinhando mais detidamente a
responsabilidade mais direta das forças de esquerda, nesses episódios, sem
esquecer o envolvimento incessante das forças de direita, por ser mais aberto e
notório. Por fim, tentamos-extrair dessa crise ainda em curso alguns
ensinamentos, em busca de ensaiar passos de superação. 1) Capitalismo não rima
com ética (ou a “ética capitalista” em tempos de globalização neoliberal) O
processo de acumulação de riquezas, especialmente no modo de produção
capitalista, pressupõe o recurso a mecanismos de pilhagem, com ou sem manto
legal. Impossível que tenha lugar dentro de um quadro de relações eticamente
aceitável. A não ser que se trate da “ética capitalista”. A despeito das
variações históricas e da intensidade e forma dos mecanismos de acumulação, uma
marca lhe é peculiar: apelar para a exploração das camadas populares. Na Social
Democracia, por ser menor a gula dos protagonistas, estes até conseguiam, aqui,
ali, passar a idéia de respeitar certos limites éticos. A exploração se fazia,
mas por conta do intenso apelo às políticas compensatórias, passava-se uma
idéia de respeito aos direitos dos trabalhadores. Isso muda, porém, com o
advento do chamado Neoliberalismo, mais intensamente presente nos governos
Margareth Thatcher e Ronaldo Reagan, no final dos anos 70 e começos dos anos
80. A máscara supostamente humana do Capitalismo caía definitivamente. E a que
se passa a assistir? De forma didática, apontemos algumas de suas principais
características: - discriminação (expressa ou velada) das vontades dos
protagonistas, manifestada, por exemplo, pelo privilégio do veto dos membros
permanentes do Conselho de Segurança da ONU, o que depõe, com toda a evidência,
contra qualquer propósito aceitável de se respeitar o jogo democrático; -
consentimento (expresso ou tácito) a qualquer dos protagonistas da iniciativa
de invasão a outro país, qualquer que seja o motivo alegado, ficando os casos
de eventual legítima defesa subordinados à decisão democrática da assembléia
geral do países-membros, sem qualquer privilégio, inclusive de veto; -
autorização seletiva do odioso privilégio de fabricação ou armazenamento de
armas de destruição em massa (não apenas as armas químicas e biológicas): o
caso das grandes potências e de seus apadrinhados, inclusive Israel; - práticas
explícitas de pilhagem, por parte das grandes potências, em favor dos grandes
conglomerados transnacionais, contra os países periféricos, seja mediante a
política de crescente endividamento, imposição de política de privatização dos
Estados nacionais, seja por meio do flagrante desrespeito às regras elementares
de reciprocidade que devem reger as relações comerciais entre os povos, seja
por meio da “ciranda financeira” do chamado capital volátil, ou ainda por meio
de evasão de divisas (1) e de “n” mecanismos de sonegação combinados com a
escandalosa renúncia fiscal feita por instâncias governamentais; - abusiva
liberdade de movimento e de lucro extorsivo dos conglomerados financeiros, sem
qualquer controle social, entre outras. - o pano de fundo se dá com a
extraordinária intensificação do processo de globalização (fenômeno antigo, mas
recentemente com ritmo inédito), a afetar as mais distintas esferas da
realidade social; - no âmbito econômico, tem lugar o processo de
re-estruturação produtiva (em moldes capitalistas, claro), impulsionado pela
terceira revolução tecnológica em curso (na informática, na microtecnologia, na
engenharia genética, na robótica, na fibra ótica, nos novos materiais, etc.,
etc.); - a entrada em cena do segmento financeiro do Capital como hegemônico, o
que não quer dizer sem ligação orgânica com os demais setores componentes da
malha do Capital; - o agressivo assédio dos grandes conglomerados
transnacionais, a imporem notadamente aos países periféricos, por meio das
grandes potências e de seus organismos multilaterais, políticas sociais de
privatização do patrimônio público, de sucateamento e desmonte dos serviços
públicos essenciais (no caso da educação, por exemplo, vale assinalar que o
Banco Mundial chega a ser apontado como um órgão que atua como verdadeiro
ministério da educação dos países periféricos...); - a quase totalidade dos
governos dos países periféricos rende-se à imposição, inclusive procedendo à
alteração de sua própria Constituição e leis ordinárias, a fim de adequá-las à
nova ordem dominante; - feito à moda do Capitalismo em sua atual fase/face,
isso tem acarretado fenômenos como o desemprego estrutural, a hipertrofia da
economia informal, precarização das relações de trabalho, supressão ou drástica
redução dos direitos sociais, privatização de empresas estatais, reordenamento
jurídico ao gosto do mercado, sucateamento ou desmonte dos serviços públicos
essenciais, entre outros desdobramentos; - adequação da mídia à nova onda do
mercado e sua grade de valores; - expansionismo militar, à frente Estados
Unidos, mas com o apoio das potências do G7. Tantas outras marcas teríamos por
certo a acrescentar. Contentemo-nos, porém, com essas, tendo bem presente a
expressiva dinâmica do entrelaçamento das diferentes esferas da realidade
social. O que, aqui, aparece como componente mais direta da esfera de produção
carrega também fortes marcas de concepções, práticas e formas de exercício do
poder. De modo semelhante, o que à primeira vista se manifesta mais diretamente
pertinente à esfera política traz consideráveis implicações intersecções de
natureza política e cultural... 2) Rememorando retalhos da história da
sociedade brasileira Falcatruas e corrupção são antigas no Brasil. O que há de
novo são as forças atuais envolvidas... A história da sociedade brasileira, à
semelhança de tantas outras na América Latina e Caribe e alhures, tem sido
tecida de híbridos fios, de variado matiz. Fios de relações solidárias (que nos
remetem às tribos indígenas, aos quilombos, às comunidades camponesas, aos
mutirões urbanos, etc.) e de dominação (ver a herança do pacto colonial, em
suas mais distintas dimensões) e fios de resistência (vr os movimentos sociais
populares), e também de fios éticos, misturados, ora de decência, ora de uma
sucessão de episódios graves e menos graves de deslizes ético-políticos. Aqui
nos deteremos mais diretamente sobre estes últimos e mais recentes. À primeira
vista, para um analista mais atento aos bastidores da política, no quadro
histórico da sociedade brasileira, não haveria motivo para tanta surpresa ou
perplexidade. Indignação, sim. Os escândalos financeiros e as falcatruas
governamentais e político-partidários são, de resto, triste praxe, ao longo da
história de nossa República sempre tão mal resolvida, desde suas origens. E
muito antes, mesmo: lembremo-nos, a propósito, que desde a famosa Carta de Pero
Vaz de Caminha, já se fazia uso de expediente nada ortodoxo de condução da
coisa pública... Mais recentemente, tivemos o caso Collor de Mello, as dezenas
de escândalos e falcatruas nos oito anos de Governo FHC... Aqui, ali,
combatem-se os “excessos”, movem-se ações judiciais, cassam-se os mais afoitos,
e, não tarda, tudo volta à estaca zero. Em breve, a corrupção tem raízes mais
fundas, em nossa sociedade e em tantas outras. Trata-se de um mal endêmico,
ainda que tal registro a ninguém que se probo considere isente de combatê-lo.
Inclusive pela raiz, coisa a que muito poucos se dispõem. Por que, então, tanta
indignação? Por que tal ímpeto de publicidade, não raro, justo da parte de quem
– a mídia - mais se empenha em encobrir as cotidianas falcatruas das forças
dominantes? Vê-se logo que algo de novo há, desta feita. E há mesmo. Desta vez,
são outros os protagonistas. Melhor dito: os co-protagonistas. Diversamente dos
atores de antes, agora são justamente as forças que se reclamam de esquerda, e
mais precisamente o Partido dos Trabalhadores e seus aliados, que protagonizam
os escândalos. Justo esses cuja trajetória de conquistas sempre esteve
diretamente vinculada à bandeira da ética na política. A trajetória do PT, com
efeito, desde suas origens, é marcada por princípios ético-políticos de que dão
prova, não apenas seus principais documentos fundantes e as deliberações de
seus congressos e encontros, como também diversas de suas iniciativas concretas
reconhecidamente grávidas de tais princípios. Se assim é, que fatos ou
circunstâncias determinaram ou condicionaram essa mudança de postura? Passemos
a sublinhar alguns. - o progressivo afastamento das lutas sociais - - a
crescente ocupação dos espaços instituídos - - o deslumbramento com a máquina
governamental - - aposta cada vez maior nas instâncias governamentais como
principal ou exclusiva ferramenta de mudança social - - o aliancismo como
ferramenta de acesso às instâncias executivas e parlamentares do Estado - -
profissionalização da militância, agora transformada em agentes partidários e
governamentais - - retração ou inibição dos seus habituais procedimentos de
organização partidária - - abandono à manutenção do Parido pelo conjunto de
seus filiados como procedimento político; - desproporcional contribuição
financeira a cargo dos eleitos em detrimento da proveniente dos militantes de
base; - progressiva centralização das deliberações partidárias; - abdicação dos
critérios para filiação partidária; - progressiva alteração nos procedimentos
de embates eleitorais - - recurso tático abusivo ao currículo de seus quadros
dirigentes; - cultura do endividamento como recurso para cobrir gastos de
campanhas eleitorais; - abuso dos gastos em marketing e propaganda (avidez por
parecer) - apelo ao controle indireto da estrutura sindical e dos movimentos
sociais; - agravamento do corporativismo, traduzido no compromisso com os
“meus” ainda que contra a causa... - promoção e exercício da prática de
esquizofrenia individual e coletiva... - mudança de tratamento ou endurecimento
em relação aos críticos internos ao Partido; - progressivo e deslumbrante
aproximação de outros “amigos” e outros aplausos... - aposta na perpetuação do
“poder” - assujeitamento às regras do mercado para além do exigido, em troca de
opção pelas políticas compensatórias; - perda do horizonte de classe (o amplo
leque dos excluídos: mulheres das classes populares, vítimas da prostituição,
trabalho infantil, assalariados, desempregados, sub-empregados, sem-terra,
sem-teto, Índios, Negros, portadores de deficiência, jovens vítimas da
violência social, migrantes, presos comuns, moradores das florestas vitimadas
pelos crimes ecológicos com a conivência de representantes de órgãos
governamentais...) - controle tático das empresas estatais... Alguns
ensinamentos da crise, em busca de superá-la O que devemos recolher desse
emaranhado de descaminhos e falcatruas, ocorrências fraudulentas, situações de
impasse, desdobramentos ainda em curso? Uma infinidade de lições. O que se
segue é um primeiro esboço, resultante das impressões mais fortes que o momento
propicia. Vamos resumir em dois pontos: evidências “esquecidas” possíveis pistas
de superação. Evidências “esquecidas” Também neste item, optamos por expor um
leque de pontos ou situações que chamamos de evidências “esquecidas”, por serem
bem familiares a militantes históricos do PT. Para um entendimento mais
consistente, convém ter presente o dinâmico entrelaçamento que caracteriza o
conjunto dessas evidências. - Pretender lutar por uma nova sociedade para os
deserdados da Terra - Isso nada tem de novidade. E, no entanto, é uma de tantas
evidências esquecidas pelas forças que se pretendem de esquerda. A
transformação social é obra dos próprios trabalhadores e trabalhadoras. Tentar
substituí-los ou dispensá-los do protagonismo é fracasso certo. Não é a
primeira vez, na história... - Profissionalizar a militância – Profundo
equívoco do PT e forças aliadas foi distanciar-se das lutas sociais, frutuoso
espaço de formação e de refontização de seu compromisso com a causa dos
oprimidos. Os movimentos sociais e as pastorais sociais eram terreno familiar e
propício à formação da consciência de classe dos militantes, nos primeiros anos
do Partido. À medida que foram abandonando ou se distanciando progressivamente
desse espaço referencial, foram também abrindo mão da gratuidade do trabalho
político e popular. A militância, que antes fazia política movida pela paixão e
pelo amor à causa dos pobres, uma vez instalada nos espaços partidários,
parlamentares e governamentais, passou progressivamente a fazer política como
“profissão”, tendo nela sua principal (ou única) fonte de renda. Aí se acha um
fator radical da crise ora mais evidenciada. - Apostar nos espaços e mecanismos
institucionais como único ou principal fator de mudança social – O PT nasceu
com ímpeto instituinte. Lutava pela construção de uma nova sociedade. Mesmo
recorrendo a mecanismos institucionais como o processo eleitoral, demonstrava
disposição de ir além da mera democracia representativa. Nisso se assemelha a
tantos movimentos populares, ao longo da história. Os documentos fundantes do
PT e seus primeiros anos são um atestado dessa evidência. Como negar o cuidado
com os critérios de filiação, a formação de núcleos nos locais de trabalho, nas
periferias urbanas e na zona rural? Como esquecer a profunda inserção nas lutas
do campo e da cidade? Como não recordar a freqüência das discussões e
deliberações de base? Como não lembrar que as reuniões, encontros se davam em
espaços pobres, lá onde estava a base efetiva do partido? Influência que se faz
presente, ainda hoje, em movimentos como o MST. Infelizmente, nem o PT, nem a
CUT persistiram nessa trilha. Muito pelo contrário, haja vista, por exemplo, os
lugares hoje escolhidos para as reuniões, encontros e congressos... As
conquistas graduais de espaços parlamentares e governamentais (Câmaras,
Prefeituras, Assembléias Legislativas, Câmara Federal, Senado, Governos
Estaduais, Presidência, Ministérios, organismos estatais...) foram mudando a
cabeça dos eleitos e sua nova base de sustentação. Pior: o acesso e o exercício
do poder parlamentar e governamental foram operando neles, salvo honrosas exceções,
progressiva mudança de postura, até sucumbirem de vez ao fascínio do poder, já
não mais importando os critérios, a não ser o cuidado de repetir princípios de
boca para fora (“Eu não mudei”)... - Apoiar-se no currículo como arma de
sustentação ético-política - Uma das táticas mais recorrentes abusivamente
utilizadas pelos dirigentes governamentais e partidários, quando instados a se
explicarem de posições antagônicas aos princípios históricos que defendiam até
há pouco tempo, vem sendo a de remeterem seus críticos ao seu passado de lutas.
“Eu tenho uma história. Vejam meu currículo. Eu fui isso, fui aquilo...” Sempre
que lhes convém, recorrem ao passado, como ainda recentemente o fez o
ex-ministro José Dirceu, ao cumprimentar a nova ministra da Casa Civil, como
“ex-camarada de arma”... - “Com a gente é diferente” (dizer combater os
privilegiados e incorporar seu estilo de vida) – Um ligeiro refrescar da
memória dos primeiros tempos de PT ajuda a recuperar o estilo sóbrio dos
dirigentes e militantes partidários. Mesmo os que pertenciam a segmentos médios
da sociedade comportavam-se de modo singelo, sem pompa. A convivência com os
oprimidos e suas lutas ajudava a se guardar um clima de fraternidade, nas
relações políticas do dia-a-dia. Isso também foi progressivamente abandonado,
salvo exceções. Não se trata apenas de modos de portar-se (vestir, morar,
padrão de vida, etc.). Também tem a ver com as companhias. Até os amigos são
outros. Visita vai, visita vem... A ponto de, ainda recentemente, tornar-se famosa
aquela declaração do presidente acerca do deputado Roberto Jefferson, a quem o
presidente seria capaz de entregar um cheque em branco... E isso se faz sob o
pretexto de que “Eu estou acima de qualquer suspeira”... - O deslumbramento
pelos sedutores atalhos – A cada dois anos, temos eleições no Brasil, ora para
vereadores e prefeitos, ora para a Câmara Federal, o Senado e a Presidência da
República. Mesmo em suas origens, o PT também participava desse processo, mas
de modo a buscar publicizar seu projeto de sociedade de sociedade,
manifestando-se crítico com relação ao status quo. Não perdia a cabeça ante os
tímidos resultados eleitorais. Atribuía ao processo eleitoral o peso que lhe
devia. À medida, porém, que conquistas pontuais, nesse terreno, iam sendo
alcançadas, parte significativa de seus dirigentes passou a mudar de idéia. A
proximidade do poder lhe subiu à cabeça. Veio o deslumbramento que, desde
então, não cessava de atrair um número crescente de militantes e dirigentes.
Entre outras conseqüências, podemos apontar a progressiva mudança de critérios
para a filiação de novos membros, para a definição dos aliados, para a
organização do processo eleitoral, no qual dos comitês unificados passou-se
para o “salve-se-quem-puder”. E aí... - Substituição progressiva da aposta na
busca da verdade pela aposta na verossimilhança – A essa mesma obsessão pelos
atalhos está associada a progressiva aposta nas táticas de marketing. Já não
vale a prática como critério da verdade. Nas campanhas eleitorais e na promoção
dos candidatos, o que importa mesmo é parecer, é o investimento na aparência,
na imagem que é passada ao público. Entram em cena os magos do marketing, a
exemplo de Duda Mendonça, que tem feito fortunas, às expensas das contas
púbicas... - Negligenciar o processo formativo continuado – Quem não se lembra
da euforia provocada na militância com a iniciativa do Instituto Cajamar,
voltada para a formação da militância, das bases e dos dirigentes. A Secretaria
de Formação investindo o melhor de si nessa perspectiva. Sonho que duraria
pouco, ante a gula pelo poder... A certa altura, já nem se falava mais nisso.
Ao contrário da atenção que se passaria a dispensar nos meandros
eleitoreiros... Daí para a superestimação dos marqueteiros como peças
fundamentais nos processos eleitorais foi um pulo... - Perder o senso da
autocrítica – Não apenas os documentos, como também os espaços formativos eram
ocasiões propícias em que se acentuava o papel irrenunciável do exercício da
autocrítica. Prática que logo se esvaziaria, à medida que deslizes eventuais
foram se institucionalizando, fazendo os implicados substituírem o recurso à
autocrítica pelo discurso da racionalidade cínica, como aliás ditava a moda
“pós-moderna”... - Atribuir a uns poucos o que é da responsabilidade do
coletivo – Diferentemente das experiências iniciais, previstas, aliás, nos
textos fundantes do PT, cuja prática habitual era de se discutir e deliberar
coletivamente desde as bases, passou-se a delegar a bem poucos os destinos do
Partido. O resultado não poderia ser diferente... Mesmo assim, é falso
restringir a meia dúzia a responsabilidade pelos descaminhos e pelos deslizes.
É praticamente impossível ao coletivo dirigente (Direção Executiva ou mesmo do
Diretório) ignorar completamente os trâmites seguidos, ainda que lhes escapem
certo detalhes. Afirmar que não tivessem sequer sinais desses deslizes não
parece convincente. Amarga experiência a merecer também funda auto-crítica,
como condição de não se voltar a repetir... - Apostar nas políticas compensatórias
como principal estratégia – Já que, a essa altura, o rumo já terá sido
esquecido, a tendência passa a ser a do discurso da racionalidade cínica:
“faz-se o possível”, “já que o sonho é impossível, vamos tirar proveito do que
pudermos”... Neste caso, dá-se adeus às antigas propostas mudancistas,
substituindo-as pela cultura assistencialista com nomes sedutores equivalendo
simplesmente à estratégia das políticas compensatórias... Ou seja: aos ricos o
bolo, aos pobres as migalhas do banquete...Basta ver a distribuição do
orçamento, no que respeito às somas destinadas a pagamentos das dívidas aos
banqueiros e às que são efetivamente destinadas a políticas sociais... Nesse
sentido, superestimou-se, a olhos vistos, o procedimento do chamado “orçamento
participativo”. Sob o pretexto de se democratizar as deliberações de partilha
do bolo púbico, escondia-se dos participantes tratar-se de apenas frações do
orçamento, já que o grosso já estava comprometido com despesas fixas, a mando
do FMI e seus aliados.. - Seguir incondicionalmente os rituais da democracia
representativa – Sendo assim, não há outro caminho “possível”, a não ser
nivelar-se aos demais “partidos da ordem”. Como não se ousa dizer as coisas
pelo seu nome verdadeiro, criam-se eufemismos autojustificadores: “Precisamos
ser responsáveis.” “Uma coisa é fazer oposição, outra é governar.” “Não podemos
quebrar o país.” “Vamos fazer as mudanças no ritmo que pudermos.” E assim por
diante. Esquece-se facilmente o que se dizia na campanha. Esquece-se que, quando
se trata de atender aos interesses das forças dominantes, se age rápido e
generosamente, até indo além do que se pede, como no caso do famigerado
“superávit primário”... - Recurso ao endividamento partidário- Tal é a gula
pelo naco de poder (que na verdade é simbólico, já que se cumprem ordens vindas
de fora, como lembrava Otavio Ianni, justificando por que não votaria em nenhum
dos candidatos a presidente com mais chances de vitória), que facilmente
sucumbem ao cativeiro do endividamento... Após as campanhas, as dívidas se
revelam astronômicas, com ou sem que ninguém acredite na lisura do processo. -
Apostar na “Reforma Política” – Um álibi freqüente de que se tem usado e
abusado, em tempos de crise aguda, é o apelo a reformas, ou seja: “aprimorar a
legislação”. Um verdadeiro despropósito, até porque leis existem, inclusive
apropriadas... O problema é que sua aplicação é seletiva: elas se aplicam
quando convêm aos “donos do poder”... É possível dessa crise recolher pistas de
superação? - Reavivar o rumo almejado – Caminhos de saída para a crise só
haverá, caso sejam capazes de afetar a raiz do problema. Dentro do Capitalismo,
estamos cansados de saber, crise depois de crise, que não há a mínima chance.
Pode-se, quando muito, adiar o “estouro da boiada”. Mas, volta e meia, de novo
ela se instala. Só um horizonte alternativo ao Capitalismo pode inspirar
credibilidade aos e às que se entregam à busca de uma saída, olhos fixos na
viabilização de um projeto alternativo, útero de uma sociabilidade alternativa.
Ainda que não tenhamos condições (pelo menos subjetivas) de fazer irromper já
essa transição. Podemos até abrir mão do nome dessa nova sociedade, não do seu
conteúdo, não do teor de suas relações que se vão construindo desde já. De
fato, o que importa é o conteúdo das novas relações em que apostamos, devendo
sempre comportar traços tais como: a igualdade social, a solidariedade, a
justiça social, a eliminação de todo tipo de privilégio (de classe, de gênero,
de etnia, de orientação sexual, de religião, etc... Nunca é demais lembrar o
alerta da personagem José Dolores, do filme “Queimada”: “É melhor saber para
onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.” Recuperar
o horizonte da classe trabalhadora, do campo e da cidade. Compromisso que se
viabiliza à medida que se vá dando prova de que nem laços de sangue nem laços
de amizade deverão ter primazia sobre o compromisso de classe. - Retomar os
caminhos correspondentes ao rumo – - Inverter, em favor das ações instituintes
junto à classe trabalhadora (movimentos sociais, organizações sociais de base,
grupos sindicais, etc.), as atividades hoje consagradas quase exclusivamente à
atuação partidária convencional; - Priorizar o recurso aos meios simples
(aprender das massas dos deserdados, pelo permanente e orgânico convívio ou
contato com elas; nada de se apelar para endividamento, ou de apostar em
sofisticações); - alternância ou rodízio de funções (não permitir que as mesmas
pessoas exerçam indefinidamente as mesmas funções ou cargos); - combate ao
personalismo (a força está no coletivo, nada de culto a “gurus”, o que não deve
impedir a reverência e o justo respeito a quem, pelas suas atitudes, se mostre
fiel à causa dos deserdados); - superação da dicotomia trabalho manual/trabalho
intelectual; - promover a união e a organização das camadas populares por meio
de pequenos grupos (não importam os nomes que lhes sejam atribuídos: conselhos,
brigadas, células, núcleos...) - Redefinir constantemente parceiros, aliados e
adversários – Tal é a dinâmica com que mudam os cenários das sociedades, nessa
fase de profunda, célere incessante globalização, que implica constantes
redefinições de quem são mesmo nossos parceiros, nossos aliados e quem são
nossos adversários. Sem isso, podemos estar comprando constantemente gatos por
lebres... - Presentificar a memória histórica dos lutadores e lutadoras do Povo
– Uma iniciativa legada por quase todas as gerações de lutadores e lutadoras do
povo tem a ver com a disposição de fazer presente a densa memória de lutas populares,
com seus respectivos protagonistas. Reavivar a memória histórica é apostar na
necessária realimentação dos verdadeiros protagonistas, no sentido de
conduzirem a bom termo nossa justa inquietação com a classe trabalhadora. -
Exercitar a mística revolucionária nos espaços do Cotidiano – Quase todos os
graves deslizes têm por trás a presunção de que baste que um militante afirme
“pertencer ao PT” (ao que não poucos acrescentam: “Sou fundador do PT, desde as
origens.”), para logo sentir-se seguro nos seus compromissos. Se assim fosse,
não passaria de um ritual que se esgota em si mesmo. Isso não garante nada. O
que de fato garante é a renovada disposição do coletivo (movimento, sindicato,
partido...) e de cada militante, de refazer seus compromissos no chão das
relações do Cotidiano. E não com declarações de efeito ou metáforas, mas tendo
a prática como critério de verdade. Sobretudo nos últimos anos, o exercício da
mística vem sendo prática freqüente levada a sério por importantes segmentos de
protagonistas sociais comprometidas com a causa da transformação social, na
perspectiva das classes populares. - Apostar na formação continuada – O
processo de formação continuada, ou será uma prioridade efetiva para cada
militante, ou de nada valerão seus propósitos de compromisso com a causa dos
excluídos. É pelo incessante processo de formação, que os militantes conseguem
aprimorar sua capacidade perceptiva, condição para uma intervenção qualificada
nas relações sociais e humanas de cada dia. Tal como em tantas outras
experiências amargas do passado, não devemos esquecer que períodos de crise,
desde que bem trabalhados (com autocrítica), podem tornar-se propícios para uma
retomada, em novo estilo, de rumos e caminhos. Aqui também repousa nossa
esperança. (1) A esse respeito é bem elucidativa a entrevista feita com o Prof.
Fábio Konder Comparato (cf. Caros Amigos, no 72, março de 2003, p. 8), em que
denuncia o escandaloso expediente da Eletropaulo subsidiária da AES, em
situação de falência, nos Estados Unidos, com uma dívida de 3 bilhões de
dólares, a qual, deixando de pagar sua dívida ao BNDES (instituição pública
mantida com o dinheiro dos trabalhadores, o FAT), resolve socorrer a matriz,
remetendo-lhe um bilhão de dólares TEXTOS DE APOIO BENJAMIM, César. Apertem os cintos.
Caros Amigos, nº 85, Rio de Janeiro, abril, 2004, p. 21. ______________. Triste
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Janeiro, abril de 2004, p. 14. SINGER, Paul. O PT tem jeito? (Ou o jeito do
PT). In: Debate Aberto, espaço promovido pela Fundação Perseu Abramo. Artigo
datado de 3/8/2005. - Alder Júlio Ferreira Calado é sociólogo.
Docente-pesquisador na FAFICA, Caruaru – PE. Assessor de Movimentos Sociais e
Pastorais
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