BEBENDO NO POÇO DE MEMÓRIAS IRRUPTIVAS,
EVOCADAS POR 2018
Alder Júlio Ferreira Calado
Para além de todo saudosismo estéril, eis-nos a
revisitar o passado, em busca de melhor entender o presente e de ousar ensaiar
passos eficazes de alternatividade ao atual modelo societal, bem como, no que
toca especificamente aos cristãos e cristãs, em busca de reavivar a memória
revolucionária do Movimento de Jesus. Com efeito, revisitamos, uma vez mais, o
passado, como quem busca remover cinzas sob as quais ardem brasas, a
desprenderem centelhas carregadas de energia transformadora. E como precisamos,
hoje, dessas memórias irruptivas, das quais cuidemos de recolher lições ou
pistas de um exitoso enfrentamento de velhos e novos desafios, acumulados.
Nesse sentido, o ano de 2018, pelas memórias irruptivas - recentes e menos
recentes - que evoca, bem se presta a um fecundo exercício de beber nessas
fontes memoriais.
Nesse dia 16 de fevereiro p.p., estivemos a
rememorar a trajetória revolucionária de Dom Pedro Casaldáliga, que completou
seus bem vividos 90 anos. Como missionário da Tradição de Jesus, e como Bispo
da Prelazia de São Félix do Araguaia, segue sendo testemunha e protagonista de
lutas e de iniciativas dignas de um verdadeiro discípulo de Jesus de Nazaré.
Também, no dia 13 p.p., Elizabeth Teixeira completou seus fecundos 93 anos.
Parafraseando o título do filme de Eduardo Coutinho “Cabra marcado para
morrer”, alusivo à figura de João Pedro Teixeira, dela podemos dizer, como o
faz Genaro Ieno, tratar-se de uma “Mulher marcada para viver”. Neste sentido,
dada a sucessão de riscos de morte que também Dom Pedro Casaldáliga teve que
enfrentar, a ele podemos estender o mesmo dito de “homem marcado para viver”.
Do mês de fevereiro, é o que podemos destacar. como aperitivo para revisitarmos
episódios de um passado carregado de energia transformadora.
De início, indo além dos espaços eclesiais aqui
revisitados com mais ênfase, duas ocorrências (entre outras, sendo que estas
ambas coincidentes tendo como referência o mês de maio) nos chamam a atenção: a
comemoração do bicentenário do natalício de Karl Marx e os 50 anos do
acontecimento Maio de 1968. Qualquer que seja a posição em relação a Marx,
impossível não reconhecer nele um legado que constitui um marco na história
contemporânea. Dele, a exemplo de outras figuras de semelhante estatura
ético-política, pode-se dizer que parte considerável do ódio que atrai, tem
muito a ver com o quase completo desconhecimento do seu legado - de sua vida e
de sua obra. Não raro, é-se contra, sem que dele mesmo nada ou quase nada se
tenha lido. Não é esta a ocasião de tentar esboçar um panorama de seus feitos.
Que seja bastante aqui destacar-lhe alguns aspectos, de passagem. É tocante sua
capacidade imensa de diálogo com as mais distintas correntes de pensamento do
seu tempo e de épocas precedentes, inclusive a atenção que dedica ao pensamento
greco-latino. As notas de pé de página de vários de seus livros - escritos numa
época em que não se dispunha de variados recursos tecnológicos, como a internet
-, são de tal modo volumosas, que alcançam o número de páginas de um livro… Tal
sua sede de de busca da verdade. Escolha que o levou a dedicar décadas de
incessantes pesquisas, em condições das mais precárias, e tendo como objetivo
maior ser fiel ao seu compromisso (até hoje inexcedível) de dissecar à exaustão
a vasta e complexa estrutura e funcionamento do modo capitalista de produção,
em vista de desnudar as multiformes tramas de escamoteamento, aos olhos dos
segmentos mais explorados, como primeiro passo de uma resistência exitosa. Sem
condição de investir, com a mesma contundência, na investigação de esboço de
uma nova sociedade - tarefa de revolucionários e revolucionárias contemporâneos
- fez sua parte genial, sem a qual não se teria como organizar caminhos
alternativos, em busca de uma sociabilidade alternativa à barbárie capitalista.
As grandes mobilizações juvenis, em escala mundial,
às quais se costuma aludir como "Maio de 68", na França, na Europa e
alhures, constituem outro grande marco contemporâneo de inspiração, seja pela
ousadia de crítica e autocrítica, seja pela força utópica desencadeada
("Soyez réalistes: demandez l'impossible"...).
Outro marco de enorme relevância - este sobretudo
ao interno das comunidades cristãs - foi a realização, na Colômbia, mais
precisamente em Medellín, em 1968, da II Conferência Episcopal Latinoamericana,
protagonizada por uma geração atípica de bispos profetas, a alguns dos quais o
Teólogo José Comblin dedica um capítulo do seu livro A Profecia na Igreja (São
Paulo: Paulus, 2008, p.203-244). Em linguagem cristã, o acontecimento Medellín representou,
para a Igreja latinoamericana, um novo Pentecostes, tal a força de sua irrupção
profética. Tida como a melhor recepção do concílio Ecumênico Vaticano II,
alguns de cujos documentos apenas afloram levemente o que se daria em Medellín,
em relação à causa libertadora dos empobrecidos - conhecida como a “opção pelos
pobres” -, foi, com efeito, em Medellín, que segmentos relevantes da Igreja
Católica Romana rompem com toda uma tradição de conchavos com as forças
dominantes do continente, e se empenham em testemunhar o Evangelho,
secularmente escanteado pelos cristãos, no caso da América Latina, desde o
início da colonização.
Mais do que um desdobramento das decisões
enunciadas em documentos do Concílio Vaticano II, Medellín constitui um eco
mais ampliado do Pacto das catacumbas, celebrado, nos arredores de Roma, por 40
bispos, pouco antes do encerramento do Concílio Vaticano II, mais precisamente
em 16 de Novembro de 1965. Como lembra o Teólogo José Comblin, o pacto das
catacumbas constituiu uma iniciativa profética de um pequeno grupo de 40
bispos, conscientes da desigual correlação de forças reinante nas Aulas
conciliares, que quis testemunhar sua posição evangélica de compromisso com a
causa libertadora dos pobres. Não é por acaso que a maioria dos membros do
signatários do pacto das catacumbas fosse oriunda do chamado terceiro mundo.
Outro aspecto digno de registro, em relação a
segunda II conferência episcopal de Medellín, tem a ver com seu contexto de
enorme efervescência latinoamericana de resistência às ditaduras
civil-militares então reinantes. Mais: há de se considerar, igualmente, o
ascenso de movimentos populares, especialmente no cone sul, inclusive na
Argentina, onde o movimento chamado Sacerdotes para o terceiro mundo sinalizava
um protagonismo relevante, alcançando inclusive alguma influência em setores
componentes da Conferência de Medellín.
O Documento final resultante desta Conferência
constitui, ainda hoje, um marco profético na trajetória dos cristãos e cristãs
latinoamericanos. Não tanto pro ser um documento, mas fundamentalmente por
expressar um acontecimento novo gestado no interior dos povos latino-americanos
e caribenhos. Sinaliza para a autonomia da Igreja latino-americano, que passa a
ter rosto próprio, superando sua condição de mero reflexo de uma eclesiologia
eurocêntrica.
Tanto em seus conteúdos, como em sua forma, o
Documento de Medellín é expressão viva de um novo Pentecostes, a inspirar novas
práticas e nova metodologia, a luz da tradição de Jesus. Os próprios títulos do
referido documento constituem sinais convincentes da força da palavra de deus.
O Documento parte sempre da realidade concreta dos povos latino-americanos, em
especial dos pobres. Seja quando trata de temas como “promoção humana”,
“justiça”, “paz”, “juventude”, “educação”, e outros, seja quando lida com a
forma de tratar esses mesmos desafios, o documento apresenta candente novidade,
à medida que parte de um exame criterioso dessas diversas realidades, para, em
seguida, confrontar tais realidades com a palavra de Deus, apresentando, por
fim, pistas pastorais a serem ensaiadas.
Sobretudo a
partir do acontecimento Medellín, desencadeia-se, no continente, uma sucessão
de fecundas experiências sócio-eclesiais inéditas, quanto ao conteúdo e quanto
à forma, no tocante às práticas seculares de se lidar com os pobres. O eixo das
iniciativas gira em torno da “opção pelos pobres”, expressão que recobre uma
diversidade de experiências de base evangélica, que se apresentam como uma boa
notícia aos pobres. Não se trata de pretender que, somente a partir de então,
a(s) Igreja(s) cristã(s) cuida(m) dos pobres, mas de se passar a fazê-lo com um
novo olhar, em relação às experiências tradicionais dominantes, ao longo de
séculos. É claro que, em certas épocas históricas (na baixa Idade Média, por
exemplo, com os movimentos pauperísticos), também se teve um olhar evangélico
para os pobres. Mas, isto foi exceção. A regra era lidar-se com os pobres como
meros alvos de “caridade”, tratando-os como sujeitos passivos, de um lado, e,
por outro, fazendo-se alianças - as mais espúrias - com os setores
privilegiados, em busca de se recolherem migalhas das mesas dos ricos para os
pobres Lázaros…
A partir, sobretudo, de Medellín, vai-se lidar com
os pobres, de outro modo. São tratados como os destinatários primeiros do Reino
de Deus, neles se reconhecendo a presença viva de Jesus, portadores
privilegiados da mensagem de libertação, conforme a leitura do texto de Lc 4,
16-19. Mais do que alvos de comiseração (no sentido ambíguo de “caridade”), os
pobres passam a ser tratados como protagonistas do processo de evangelização,
sujeitos de sua libertação histórica, cidadãos e cidadãs do Reino, no mundo e
nos espaços eclesiais, ainda que, neste último sentido, ainda de modo bastante
reticente…
Nos anos subsequentes, o acontecimento Medellín
vai-se enraizando nas experiências comunitárias, em diversas áreas do
continente. No caso do Brasil, especificamente, o acontecimento Medellín vai
impulsionar de modo extraordinário, experiências tais como as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), as Pequenas Comunidades de religiosas inseridas no
Meio popular, pastorais sociais (CIMI, CPT, CPO, PJMP, etc), bem como
movimentos eclesiais de libertação dos Pobres, tais como ACO, MER, ACR, PU,
etc), além de inspirar sobremaneira a produção de um novo modo de fazer
Teologia, no caso, a teologia da Libertação. Opera-se durante algumas década
uma ação revolucionária de transformação, não apenas das relações sociais, mas
também ao interno da vida eclesial, ainda que sob um comprometedor controle
hierárquico.
A este respeito, o ano de 2018 também evoca os 40
anos da realização em João Pessoa do III encontro intereclesial das CEBs,
tematizando a Igreja enquanto povo que se liberta. Após os 2 primeiros
encontros das CEB’s, em Vitória (es) é o nordeste- e mais precisamente João
Pessoa - a região escolhida para a realização do III intereclesial das CEBs,
num contexto de extraordinária fermentação dos movimentos populares, animados
pela Igreja na base. É aí que tem lugar a ação fecundante do que veio a
chamar-se Teologia da Enxada, a inspirar fecundas experiências
organizativas e formativas da Igreja na Base, ainda hoje apresentando frutos
admiráveis.
Rememoramos estes acontecimentos, justamente em
2018, quando pelo menos 2 outras iniciativas têm lugar no Brasil. A Igreja
Católica no Brasil houve por bem dedicar ao Laicato o ano de 2018. Eis uma
oportunidade rara para as Leigas e os Leigos ensaiarem passos decisivos de
assumirem sua missão, de modo mais amadurecido, isto é, de modo mais consciente
de sua vocação e missão. Sobre isto, ainda recentemente, propusemos, à guisa de
reflexão, um texto intitulado “POR UM NOVO LAICATO, RUMO A UM NOVO CONCÍLIO: ensaiando
passos, ao nosso alcance”, ao qual remetemos a quem interessar possa,
acessando-se o link http://textosdealdercalado.blogspot.com.br/2017/12/por-um-novo-laicato-rumo-um-novo.html
A segunda iniciativa, acima aludida, é a
realização, prevista para novembro do corrente ano, em Aparecida-SP, do Fórum
Mundial do Povo de Deus, em mais uma edição, organizada por delegados e
delegadas de movimentos de renovação da Igreja, dentre os quais o Movimento
Internacional Somos Igreja (IMWAC - International Movement We Are Church), que
também no Brasil (em São Paulo e João Pessoa) tem representação.
Sirvam-nos estas memórias de inspiração a um
exitoso enfrentamento de velhos e novos desafios, presentes no Mundo e nos
espaços eclesiais.
João Pessoa, 20 de fevereiro de 2018.
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