A ESCOLA COMO
INTERFACE DOS SABERES E SABORES DA VIDA:
ponderações
prospectivas
Alder Júlio Ferreira
Caldo*
Pensar
currículo implica, entre outros quefazeres pedagógicos, projetar, experienciar
e avaliar continuamente uma parcela significativa de nossa vida, tendo a escola
como referência. Parcela significativa de nossa vida, pelo menos do ponto de
vista de certas marcas – boas ou más, ou boas e más - que tal experiência acaba
imprimindo em quem tenha passado pela escola.
Ainda
que as estatísticas oficiais tendam a acenar para um quadro apoteótico da
evolução das matrículas, bem sabemos da enorme fragilidade desse índice, quando
se trata de aferir a qualidade e as condições de permanência e duração do tempo
escolar da imensa maioria dos nossos alunos e alunas.
Também
neste particular, produz-se e se reproduz, não raro, um efeito semelhante ao
fenômeno da concentração de terra, de renda e de riquezas: o menor ou maior
sucesso na escola passa a depender das efetivas condições de inclusão ou
exclusão social. Basta conferir os dados oficiais referentes ao perfil
sócio-econômico dos excluídos da escola ou dos apenas precariamente atendidos.
Não
será este, contudo, o foco desta reflexão, por mais útil que se mostre à
contextualização do nosso alvo de reflexão. Aqui pretendemos, antes, realçar
elementos de um rosto de escola que, numa perspectiva emancipatória, somos
historicamente instados a protagonizar. Para tanto, tomamos como roteiro os
seguintes questionamentos: a) É possível protagonizar um projeto alternativo de
escola numa sociedade de profundas e crescentes desigualdades sociais? Como
potencializar as lutas sociais mais amplas e as lutas especificamente
educativas, num horizonte de alternatividade? c) No caso particular da escola,
como lidar com a questão curricular, de modo a presentificar e aprimorar, no
cotidiano da escola, os saberes e sabores libertários que jorram, qual fonte de
águas subterrâneas, do útero mesmo da velha sociedade?
a) É possível protagonizar
um projeto alternativo de escola numa sociedade de profundas e crescentes
desigualdades sociais?
Boa
parte de minha geração (e mesmo da atual) foi educada numa perspectiva de
considerável capacidade de desmonte de modelos pretensamente acabados. Poucas
gerações deram prova de tamanha astúcia. Mas, já não saberia dizer o mesmo de
nossas gerações, quando se trata de mostrar como se faz diferente. Críticos
ardorosos e contundentes dos adversários, ao assumirem posição de mando, têm-se
mostrado, não raro, impotentes em fazer valer suas mais caras apostas. E pior
ainda: reeditando práticas antes condenadas sem meios termos, seja no âmbito
governamental, seja no plano partidário, ou ainda na esfera sindical, ou mesmo
na Academia...
As
conseqüências não tardam a aparecer. No plano macro-social, o quadro antes tão
fortemente criticado, a justo título, não cessa de se agravar: desenfreada
concentração de terra, de renda e de riquezas; sofisticação dos mecanismos de
pilhagem (endividamento incessante, volatilidade de capitais especulativos,
assujeitamento às normas iníquas de regulação das relações de mercado impostas
pelo G7, a serviço das tansnacionais, precarização das relações de trabalho,
desemprego estrutural, abandono das políticas sociais antes assumidas pelos
estados nacionais, ainda que dentro da lógica do Capital, apelo abusivo a
expedientes de filantropia em substituição ao papel do Estado, explosão da
miséria e da violência social...
E
o quê dizer especificamente da política especificamente voltada para a
Educação? Aqui também não há com fugir à regra dos cortes e contingenciamentos,
feitos em função do famigerado “superávit primário”, um eufemismo usado para
expressar a trágica subordinação ao FMI, com a conseqüente abdicação do já
combalido exercício de soberania nacional, com a agravante de que, para
surpresa geral, em matéria de “superávit primário”, terminou se prometendo
garantir mais do que tinha sido exigido pelo próprio FMI... Irônico desfecho protagonizado justamente por
quem mais prometia opor-se à política de globalização neoliberal, que, no
tocante especificamente à política educacional, vem sendo não raro formulada e
imposta por órgãos como o BIRD, de tal forma que há quem considere (a exemplo
de Roberto Leher) que ele funciona como o verdadeiro Ministério de Educação para
os países periféricos.
É
aqui que ousamos situar o desafio maior do nosso primeiro questionamento: é
razoável pretendermos um projeto alternativo de escola, no interior de um
sistema viciado desde suas entranhas? Não seria o caso de, primeiro, combater e
superar o tal sistema, para, somente depois,
ocupar-nos especificamente do quefazer educativo?
Parte
substantiva da resposta a tal questionamento nos vem da ainda recente
experiência de malogro do socialismo nominal. O receituário stalinista que,
durante décadas, pautou a prática política e existencial de um número
considerável de militantes fora da ex-URSS, apostava cegamente na tese do
etapismo, isto é, acreditava-se que, inevitavelmente, o Capitalismo cairia de
podre, bastando, para tanto, esperar o cumprimento de sucessivas etapas
supostamente inerentes ao desenrolar histórico do Capitalismo, o qual, por
carregar os germes de sua própria destruição, requereria atingir o ápice do seu
desenvolvimento, para, somente então, cair de podre e ser substituído pelo
socialismo.
Equívoco
fatal! Foi, com efeito, arrasador o desdobramento dessa tese, não apenas no
âmbito político-pedagógico, mas sobretudo no plano ético, na medida em que tal
aposta metafísica, ao suscitar um clima de prepotente certeza, implicou um
afrouxamento no empenho da subjetividade e da inter-subjetividade, no sentido
da produção de uma subjetividade alternativa, voltada para a formação
omnilateral de um novo homem, de uma nova mulher.
Em
vez disso, cuidou-se em aperfeiçoar o desenfreado controle dos aparelhos de
Estado, numa disputa fratricida e autofágica às vezes pelo mais insignificante
naco de poder. Clima que favoreceu a criação de verdadeiros monstros – pessoas
frias, calculistas, mal-humoradas, mal resolvidas, extremamente oportunistas,
insensíveis à sorte dos outros, ávidas a tirar vantagem a qualquer preço, ainda
que não abrissem mão do formalismo do tratamento verbal de camaradas ou
companheiros...
Maldita
herança, cujas manifestações se fazem presentes para além dos espaços estritamente
políticos, invadindo e infetando os mais distintos ambientes e relações,
inclusive o espaço acadêmico ou escolar, cujos sinais podemos observar, sob
múltiplas formas: vaidade doentia, carreirismo desenfreado, obsessão por cargos
de mando, estabelecimento de relações interesseiras, mania de estrelado,
incapacidade de convivência gratuita com o diferente, arrogância,
auto-suficiência, tendência a privatização de espaços públicos, tudo combinado
com o cinismo extremado de pretender tudo justificar com sua ardilosa
verborragia, impelidos pela ilusão de fazer que as palavras substituam os
gestos concretos... Trata-se, bem o sabemos, de vícios a que todos estamos
sujeitos, embora muito poucos consigam administrar razoavelmente dentro de
limites aceitáveis.
Voltando
ao cerne do nosso questionamento, se é mesmo verdade que nos empenhamos na
construção de um projeto emancipatório de Educação, de Escola, de Currículo,
não faz sentido reeditarmos, no chão do nosso dia-a-dia, a caduca tese do
etapismo, deixando-nos sucumbir à cilada de tornar-nos hábeis especialistas em
criticar as falcatruas estruturais e conjunturais do sistema, sem esboçarmos,
em contrapartida, sinais visíveis e convincentes de que estamos efetivamente
empenhados – mais por nossas práticas do que nossos bem ou mal tecidos
discursos – traços de seres humanos dispostos a uma incessante renovação, numa
perspectiva omnilateral, vale dizer: em todos os ambientes do nosso cotidiano,
dos quais a escola constitui um relevante espaço-tempo do curso da vida nossa e
dos nossos alunos e alunas.
Empenho
que pode e deve ser atestado, de várias maneiras, como trataremos de assinalar
nos itens seguintes.
b) Como potencializar as
lutas mais amplas e as lutas especificamente educativas, numa perspectiva de
alternatividade?
Comecemos
pelo cometimento de dois atos complementares, sendo um de humildade e outro de
ousadia. Cuidemos, por um lado, de evitar redescobrir a roda, buscando, por
meio da recuperação da memória histórica, rastrear os achados de nossos clássicos
e contemporâneos – mulheres e homens. Muito antes de nós, muita gente boa, em
todas as partes do mundo e em tempos remotos, empenhou-se em fazer estrada,
havendo por isso logrado relevantes achados, como há tanto tempo o próprio
Newton já havia reconhecido. Somente uma imperdoável ingenuidade nos faria
desconsiderar esse dado.
Por
outro lado – e aqui vai o apelo ao segundo ato complementar -, partindo desses
achados, tratemos de realçar vôos, cuidemos agora de fazer a nossa parte, por
mais modesta que seja. Lembrados de que vivemos um mundo bastante distinto – a
despeito de teimosas similaridades – daquele vivido por nossos antepassados,
estamos a enfrentar novos e velhos desafios, cujo enfrentamento eficaz exige de
nós o emprego de métodos e ferramenta tecnicamente apropriados e eticamente
conseqüentes ao horizonte libertário que perseguimos.
Nesse
sentido, vale destacar algumas de nossas apostas:
- Tão ou ainda mais importante
quanto o conhecido “Pensar global e agir local” é ensaiarmos passos no sentido
da adequada articulação entre pensar local e globalmente e agir local e
globalmente.
- Tal exercício demanda uma
leitura permanente e interdisciplinar da evolução do quadro global e de seus
rebatimentos no âmbito local, e vice-versa. Procedimento a ser adotado nas
situações mais rotineiras do nosso quefazer educativo.
- Recorrendo a esse exercício,
vamos aprimorando tanto nossa capacidade perceptiva, quanto nossa habilidade em
trabalhar o específico curricular, partindo inclusive de minúsculas situações
curriculares, e, ao mesmo tempo, buscando identificar nelas sinais e dimensões
de alcance global, à medida que vamos percebendo que os achados e as conquistas
singulares – nossos e dos nossos alunos e alunas – presentificar uma
experiência de novos homens e de novas mulheres, ainda que numa dimensão
molecular, correspondendo a preciosos e indispensáveis passos que estamos dando
no curso de uma longa caminhada, no processo de uma formação omnilateral.
- Criar o hábito de recuperar e
manter acesa nossa dimensão coletiva, nossa condição de seres integrantes da
humanidade, parte de uma rede de grupos, de comunidades, de movimentos sociais,
com dimensão ao mesmo tempo local, regional, nacional e planetária, que nos
leve a sentir e a fazer nossa a família humana espalhada pelos cinco
continentes, todos abrigados pela nossa Mãe-Terra, assumindo ipso facto
como nossas suas dores, suas lutas, suas conquistas, suas alegrias, sonhos e
esperanças.
c) No caso particular da
escola, como lidar com a questão curricular, de modo a tornar presentes e de
modo a aprimorar, no cotidiano da escola, os saberes e sabores libertários que
jorram, qual fonte de águas subterrâneas, do útero mesmo da velha sociedade?
Tratamos
aqui fundamentalmente de indagar quais saberes interessa-nos priorizar, no
processo de aprendizado escolar, particularmente voltados à questão curricular.
A despeito do caráter incipiente e embrionário, importa tomar em conta que os
saberes que abaixo elencamos já constituem uma experiência concreta em distintos
espaços escolares protagonizados especialmente por movimentos sociais do campo.
Ouso fazê-lo recorrendo à linguagem dos versos.
QUAIS OS
TRAÇOS DO ROSTO DE UMA ESCOLA
QUE DA VIDA
FAZ SUA UTOPIA?
Na Escola se aprende o abecê
E as letras e cifras mais
diversas
As crianças tecendo mil
conversas
Pouco a pouco aprendendo vai
você
Pouco tempo depois, até já
lê
Lê melhor quem com bem mais
ousadia
A leitura do mundo já fazia
Eis, então, a questão que
desenrola:
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
Dessa vida mais leva o
aprendiz.
E quem diz saber tudo,
ignora
Os sinais espalhados, mundo
afora
Limitado, só curte o seu
verniz
Também erra quem, só,
aprender diz:
Na partilha, o saber se
irradia
Eis, de novo, a questão que
ainda rola
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
Trabalhar quem sou eu, e o
quê faço
É tarefa da Escola-cidadã
Que de mim vai cuidando como
irmã
Me ensinando a vencer os
embaraços
Com empenho, firmeza e
alegria
Bem sabendo que o mundo
desafia
E, contudo, uma dúvida nos
consola:
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
Apontando desânimo, há
sinais
Que, não raro, recebem
apelidos
“Bagunceiros”, alunos
atrvidos
“Encrenqueiros”,
“briguentos”, outros mais
Mas a tática resulta
ineficaz
Se a Escola não traz o
dia-a-dia,
A moçada persiste arredia
E aos mestres fustiga,
intriga, amola
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
Vejo alunos distintos, em
perfil
Sobretudo, se os ponho a falar
Refletindo o que neles vem
do lar
Seus limites, virtudes,
traços mil
Não levar isso em conta... é
um ardil
Desmotiva quem quer
Cidadania
Do percurso do aluno se
desvia
E seu rótulo de “mau” não se
descola
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
Se relapso, rebelde ele se
porta
Pode estar refletindo a
estrutura
Dum sistema que exclui e que
tortura
Ao negar-lhe o acesso a
tantas portas
Mas, se gestos didáticos tu
lhe apostas
És capaz de injetar-lhe
alegria
Recompõe-se, refaz-se e
avalia
Superando o estigma que o
esfola
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
Vida em grupo refaz a
auto-estima
De quem, só, não consegue
quase nada
Desde que não se deixe a
moçada
A vagar rua abaixo, rua
acima
Ser ter rumo sua vida, sem
ter rima...
Despertando talentos,
rebeldia
Contra tudo que oprime e
esvazia
Combatendo a raiz do que
viola
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
De saber temos sede, nós,
humanos
É missão da Escola o
incentivo
Pra formar jovem alerta,
criativo
Indo além de freqüentes
desenganos
De horizontes inúteis,
levianos
Um antídoto certeiro: a
rebeldia
Ao sistema vigente, que
atrofia
E milhões de pessoas ele
imola
Quais os
traços do rosto de uma Escola
Que da Vida
faz sua Utopia?
João Pessoa, 8 de março de 2001.
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