MOVIMENTOS SOCIAIS
RUMO A UMA NOVA SOCIEDADE:
do consenso
ideológico ao dissenso alternativo
Alder Júlio Ferreira
Calado*
Cada
vez mais grave é o estado da atual crise de sociabilidade, a impregnar, ao
mesmo tempo, relações de sociedade, de Estado, de instituições, de
subjetividades, de valores... E já não são as forças sociais mais combativas
que denunciam, sozinhas (ainda que por razões diferentes), os índices
escandalosos da profunda desigualdade social, manifesta, por exemplo, na
esdrúxula concentração de riquezas, a infelicitar bilhões de seres humanos, nos
mais distintos recantos do Planeta. Não bastassem as fontes ligadas às forças
opositoras da ordem estabelecida, eis que hoje são as mais insuspeitas fontes
do, ou vinculadas a esse próprio sistema, que já não hesitam em reconhecer
dados até há pouco tempo por elas omitidos ou mesmo negados.
Situação
de progressivo aviltamento que não se restringe à extremada concentração de
riquezas. Estende-se a outras esferas da realidade. Além da esfera da produção
(em suas mais diversas incidências: relações de propriedade, de produção, de
trabalho, de comércio, de consumo, etc.), afeta não menos as relações de poder
(instâncias, formas e procedimentos de decisão, seja nas relações com o Estado,
seja em outros espaços de distribuição e exercício de poder), bem como a esfera
cultural (valores hegemônicos, sujeitos produtores e consumidores de Cultura,
processos de fruição dos bens culturais), sem esquecer as relações dos Humanos
com o Planeta e com o Sagrado.
Ao
ensaiarmos uma breve incursão analítica por espaços, sujeitos, instâncias e
posturas da sociabilidade atualmente hegemônica, move-nos, entretanto, o
propósito de fazê-lo priorizando nossa atenção às formas alternativas de
sociabilidade, em curso ou em gestação, a despeito de sua pouca ou quase nula
visibilidade, no leito das relações sociais do “rio de superfície”, já que tais
manifestações alternativas, ainda que moleculares, são, antes, observáveis nas
“correntezas subterrâneas”, isto é, nos espaços não-convencionais.
Sucede que,
para percebermos essas tão sutis manifestações alternativas, temos que
exercitar continuamente o aprimoramento de nossa capacidade perceptiva,
reeducando nossos olhos, nossos ouvidos, nosso sentir, nossa intuição, de modo
a nos tornarmos progressiva e incessantemente capazes de ver, de ouvir, de
sentir, de intuir fatos e situações dos quais, antes, não nos dávamos conta, ou
que mal alcançávamos.
Na
exposição de nossa reflexão, que pretendemos problematizadora e provocativa,
começamos por destacar a) fatos e situações mais palpáveis, mais visíveis, que
permeiam as relações sociais características da sociabilidade hegemônica em
curso, na qual campeia o exercício do consenso ideológico. Em seguida, buscamos
apresentar b) alguns sinais capazes de apontar para o esgotamento e a
insustentabilidade do perfil de forças sociais ainda consideradas aptas a
enfrentar com eficácia o atual modelo de sociabilidade. Por último, ousamos
acenar para c) algumas práticas de forças sociais - em especial, aqueles
Movimentos Sociais com projeto alternativo de sociedade - que atestam,
inclusive pelo exercício do dissenso alternativo, ser possível a construção de
uma nova sociedade, de uma sociabilidade alternativa à ordem hoje hegemônica.
1. O exercício do consenso ideológico como ferramenta a
serviço do “establishment”
Não
faz muito tempo, apenas as forças de oposição à ordem dominante encarregavam-se
de denunciar o caráter perverso das políticas macro-sociais “propostas” pelos
organismos multilaterais aos países periféricos. Tal o ritmo de agravamento das
condições sociais e das do Planeta, resultantes de tais “propostas”, em tantos
países do mundo, que agora se ouvem vozes oficiais (ou oficiosas), a
reconhecerem o óbvio, que até então silenciavam ou negavam. Trata-se de
depoimentos, declarações ou análises impactantes, não tanto pelo que revelam,
mas por procederem de um outro horizonte. Sobretudo nos últimos tempos, vêm-se
escutando referências a certos dados de realidade por parte dos próprios organismos
multilaterais, inclusive a ONU. Dados concernentes, por exemplo, à
infra-estrutura e às condições de vida de populações de vários países, a
exporem índices alarmantes sobre o aviltamento progressivo da qualidade de vida
de bilhões de seres humanos e do Planeta.
Há quase dez
anos, vinham à tona dados do Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento), relativos ao ano de 1998, dando conta do aumento do fosso
entre ricos e pobres. Um dos artigos de Le Monde diplomatique,
intitulado, não por acaso, “Stratégies de la faim”, assinado por Ignacio
Ramonet, atinha-se particularmente ao teor desse Relatório:
Sabíamos que o fosso das
desigualdades havia crescido, no decorrer das décadas ultraliberais
(1979-1998), mas como imaginar que chegasse a esse ponto? Pois também tomamos
conhecimento de que, se "em 1960, os
20% da população mundial que vivem nos países mais ricos, tinham uma renda 30
vezes maior do que a dos 20% mais pobres, em 1995 a renda dos mesmos era
82 vezes superior (2)"! Em mais de 70 países, a renda por habitante é
inferior à de vinte anos atrás. No âmbito mundial, mais de 3 bilhões de pessoas
- a metade da humanidade - vivem com menos de 10 francos. (“Stratégies de la faim”, Le Monde diplomatique, novembro de 1998)
Ora, de nada
valeu o alerta. Vários anos depois, e já em meados da primeira década do século
XXI, outros dados – desta vez do próprio Banco Mundial – mostravam que, não
apenas a situação das desigualdades gritantes
não havia sido contornada, como chegava a agravar-se ainda mais. Em seu
relatório de 2006, com efeito, lê-se, por exemplo, que “o nível médio da renda
real dos países mais ricos é 50 vezes maior do que nos países mais pobres.” (World
Development Report 2006, cf http://siteresources.worldbank.org
)
Soa
de tal modo surpreendente, tal divulgação, que nos induz a indagar: o quê teria
levado esses órgãos a admitirem, de própria voz ou pela boca de figuras
ilustres ligadas aos mesmos, não só o agravamento das condições gerais de vida
de parcelas significativas das populações de tantos países, como também algum
tipo de reconhecimento de equívoco de suas “receitas”? Na verdade, o evidente
agravamento é que os força a reconhecerem, ainda que implicitamente, o fracasso
das políticas sociais que “propuseram” a esses mesmos países, via FMI, Banco
Mundial e similares.
É
o que sucede, por exemplo, em relação às declarações, depoimentos, entrevistas
e comentários vindos de Joseph Stiglitz, figura emblemática, dado seu perfil de
celebrado e insuspeito economista acreditado junto às forças mais
representativas do sistema dominante. E não se trata de uma “infeliz”
declaração, pronunciada de modo açodado, nem de pretenso desvirtuamento do seu
pensamento. Há cerca de cinco anos, os principais órgãos de imprensa tinham
dado conta de declarações ou comentários seus nada ortodoxos. Uma dessas
ocasiões deu-se em 12 de setembro de 2002, em palestra sua realizada no
Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qual
o economista Joseph
Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel de Economia, apontou o Consenso de
Washington como um dos principais responsáveis pelo fraco desempenho econômico
e social da América Latina nos anos 90. No entender de Joseph Stiglitz, o crescimento
econômico verificado na América Latina na década de 90 foi aparente e, mesmo
assim, ao invés de refletir uma eventual pertinácia do novo modelo que foi
imposto à região, traduzia ´a recuperação da ressaca do crédito externo dos
anos 80´, explicando a crise vivida a partir de 1988 e a elevação dos índices
de desemprego e de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Em sua
elucidativa palestra, Joseph Stiglitz não poupou nenhum dos pontos centrais do
Consenso de Washington, especialmente a flexibilização do mercado de trabalho,
a ênfase excessiva no ajuste fiscal, o controle da inflação, a privatização e
liberalização. Para fechar, Stiglitz recomendou todo cuidado com a Área de
Livre Comércio das Américas (ALCA) que, no seu entender, seria boa para os
países da região, se os Estados Unidos abrissem de fato os seus mercados, mas
isso não vai ocorrer pois ´os Estados Unidos são muito bons em barreiras
não-tarifárias.´ (cf. Revista eletrônica O SOL, edição de 20/09/2002, www.solidaristas.com.br/sol06.htm
)
Se, a
propósito, nos ativermos, ainda que de passagem, ao campo das políticas
educacionais “propostas” pelo BIRD aos países periféricos do Capitalismo, vamos
constatar a configuração de um processo, até então inédito, além de fortemente
intrigante. Em vez de serem as reformas educacionais (e em outras áreas)
protagonizadas pelos respectivos Estados nacionais – prática até então
habitual, no sistema capitalista -, o que se passou a ver, desde então, foi a
imposição por um Banco – o BIRD – de uma política educacional, à revelia e, por
vezes, até contrária às leis internas de cada país, como foi o caso do Brasil.
Os governantes
de grande parte dos países periféricos – Brasil inclusive - foram cooptados a
implementarem, via Congresso, mudanças nos textos legais, a partir da própria
Constituição, a fim de se adaptarem àquela política educacional. Fato que
levaria pesquisadores, como Roberto Leher, a imputarem, a justo título, ao BIRD
a usurpação da função própria de um ministério de educação... Não apenas em sua
tese de doutoramento, como também em outros escritos, Leher evidencia o lugar
que o Banco Mundial vem ocupando na formulação de política educacional,
inclusive para o Brasil. Também aqui, as reformas recém-implantadas, desde o
Governo Fernando Henrique Cardoso, têm nas formulações do BIRD sua principal
matriz conceitual. E não apenas, no caso específico do Brasil, posto que
Em diversos países é possível presenciar a ação desenvolta dos representantes
desses organismos nas decisões fundamentais da economia. (...) Este estudo
sustenta a tese de que a redefinição dos sistemas educacionais está situada no
bojo das reformas estruturais encaminhadas pelo Banco Mundial, guardando íntima
relação com o par governabilidade-segurança.
(LEHER, 2003, p. 1)
A
estreita associação feita pelo Banco Mundial entre educação e segurança, a que
se refere Leher, nos remete, direta ou indiretamente, aos famosos “Documentos
de Santa Fé” (I e II), como expressão fidedigna do famigerado “Consenso de
Washington”, nos quais fora igualmente redobrada a atenção das forças
dominantes em relação à educação e à cultura, mais precisamente, ao terreno dos
valores. Naquele contexto sócio-histórico (começos dos anos 80), o alvo principal
das atenções estratégicas das forças dominantes, no que concerne ao campo
cultural, era constituído pela influência da Teologia da Libertação,
especialmente no continente latino-americano, interpretada como mera referência
sociológica vinculada ao Marxismo, e mais particularmente, à sua versão
gramsciana, julgada perigosa nos mencionados Documentos de Santa Fé.[1]
Urgia mover uma perseguição sem trégua aos principais formuladores daquela
Teologia. Questão da qual o próprio Vaticano, então sob o pontificado de João
Paulo II, não tardaria a ocupar-se, por meio da intimidação de seus principais
formuladores, a exemplo de Leonardo Boff, punido também em razão da formulação
heterodoxa de sua famosa obra Igreja: Carisma e Poder.
De
todos os modos, o campo educacional foi apenas uma das áreas-alvo das políticas
formuladas pelas forças dominantes para a periferia do Capitalismo. Em outras
áreas – saúde, previdência, telecomunicações, energia... -, o processo seria
reeditado, movido pela mesma lógica de mercado. Hoje, é o deus etanol que está
em voga: mais vale alimentar automóveis do que gente...
Por
outro lado, a despeito dos sucessivos ataques dos inimigos de classe, as
classes populares ainda enfrentam os efeitos perversos de um desafio bastante
complicado: o fascínio pelo exercício do consenso ideológico. E eis-nos diante
do “fogo amigo”, como expressão e produto de uma das estratégias mais eficazes,
atualmente postas em prática pelas forças dominantes: o recurso às técnicas de
cooptação.
Com efeito,
fazendo coro objetivamente com as novas incursões do Capital, no atual
contexto, observa-se uma tendência de significativas parcelas das próprias
forças populares a uma certa lassidão ético-política. Enquanto têm lugar os
ataques do Capital, constata-se, mesmo no interior de segmentos das forças
populares antes mais aguerridos, um certo refluxo em sua combatividade aos
valores e às armadilhas do projeto dominante de sociedade.
Em vez disso,
observa-se uma tendência ao irenismo (do grego “eirhnh”,
“eiréne”, “paz”, significando, no caso em apreço, pacifismo ou paz a qualquer
custo ou colaboracionismo). Já não se atêm, como dantes, ao cuidado de
identificar e distinguir parceiros e aliados em relação aos inimigos de classe,
o que induz, não raro, a práticas de conciliação de classes, por força do que
passam a se conformar com ações meramente reivindicativas ou pontuais de
políticas sociais capazes, quando muito, de aliviar temporariamente a extensão
da barbárie a que se acham submetidas crescentes maiorias da população mundial,
inclusive no Brasil.
Não raro,
tenta-se justificar tais práticas, recorrendo-se a argumentos pretensamente de esquerda, chegando-se até a
evocar – no meu entender, indevidamente - categorias freireanas como “Diálogo”,
fazendo-se ouvidos moucos ao alerta do próprio Freire, de que o diálogo só é
possível entre semelhantes e diferentes, não entre antagônicos (o que
implicaria algo como o diálogo do pescoço com a guilhotina...). Ao referir-se
às características comuns de uma sociedade de classes, Paulo Freire assim
descrevia o perfil dominante de suas relações:
Todos os temas e todas as
tarefas características de uma ´sociedade fechada´. Sua alienação cultural, de
que decorria sua posição de sociedade “reflexa” e a que correspondia uma tarefa
alienada e alienante de suas elites. Elites distanciadas do povo. Superpostas à
sua realidade. Povo “imerso” no processo, inexistente enquanto capaz de decidir
e a quem correspondia a tarefa de quase não ter tarefa. De estar sempre sob. De
seguir. De ser comandado pelos apetites da “elite”, que estava sobre ele.
Nenhuma vinculação dialogal entre essas elites e essas massas, para quem ter
tarefa corresponderia somente seguir e obedecer. (FREIRE, 1989, p. 47).
Outro sinal
desse refluxo estratégico incide no recurso aos instrumentos de luta da
Democracia representativa. Eleição atrás de eleição, entra governo, sai
governo, e os problemas estruturais, não só não se resolvem, como se agravam,
em escala crescente. Reedita-se, uma vez mais, o que – de tanto relembrar, em
escritos meus – já começo a chamar de “síndrome Florestan Fernandes”.[2]
A despeito do
caráter incisivo dos documentos fundantes do PT e da CUT, que repercutia na
prática política de expressivos contingentes de seus militantes, vale
reconhecer que um e outra, desde o nascedouro, não surgiam com proposta
tipicamente revolucionária. Tampouco nasceram apostando todas as suas “fichas”
nas instâncias de luta da Democracia representativa. Apostavam, sim, no
instituinte.
O que
contribuiu para essa reviravolta, que se foi produzindo progressivamente,
sobretudo a partir dos anos 90? Que fatores têm concorrido, na produção desse
fenômeno? Uma confluência de fatores dialeticamente relacionados ajuda a
entender esse desfecho. Vejamos alguns. Embora essas forças não tenham surgido
apostando demais na via institucional, tal atitude foi sendo progressivamente
modificada, na mesma proporção em que tais forças logravam conquistar
progressivos espaços nos aparelhos de Estado.
A exitosa
participação nos embates eleitorais, em todas as esferas (Câmaras de
Vereadores, Prefeituras, Assembléias Legislativas, Governos estaduais, Câmara
Federal, Senado, Presidência, Ministérios) conferiu a essas forças sucessivas
conquistas, permitindo-lhes inclusive uma reconhecida expansão do seu espaço de
controle da máquina governamental. Enquanto isso, a CUT tomava gosto na
progressiva colaboração de classes, seja em suas conversações com o patronado,
seja em sua inserção nos espaços governamentais, inclusive como co-partícipe na
gestão do Fundo de Amparo ao Trabalhador, ainda no Governo FHC, fazendo coro
com a onda da “(re)qualificação” laboral exigida pelo Mercado, enquanto
ferramenta de combate ao desemprego...
No
âmbito partidário, de uma meia dúzia de deputados federais que o PT elegeu, nas
eleições de 1982, o número vai se multiplicando, a cada eleição. Ritmo
semelhante, em outras instâncias legislativas. No plano do Executivo, desde a
conquista eleitoral da Prefeitura de Fortaleza, em 1985, e da de Vila Velha
(Espírito Santo), em 1988, o PT passaria a comemorar, a partir daí - e sempre
com crescente euforia - a ininterrupta sucessão de tantas outras, inclusive de
capitais e municípios de grande porte.
Os
milhares de militantes do PT e da CUT – mulheres e homens – até então
organicamente envolvidos nas lutas sociais do campo e da cidade (haja vista o
Plano de Lutas da CUT!) foram progressivamente abandonando (salvo exceções) o
terreno das lutas, instados que eram a fazer assessoria aos eleitos e eleitas,
e a ocuparem os mais diferentes espaços governamentais, passando a integrar
quadros de secretarias municipais, estaduais e tantas outras instâncias
estatais.
Ainda
em meados dos anos 90, à medida que ia percebendo uma certa tendência ao
esgotamento, no atual contexto sócio-histórico, do potencial transformador do
PT e dos demais partidos de esquerda convencionais, ousei considerar tal
hipótese, em seguida socializada em alguns textos (cf. Calado, 1997; 1999).
Hipótese que senti reforçada, confrontando-a com reflexões similares, atinentes
ao caso de Portugal (cf. Rodrigues, 1997).
Mesmo
não nos propondo aqui aprofundar fatores e implicações dessa opção, até porque
sobre isso vimos refletindo, há cerca de dez anos (cf. Calado, 1997; 1999;
2004; 2005), entendemos que vale a pena reportar-nos a e sublinhar aqui alguns
dos que consideramos aspectos mais impactantes.
Esses
fatos concretos vêm sendo por nós interpretados como expressão e produto, de um
lado, de uma tendência bastante freqüente na história das forças sociais que,
ao surgirem radicais contra a ordem estabelecida, vão arrefecendo
progressivamente seu potencial subversivo, à medida que passam a colecionar
conquistas nos espaços institucionais. Tendência bem estudada, inclusive, por
autores como Max Weber (cf. por ex., A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo) e Ernst Troeltsch (Die soziallehren der christilichen Kirchen
und Gruppen), particularmente no que respeita à evolução de grupos
sociais de orientação religiosa (os anabatistas, por exemplo), com propósito de
subversiva radicalidade[3],
e, por outro lado, de uma nova opção ético-política. A despeito de reiteradas
declarações em contrário, falam mais alto suas atitudes de evidente mudança de
escolha no rumo antes defendido e em seus respectivos caminhos. Critério de
verdade é o que se faz, não tanto o que se diz, a menos que este reflita
aquele. Princípio comum, aliás, tanto no Cristianismo (“Façam o que eles dizem,
mas não o que eles fazem”), quanto na perspectiva marxiana, tal como formulada
na segunda tese a Feuerbach.
Mesmo
admitindo-se a confluência de outras variáveis, a conjugação desses dois
fatores, acima mencionados, tem um peso decisivo no desdobramento de fatos e
situações por eles desencadeados, sob diferentes ângulos.
No que se
refere a aspectos mais diretamente econômicos, as crescentes vantagens
auferidas em função dos novos cargos (vereadores, prefeitos, governadores,
deputados, senadores...) foram afetando gradativamente o princípio do
auto-financiamento do Partido, corporificado na recomendação, até então tomada
a sério, de que o Partido deve ser mantido sobretudo pelas contribuições dos
seus militantes, de acordo com suas possibilidades, desde uma simples
contribuição correspondente ao valor de “um cafezinho”.
Entretanto, o
que se passa a ver, desde então, é o progressivo abandono desse princípio, que
passa a ser maciçamente substituído pela contribuição dos eleitos (30% dos seus
vencimentos de eleitos), com base na qual estes passam a controlar o Partido,
começando a “falar mais alto”, fazendo eco àquele ditado popular, de que “Quem
come do meu pirão, prova do meu cinturão.” Doravante, passou a pesar cada vez
menos a voz das bases, dos núcleos, que, aliás, passaram a sofrer um processo
de desmonte. Doravante, os eleitos do Partido passaram a ter peso maior nas
decisões partidárias, nas diferentes instâncias. Os destinos do Partido passam
a ser cada vez mais subordinados às decisões de um pequeno grupo, ainda que em
nome do conjunto do Partido.
Outro
desdobramento: o crescente arrefecimento do compromisso com a formação. Tanto
no âmbito partidário quanto no plano sindical, o processo formativo de membros
dirigentes e das bases constituía uma das suas marcas mais eloqüentes. À
medida, porém, que foram conquistando significativos espaços na institucionalidade,
passaram a afastar-se rápida e progressivamente do seu propósito original,
amoldando-se cada vez mais à feição do establishment., passando a
equiparar-se a qualquer partido da ordem. De sua inicial desconfiança e
relativo distanciamento das apostas no instituído, foram sendo progressivamente
seduzidos pelos atrativos postos conquistados no interior dos aparelhos de
Estado. Foram, desde então, abandonando sua aposta no potencial instituinte de
sua organização.
Daí para
frente, a perspectiva de classe foi cedendo lugar a uma luta fratricida,
interna ao Partido e à CUT, posto que o que ora contava era o controle da
máquina a serviço dos interesses de pequenos grupos, empenhados em garantir
seus respectivos postos de mando ou suas táticas eleitorais. Se, antes, mesmo
disputando eleições, havia a preocupação, por exemplo, com assegurar critérios
programáticos, critérios de aliança apenas com forças dentro do campo
socialista, além de critérios de perfis de candidaturas, doravante vão
prevalecer outros critérios, muito semelhantes aos adotados pelos partidos e
sindicatos da ordem.
Tal era a
mudança, que, em não poucos casos, já não era preterida somente a Classe
Trabalhadora, era o próprio Partido que seria relegado a plano inferior. Não
era mais questão de honra formar um Comitê do Partido. Este até podia haver,
mas como exceção ou de fachada. O que funcionava, com freqüência, era um
simulacro de comitê, a serviço de cada candidato ou de um pequeno grupo de
candidatos e seus apoiadores. Resultado previsível: ausência ou existência
estatisticamente desprezível de candidaturas do Partido, dando lugar
progressivamente a uma livre concorrência entre candidatos de si mesmos, não
raro em disputas fratricidas. Assiste-se, então, à substituição de uma incipiente
imprensa partidária por um serviço de imprensa de cada candidato, e por aí
segue...
Se já não eram
tão rígidos, como em suas origens, os critérios de admissão de novos filiados,
o processo de filiação vai sendo cada vez mais submetido a procedimentos burocratizados,
eufemisticamente ditos “pragmáticos”, de modo a permitirem a filiação de quem
quisesse entrar no Partido (ou até mesmo de quem não quisesse...),
independentemente de suas convicções político-ideológicas e de classe.
Mecanismo importante, aliás, para se assegurar maiorias artificiais, por
ocasião das assembléias deliberativas de eleições de delegados e delegadas
dispostos a selarem alianças, de acordo com meras conveniências eleitorais. Daí
para o surto de deslizes éticos (“quorum” forjado, atas fabricadas, etc.) foi
um passo.
Entendemos que
esses registros ajudam a compreender melhor como e por que se foi firmando a
tendência a uma lassidão ético-política nas práticas protagonizadas pelo
Partido dos Trabalhadores e seus aliados, no decorrer dos últimos anos.
Tendência que se vem firmando, à medida que tais forças se nivelam por baixo
aos partidos da ordem e seus aliados, nos mais diferentes espaços sociais
(partidos convencionais, inclusive alguns ditos “comunistas”; centrais
sindicais; organizações da sociedade civil; parcelas significativas de
segmentos universitários, igrejas, associações e até certos movimentos sociais
populares, todos sucumbindo ao exercício do consenso ideológico, a despeito de
manterem, por vezes, o discurso de uma esquerda aparente, afinal para o
discurso da razão cínica, não importa tanto a verdade, importa a
verossimilhaça... E os profissionais do “marketing” político fazem a festa!
No tópico
seguinte, buscamos trazer ao debate alguns elementos que possam ajudar a perceber
sinais convincentes do esgotamento dessas forças político-partidárias,
sindicais e populares, quando e se se trata da construção de relações sociais
alternativas ao modelo dominante.
2. Esgotamento das forças políticas que até há algum
tempo atrás haviam protagonizado o projeto de construção de uma sociabilidade
alternativa
Nada
fácil enfrentar o tipo de desafio interposto à caminhada da Classe
Trabalhadora, no atual momento do Capitalismo. Desafio multifacetado. Comporta
múltiplas variáveis. Uma delas tem a ver com a teimosia pouco convincente de
uma parcela das classes populares – inclusive parte dos dirigentes e militantes
históricos da esquerda partidária - que insiste em continuar apostando numa
mais que improvável recuperação de rumo do PT, da CUT e de seus aliados.
Isto nos faz
lembrar um episódio jocoso, que um fiel militante da Corrente “O Trabalho”, teimosamente ainda
ligada ao PT, me passou. O episódio teria ocorrido no Sertão do Pajeú, em
Pernambuco. À beira de um açude, alguém percebeu um cidadão a lançar nas águas
sua vara sem anzol. Surpreso, o observador pergunta: - “Você não se deu conta
de que sua vara está sem anzol?” E, em troca, recebe como resposta: - “Se
preocupe não. Aí não tem peixe, mesmo!”... Voltando para o rio de superfície
dos “partidos da ordem” (como, bom marxista, costumava chamar Florestan
Fernandes), será mesmo que desse mato sairá coelho?
Parece
inegável que a acumulação, pelas forças sociais até há pouco protagonistas de
mudanças, de graves deslizes ético-políticos, em relação ao horizonte de
mudança (na perspectiva das classes populares), bem como em relação aos
caminhos trilhados, nessa mesma direção, induz a perguntas do tipo:
- Ainda vale a pena prosseguir
apostando no potencial transformador dessas forças?
- Já não são bastantes e
convincentes os sinais de impotência emitidos pelas forças sociais que até há
pouco encabeçavam o projeto de construção de uma sociabilidade alternativa?
- Até quando vamos continuar
reeditando práticas, cujos desdobramentos nos remetem ao “déjà vu”?
- E aí, até quando vamos
continuar tentando dar conta dos desafios, recorrendo a meios que se têm
mostrado sobejamente estéreis, no fundamental?
Perguntas como essas emergem, inevitavelmente, a nos
exigirem uma reflexão (auto)crítica talvez incômoda, mas certamente ineludível.
Em textos anteriores, já tivemos oportunidade de socializar alguns elementos
desse desafio, mas episódios mais recentes do cenário político (não apenas no
Brasil) têm trazido novos elementos que atualizam e reforçam ainda mais essa
tendência. E, com ela, o sentimento de exaustão do atual “ciclo” protagonizado
pela esquerda partidária, que se situa entre o final dos anos 70 e inícios do
século atual.
As amplas e profundas transformações
sócio-históricas ainda em curso vêm afetando também práticas e concepções
macropolíticas que, até há pouco, gozavam de relativo consenso entre as forças
que se reclamavam – e ainda cometem o despropósito de se reclamarem! - de
esquerda, ainda que suas práticas disto cada vez mais se distanciem. Trata-se,
aí, como o dissemos anteriormente, de jogar no lixo a questão muito claramente
posta por Marx, no enunciado da segunda das “Onze Teses a Feuerbach”: a de que
é pela prática, e não pelo discurso, que se testa a verdade.
Por mais que continuemos a não alimentar
fáceis “certezas” de um passado ainda recente, que a tantos induzia a apostarem
cegamente, como uma fatalidade por força da qual o Capitalismo cairia de podre,
só temos a nos rebelar cada vez mais contra o discurso da racionalidade cínica
que hoje campeia. Entendemos que, no caso do Brasil atual, partidos como
o PT e seus aliados da base governista,
ainda que não cessem de comemorar seus inegáveis avanços no plano
eleitoral, não apenas não conseguem fazer prosperar suas antigas propostas
de mudança, como tendem a conformar-se aos padrões ditados pela ordem dominante
(inclusive, em casos mais recentes como o projeto de transposição das águas do
rio São Francisco e o programa do etanol), ora sob o pretexto de que “as
mudanças têm que vir lentamente”, ora sob o argumento de que, sendo
irreversível o espectro do atual neoliberalismo, não lhes restaria outra opção
senão a de “buscar tirar proveito da situação dominante”. Com raras exceções,
passam de partidos de resistência ao status quo à categoria de meros
“partidos da ordem”.
Por
outro lado, a maior parte de seus militantes que, nas décadas de 1970 e 1980,
viviam engajados nos movimentos e lutas sociais do campo e da cidade, na época
de ascenso do PT e da CUT, hoje vem limitando sua atuação às instâncias
governamentais: gabinetes de parlamentares, secretarias municipais e estaduais,
e agora também aos espaços ministeriais, de primeiro, segundo e terceiro
escalões... São milhares de militantes, mulheres e homens, de reconhecida
qualificação acadêmica e política, que por distintas razões (por sobrevivência,
uns; outros por desejo de ascensão institucional; outros ainda por evidente
abandono da aposta num horizonte utópico, a despeito de suas declarações em
contrário...), se distanciaram das lutas e dos movimentos sociais populares.
Tal
redirecionamento ético-político tem implicado uma multiplicidade de
conseqüências práticas (quase todas enormemente prejudiciais aos interesses das
classes populares), tais como: arrefecimento das lutas, por falta de animadores
engajados; maior exposição e vulnerabilidade a iniciativas de cooptação;
mudança de práticas e discursos numa direção de conciliação com a ordem
dominante, entre outras.
Ao
referir-se ao que assinala como “a principal herança negativa” do chamado ciclo
PT, um importante documento para debate, no interior da Consulta Popular,
sustenta que tal herança consiste em
ter alimentado a confusão
entre a defesa das liberdades democráticas e a burguesia. A bandeira das
liberdades democráticas pertence à esquerda e não à burguesia. (que se apoderou
delas em razão dos problemas enfrentados nas experiências da construção do
socialismo). Todas as liberdades democráticas foram historicamente conquistadas
em lutas populares e constituem um patrimônio das forças revolucionárias. Mas o
Estado burguês democrático existente no Brasil não assegura a democracia. As
experiências administrativas do PT nas prefeituras e governos estuduais, no
parlamento e agora no governo federal, ao invés de sinalizar para a construção
de força social que modifique o caráter do Estado, legitimaram o Estado
burguês, institucionalizando a luta popular e desqualificando os setores e
movimentos que a cooptação. (Cartilha 18, 2006, p. 33).
Conseqüências
também no âmbito intrapartidário: abandono das práticas democráticas de base;
superestimação do peso dos parlamentares nas decisões do partido; abandono das práticas de nucleação; desenfreada concorrência pela
auto-reprodução dos mandatos eleitorais,
ficando o horizonte da Classe Trabalhadora e o próprio partido em segundo (ou
terceiro?) plano...
Assiste-se,
com efeito, a uma profunda crise de identidade das forças sociais que vinham
protagonizando um projeto de transformação sócio-histórica, correspondente ao
período compreendido entre o final dos anos 70 até o final do século passado e
inícios do atual. Eis por que esse fenômeno tem sido analisado como
característico de mais um dos chamados “ciclos” da esquerda brasileira. Textos
recentes produzidos por autores ligados ao Movimento Consulta Popular vêm
apontando tais marcas como características de fim do segundo ciclo.
O primeiro
desses ciclos foi o protagonizado pelas forças marxistas, de corte
anarco-sindical, das primeiras décadas do século XX. Estas forças tiveram uma
influência considerável de organizações operárias européias, por intermédio dos
intensos movimentos migratórios para o Brasil, no final do século XIX e começos
do século XX. A extinção do tráfico de africanos escravizados, inclusive no
Brasil, resultou na substituição de mão de obra escrava pela formada por
migrantes europeus (italianos, alemães e de outros países).Esses grupos de
esquerda constituem uma referência relevante nos principais eventos políticos e
sócio-históricos das primeiras décadas do século XX, na medida em que estiveram
à frente ou testemunharam acontecimentos de inegável relevância social, tais
como greves, fundação e animação de partidos como o PCB, movimentos sociais de
referência nacional, sem falar na força de atuação dessas forças no interior
dos partidos políticos da época. A começar pelas influências recebidas pelo PCB
e sua atuação como cidadão.
Os migrantes
para aqui vindos foram sendo progressivamente impelidos para os grandes centros
urbanos, seja por conta da cultura escravista ainda em voga (apesar de sua
revogação jurídica), seja por força do processo de urbanização e das atividades
industriais em
expansão. Esse contexto propiciou aos novos trabalhadores
urbanos condições mais favoráveis de organização e mobilização, donde as
primeiras greves gerais, a criação do Partido Comunista do Brasil (PCB), a
participação nas rebeliões das primeiras décadas...
Tratava-se de
uma proposta cuja centralidade recaía no instrumento partidário. Era a cultura
política vigente. E não apenas neste primeiro “ciclo”. O segundo iria tomar
como legado a mesma aposta na força do Partido. Na rebelião dos “Tenentes”, na
Coluna Prestes, na mobilização popular em torno da Aliança Libertadora
Nacional, na insurreição de 1935, na retomada das lutas sociais depois da Segunda
Guerra Mundial, na participação nas campanhas de massas pela Constituinte de
1946, e mesmo durante um novo período de clandestinidade, com a cassação do
registro dos mandatos dos deputados e do senador do PCB, na intensa mobilização
das Ligas Camponesas, da UNE, pelas famosas “reformas de base”, em tudo estava
presente a centralidade do e no Partido. Até o Golpe de Estado de 1o
de abril de 1964...
O segundo
ciclo da esquerda partidária terminou como “uma geração de militantes
especializada em técnicas de gerenciamento dos conflitos sociais sem qualquer
perspectiva transformadora que contemple rupturas ou alterações estruturais.”
(Movimento Consulta Popular, Cartilha 18, 2006, p. 55).
A propósito deste ciclo mais recente, um
rápido olhar sobre os textos produzidos pelos movimentos mais destacados daquela época, é bastante,
para se verificar o caráter do seu ímpeto instituinte. Os documentos fundantes
de organizações como o PT e a CUT são emblemáticos. O plano de lutas – rurais e
urbanas – da CUT não deixava margem a dúvidas sobre seu caráter anticapitalista
(anti-latifúndio, anti-imperialista, combativo aos interesses do grande
empresariado e, ao mesmo tempo, solidário às lutas das classes populares de
todo o mundo, numa perspectiva socialista distinta da dos países do bloco
soviético...), ainda que houvesse, dentro desse mesmo campo, quem ainda se
mantivesse prisioneiro desse modelo. É
triste constatar esse redirecionamento de opções: à medida que se ia
conseguindo conquistar alguns ganhos (sindicais, político-institucionais),
ia-se, na mesma proporção, aliviando o tom das denúncias, das demandas
classistas e, sobretudo, a força transformadora de suas práticas
político-educativas.
Com efeito, passa-se a observar que,
principalmente a partir dos anos 90, aquelas forças (políticas, sindicais,
eclesiais e mesmo populares), antes tão bem articuladas contra a Ditadura
Empresarial-Militar, logravam espaços institucionais (assentos parlamentares
nas Câmaras de Vereadores, nas Assembléias Legislativas, na Câmara de Deputados,
no Senado; cargos de assessoria; cargos no Executivo, com as crescentes
conquistas de prefeituras, de governos estaduais, até chegar à presidência da
República), com implicações diretas ou indiretas sobre as práticas de seus
aliados sindicais, eclesiais e populares, foram mudando de perfil.
Vivia-se claramente uma tendência
burocratizante, nas fileiras de segmentos antes comprometidos com os interesses
da classe trabalhadora. Desafiante é examinar as condições sociais em que isto
se dá. Seria tal tendência necessariamente inerente à trajetória de qualquer
Movimento Social Popular? Ou seria, antes, expressão e resultado de condições
históricas específicas? Nossa aposta recai sobre a segunda hipótese, como se
verá mais adiante.
Outro aspecto que marca a crise identitária
dessas forças tem a ver com incontrolável avidez pelo aliancismo, com o
conchavo de cúpulas, cultivada com excessiva gula por parte de forças ditas de
esquerda, com repercussão inclusive em segmentos desses próprios Movimentos
Sociais Populares, que constituem alvo do nosso estudo. Que condições se
mostram mais propícias à produção dessa cultura, convertida, com freqüência, em
estratégia? Até que ponto a essa atitude irenista, acima mencionada, não subjaz
uma estratégia a serviço do poder de alguns dirigentes, em nome de “todos”?
Não seria isso um forte indício da perda de
referência na definição convincente de parceiros, aliados e, sobretudo, de
adversários, que parecem cada vez mais ocultados ou omitidos, ou referidos de
forma nebulosa e confusa? Será, por acaso, a esse propósito, a ampla vigência
de uma atitude de certa “eclesialização”
(no sentido da generalização de discursos e de práticas “inofensivas”,
tão próprias dos setores eclesiásticos conservadores, em relação aos adversários?
Não menos importante, emerge a necessidade de
se avaliar o novo quadro sócio-histórico que, em razão do surgimento e
consolidação de novos sujeitos para além das fronteiras da esquerda partidária,
de modo a re-situar e redefinir o caráter do sujeito político de transformação
social. Vivemos tempos que apontam claramente a obsolescência de manter-se a
esquerda partidária como “o” sujeito da construção de uma sociabilidade
alternativa. A esse propósito, têm sido claros e incisivos os sinais da
emergência, no Brasil, na América Latina e no mundo, de novos sujeitos sociais
que já não aceitam atuar a reboque das determinações de um único sujeito, seja
quem for. Acena-se vivamente para a reivindicação de um protagonismo de forças
plurais, desde que sintonizadas com a mesma causa transformadora e seus
respectivos instrumentos de luta.
Ver, especificamente a esse
respeito, o exemplo dos Zapatistas, a partir mesmo do modo como esse Movimento
costuma subscrever seus escritos, que vêm assinados, não pelo “comandante”, mas
pelo sub-comandante, num reconhecimento explícito da soberania das classes
populares cuja organização transcende (embora continue incluindo) o
protagonismo das forças partidárias.
Isto é mais um sinal de que
está superado o recurso a uma força partidária como “a” condutora do processo
de construção de uma sociabilidade alternativa. Por mais que se reconheça a
relevância de um instrumento político especial, capaz de coordenar, de modo
mais orgânico, o processo de transformação sócio-histórico, já não faz mais
sentido atribuir-se a um único partido – seja qual for – toda a
responsabilidade do protagonismo, nas decisões relevantes de todo o processo.
As experiências recentes e menos recentes se apresentam suficientemente
significativas quanto à necessidade de se ensaiar um instrumento político de
novo tipo.
Nesse processo alternativo, o
ensaio de um instrumento político de novo tipo – ao qual voltaremos, no tópico
seguinte - vem estreitamente vinculado a um outro elemento essencial
constitutivo do mesmo processo. Referimo-nos ao processo formativo, que tem
jogado, não por acaso, relevante papel na consolidação de militantes
conscientes, comprometidos, serenos, aguerridos e perseverantes.[4]
Nesse terreno, a Educação Popular na perspectiva freireana se revela o lugar
por excelência da formação dos Movimentos Sociais Populares comprometidos com
as lutas por uma nova sociedade.
Isso é fato, em relação a um
número proporcionalmente considerável de seus membros, sobretudo da direção e
de coordenadores de setores de coordenação intermediários e, em menor
proporção, também para membros da base. Sucede que, por conta inclusive das
limitações infraestruturais, e à medida que vão crescendo tais Movimentos, e
expandindo-se por todo o País, dificilmente estão à altura de assegurar,
satisfatoriamente, a todo o conjunto de seus membros. Seu compromisso de
universalizar o processo formativo e de fazê-lo com qualidade social resulta
bem aquém do desejável. Ora, tal situação implica conseqüências, ocasiona
lacunas e disparidades, com rebatimento no desempenho e nas relações
político-educativas do cotidiano. Quem não tem condições de avançar no processo
formativo, passa a ter um perfil político-educativo distinto dos companheiros a
quem são asseguradas as condições de formação desejáveis.
Um dos distintivos desses
Movimentos Sociais Populares aqui estudados, em especial do MST, tem sido sua
aposta no exercício da Mística, como parte relevante do processo formativo de
seus membros. O exercício da Mística representa um momento denso de rememoração
histórica do exemplo de sujeitos (coletivos e individuais), cuja trajetória de
luta muito contribuiu para o avanço da causa das classes populares. Constitui,
também, um privilegiado espaço favorável à renovação interior dos compromissos e
da fidelidade com as lutas sociais, com a classe trabalhadora do Brasil, da
América Latina e de todo o mundo. Em tempos de crise, porém, não é surpresa que
tal elemento venha sofrendo arranhões por parte da militância. Para quê isso?
Isso já não teria tido seu tempo? Não terá virado mera repetição, uma simples
rotina? Ainda faz sentido priorizar a Mística, nos Movimentos Sociais
Populares?
Vale, também, questionar
critérios duvidosos utilizados no processo de adesão ao Movimento – Em virtude
de uma necessidade de caráter estatístico, como meio de “atestar” o crescimento
e a força do Movimento, não raro, pode ocorrer um afrouxamento nos critérios
que devem orientar o processo de adesão dos novos membros. É certo que, às
vezes, em razão das próprias condições de marginalização a que vivem submetidas
as camadas populares urbanas, parte-se para uma relativização desses critérios,
favorecendo uma seleção sumária dos novos membros. Dadas as diferenças de
perfil dos novos membros – boa parte dos quais sem qualquer familiaridade com a
questão rural, além dos valores contraditórios incorporados no dia-a-dia das
periferias urbanas, marcadas de profundas ambigüidades -, com o passar do
tempo, vai-se revelando um complicado desafio nas relações com a maioria dos
componentes de perfil distinto, sob vários aspectos.
Como se
percebe, é longa a lista de desafios. Por certo, vai muito além do leque acima
levemente enunciado. Não obstante, é possível, a partir deles, ter-se uma idéia
de que tipo são, para um enfrentamento mais eficaz. A partir daí, vamos buscar
refletir sobre os mesmos, buscando aportar algum tipo de contribuição, em forma
de algumas apostas.
3. Movimentos Sociais Populares em busca da construção de
um dissenso alternativo
Diante
desse quadro, será mesmo possível romper e superar esse ciclo de consenso
ideológico, e, ao mesmo tempo, envidar esforços para tecer fios de um dissenso
alternativo, traduzido em práticas concretas? Em que consistiria essa aventura?
Que condições ela supõe e como assegurá-las? Há sinais efetivos apontando nessa
direção? Eis algumas das inquietações que nos ocuparão, neste tópico.
Podemos
iniciar dizendo em que tal aventura NÃO deveria consistir. Não se trata, por
exemplo, contrapor idéias a meras idéias, isto é, de apenas contraditar a
lógica dominante com meros argumentos discursivos em favor de nossa posição.
Até que isso pode se dar, desde que nossa prioridade seja a de responder por
atitudes.
Também, não se
trata de apostar simplesmente no surgimento de novos integrantes, aos quais se
delegaria a hercúlea tarefa de pretensamente tocar, “de outro modo”, a
organização das instâncias do(s) movimento(s) e forças sociais comprometidas
com o processo de transformação, tendo como base apenas o novo perfil
ético-político dos novos dirigentes, sem alteração substantiva das estruturas
em que vão atuar. Neste caso, corresponderia a algo semelhante a investir-se na
eleição de novos candidatos partidários, com a pretensão de que, por se tratar
de candidatos novos ou mesmo politicamente bem preparados, iriam dar conta da
missão...
A esse
propósito, vale a pena recorrermos a experiências recentes e menos recentes:
quantas vezes - e com que amplitude! - foram “renovadas” Câmaras Municipais,
Assembléias Legislativas, Câmara Federal, Senado (em até mais de 50%)? Não
tardamos a perceber, entre frustrados e indignados, que mudar o perfil dos
eleitos, mantendo, porém, a estrutura, de pouco ou nada vale, a não ser para
legitimar o sistema perante as mesmas forças dominantes.
Essa
aventura não há de consistir, tampouco, em seguir apostando, sem mais, por
exemplo, no processo eleitoral em
vigor. Em outro recente artigo (Calado, in Scocuglia e
Jezine, 2006: 289-314), dedico algumas páginas especificamente a tentar
compreender o sentido e a relação custo-benefício das campanhas eleitorais, fazendo perguntas do
tipo:
Quanto tempo passam os
brasileiros ocupados com os processos eleitorais, cujo ritual, embora se
realize oficialmente em cerca de três meses, implica, no mínimo, um ano de
movimentações? Que estimativa é possível fazer-se quanto ao volume de recursos
financeiros e outros empregados, antes, durante e depois de cada campanha
eleitoral? De onde vêm esses recursos? No exame acurado da relação
custo-benefício, do ponto de vista das classes populares, qual o resultado?
Quem ganha com as eleições? No caso de quem admite vantagens político-sociais
no processo eleitoral, questionamos também sobre os gastos eleitorais, no
âmbito nacional, na esfera estadual e no plano municipal: caso fosse aplicado
todo esse volume de recursos (somando-se os contabilizados e os não
contabilizados) em políticas sociais, o que daria para construir? (p.
294).
Esse
processo se acha visceralmente viciado, do ponto de vista das classes
populares. Só comporta meros “reparos”. Equivaleria a pôr remendo novo em pano
velho: resulta inútil. Só para citar um único exemplo, o da chamada “Lei contra
a corrupção”. Não faz muito tempo, foi organizada, como se sabe, uma ampla
campanha anti-corrupção eleitoral, encabeçada pela Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil e organismos a ela ligados, visando a mudar a legislação, de
modo a fortalecer os mecanismos de fiscalização, denúncia e punição dos
envolvidos em falcatruas eleitoreiras. Passados alguns anos de sua vigência,
qual mesmo o resultado efetivo dessa Lei?
O
que está em questão é a natureza própria do sistema com seu processo dito
democrático, tal como exercitado nas Democracias ocidentais, comprometidas,
inclusive, em seu respectivo instrumento
político, monopolizado pelos partidos políticos convencionais. A despeito do
intenso bombardeio permanente dos aparelhos ideológicos (inclusive a ação
eficaz da mídia), a justificarem as graves falcatruas do sistema, como se
fossem devidas a meros excessos individuais (de parlamentares, por exemplo), ou
a fatores circunstanciais, têm-se ouvido, aqui, ali, vozes socialmente
relevantes a acenarem para o esgotamento, inclusive, do atual “modo de produção
e de consumo”, como ainda recentemente ponderou Leonardo Boff, em entrevista
concedida ao IHU, da UNISINOS: “Hoje não apenas os pobre gritam, mas também as
águas, as florestas, os animais e a prória Terra, sob a agressão sistemática do
modo de produção e consumo globalizado.” (cf. entrevista integral em www.adital.com.br , acesso em 15/08/2007).
Documentos ainda recentes produzidos por órgãos da, ou ligados à CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a exemplo do resultante do
“Seminário do Mutirão pela Superação da Miséria e da Fome”, que data de 2002, alertam
para a necessidade e urgência de se defender as “fontes de vida” (terras,
águas, florestas, ar, etc.), o que implica defender seu caráter público,
frontalmente oposto aos critérios de mercado baseados na privatização inclusive
de tais bens.
Para tanto,
também não se trata de mudar os membros dirigentes componentes dos partidos
ditos de esquerda, sob a alegação de que se trata de “crise de direção”. É
sabido que nossa história política recente (e menos recente), notadamente no
que toca aos partidos políticos, é pontilhada de casos de dissidências e de
rupturas, seguidos de recomeços proclamados instituintes que, tempos depois,
parecem reeditar a trajetória de fracassos. Veja-se o exemplo dos partidos de
esquerda brasileiros de maior tradição. O PCB, inicialmente, e já a partir dos
anos 60, o PCdoB apresentam uma lista apreciável de dissidências, de
dissidências da dissidência, de rupturas, sem que se toque o âmago do problema:
sua estrutura interna, sua relação com as demais forças protagonistas.
Não raro,
certo tempo depois, no seio do próprio grupo dissidente, começam a aparecer
vozes dissonantes que, ao se avolumarem, passam a instalar novos elementos de
ruptura. Essa também é uma dinâmica movida pela dialética entre o instituído e
o instituinte. Nossa aposta, porém, é de que tal tendência não é uma
fatalidade. Tem, antes, a ver com sua natureza histórica. Se as coisas têm sido
conduzidas assim, isto não quer dizer que tenham que se dar assim, eternamente.
Isso vai depender da capacidade dos protagonistas, de, reconhecendo os passos
viciados do processo, ousarem passos alternativos, compatíveis com o horizonte
alvejado. Daí nossa aposta de tentar outros caminhos, até porque, as coisas não
mudam espontaneisticamente, como lembrava Marx (em sua terceira tese a
Feuerbach): as circunstâncias precisam dos humanos para serem transformadas...
Se
bem repararmos no caráter da trajetória das tentativas pretensamente
instituintes, é possível observar-se que essas pretensas rupturas têm mais a
ver com re-opções de caráter tático em relação a procedimentos avaliados como
dissonantes ou contraditórios. Um atestado disso pode ser, por exemplo, a
crença inalterada no poder de transformação centrado, única ou quase
exclusivamente, no núcleo dirigente das forças partidárias. A anunciada ruptura
se daria fundamentalmente por discordâncias em relação a atitudes arbitrárias
de indivíduos ou de um pequeno grupo. Corrigidas aquelas, o instrumento
político estaria de novo apto a cumprir seu papel...
Pretender-se
mudar esse rumo, sem tocar substantivamente na estrutura, equivaleria a
reeditar equívocos, por exemplo, praticados em alguns embates feministas com
ênfase exacerbada no mero ascenso formal de mulheres a cargos públicos de
chefia, abrindo-se mão de uma dinâmica alternativa de organização e de
exercício de poder, no âmbito inclusive das relações de gênero. Ou seja: não
basta lutar-se para que mulheres ocupem cargos que hoje são monopolizados por
homens, caso venha a ser mantida a dinâmica piramidal de exercício do poder. Se
assim continuar sendo, apenas faz-se uma mudança de homens por mulheres, como
acontece (ainda que timidamente) no Parlamento, mantendo-se, porém, intacta a
estrutura do exercício do poder. Importa, sim, mudar a natureza das relações!
Mais: mesmo
quando se dizia que as decisões anunciadas procediam “do Partido”, este era
reduzido a uma pequena instância, composta por uma meia dúzia ou até menos.
Tudo em nome do “Centralismo democrático”! Centralismo, sim, não há dúvida.
Agora, quanto a ser “democrático”, mesmo do ponto de vista do conjunto das
instâncias partidárias, isto era outra coisa! Estão aí “n” relatos de
experientes dirigentes desses Partidos, ao alcance de quem quiser conferir: de
Gregório Bezerra a Jacob Gorender – só para citar dois nomes.
Por uma razão
ou por outra, o fato é que se tratava de decisões graves, tomadas por uma
pequena minoria de dirigentes, em nome do Partido e das forças aliadas e até em
nome da Classe Trabalhadora... Essa via parece esgotada, no presente quadro
histórico, o que não quer dizer que vá desaparecer, como por um golpe de
mágica. Mas, quem pode negar que “nessa estrada, há mais caminhantes”? Ou seja,
não faz mais sentido agir assim, sem contar com o efetivo protagonismo nas
decisões de bem mais gente, além do conjunto do Partido X ou Y. Há outras
forças (principalmente os Movimentos Sociais Populares) que exigem participar,
em pé de igualdade, com forças partidárias, das decisões maiores que lhes digam
respeito, direta ou indiretamente. Para bem além dos partidos convencionais –
inclusive os partidos de esquerda -, é inevitável reconhecer o protagonismo de
forças não-partidárias, desde que efetivamente comprometidas com o rumo, os
caminhos e as posturas características de um Projeto de construção de uma
sociabilidade alternativa.
Até aqui,
lidamos mais com aquilo em que não deve consistir essa aventura institinte. É
chegada a hora de passarmos a discutir a consistência da aventura proposta.
Assim,
começamos por afirmar que a disposição de reconhecer sinais de esgotamento, no
atual contexto sócio-histórico, do potencial transformador (sob o ponto de
vista das forças de esquerda) dos partidos convencionais não implica a negação
do reconhecimento do papel específico de um partido político como um dos
protagonistas-chave do processo de transformação das relações
macro-estruturais.
Pois
bem, no caso específico do contexto atual, é ou não razoável falar-se no
surgimento de uma esquerda de novo tipo, que não esteja condenada a reproduzir
a trajetória das experiências precedentes? A seguir, reconhecendo embora o
caráter ainda prematuro da hipótese, arriscaria alguma palavra apontando para a
possibilidade de uma tal empreitada.
Nossa
atenção agora se volta para uma organização societal que, em vez de ter na
figura do Estado e seus respectivos aparelhos sua base estruturante da vida
social, econômica, política e cultural, como tem sido uma marca inevitável a
toda sociedade de classes, a exemplo das sociedades ocidentais com suas
democracias representativas, venha a centrar sua força organizativa num novo
Sujeito Político, formado pelos conselhos populares (ou que outros nomes lhes
sejam atribuídos: tribos, comunas, “soviets”, células, núcleos, pequenas
comunidades de base, brigadas, etc.).
Até em sua
etimologia (do vocábulo latino “Consilium”; no plural: “Consilia”, desde o
verbo “Cónsulo”, de que também se origina “Consulta”), os conselhos têm a ver
com consulta para fins de decisão. Mas, não basta por certo uma referência
etimológica. Nossa justificativa apóia-se em algo mais concreto e mais de
fundo. Recorre, por exemplo, à memória histórica de povos de diferentes lugares
e épocas. E o fazemos sem qualquer propósito de reeditar ou de copiar tais
experiências. Tratamos, antes, de recolher o espírito de seu fecundo legado.
Não nos move o desejo de reverter ao seu tempo. Vivemos em lugares e tempos
distintos, com desafios novos. Não por acaso, temos aludido, com freqüência, ao
lema de um candidato petista, na campanha eleitoral de 1986: “Nem o passado
como era, nem o presente como está.” Rememorar o passado da Humanidade
significa para nós examinar experiências exitosas e sombrias, em busca de
extrair lições de ambas as situações, buscando colher delas o que de melhor
puderem oferecer-nos, guardadas as singularidades e circunstâncias histórico-culturais.
É assim que
nos aventuramos a examinar o passado, pois, como lembra Eduardo Galeano, “O
passado tem muito a dizer ao presente”. No caso de experiências de organização
societal baseadas em conselhos ou instâncias similares, temos que remontar a
priscos tempos. Temos conhecimento de algo semelhante, na história do povo
hebreu anterior à monarquia, aproximadamente entre os séculos XIII e IX a.C.
Referimo-nos à experiência das tribos de Israel. À parte suas especificidades
de contexto histórico remoto, as antigas tribos de Israel tinham traços de
conselhos. Sua experiência de organização societal não passava pelos aparelhos
de Estado, de feição piramidal, como posteriormente passaram a viver os
hebreus, a partir da instalação da monarquia.
Mais tarde, as
comunidades cristãs primitivas, em que pese imersas num contexto estatal,
ensaiaram passos alternativos que encantaram até pensadores marxistas ateus, a
exemplo de Engels. Os cristãos formavam um agrupamento alternativo de
comunistas, dentro daquele contexto histórico específico. Experiência sufocada
pelo ascenso da alta hierarquia usurpadora dos direitos dos pobres, a partir do
período do Imperador Constantino, com a celebração do pacto entre trono e
altar.
Na própria
Idade Média, quando foi tão intenso e terrível o controle exercido pelo poder
eclesiástico, despontaram relevantes movimentos de resistência e com propósito
utópico, alternativo àquela ordem dominante. Dentre eles, podemos citar os
Albigenses. (cf. Calado, 1999).
Em nossa
própria história, registramos a densidade do imaginário popular, em relação a
experiências de lutas sociais e movimentos indígenas, negros e populares como o
dos Guaranis, o de Palmares, o de Canudos, entre outros. O mesmo se passa em
relação a outras experiências similares em outros povos de distintos
continentes. Não é nosso propósito aprofundar este aspecto, aqui e agora.
De
todos os modos, chamamos a atenção para experiências de um novo Sujeito
Político organizado em conselhos bem mais recentes, atinentes ao período da
contemporaneidade, mais precisamente a partir da experiência da Comuna de
Paris. Somada a outras concebidas pela gesta da Pedagogia Socialista[5], a
que se somam as contribuições de figuras como Rosa Luxemburgo e Gramsci, entre
outros, vamos encontrar densos elementos de inspiração, sem com isso insinuar
qualquer pretensão a repeti-las. O que desejamos é recuperar sua memória, e
delas recolher elementos de inspiração para os desafios presentes.
Entendemos que
cabe a esses conselhos, ciosos de sua autonomia relativa e de sua
corresponsabilidade cogestionária – desde que reconhecendo-se como
protagonistas, co-partícipes de uma organização mais ampla (a organização
societal da Classe do produtores e produtoras, de
“todos-os-que-vivem-do-trabalho”) -, viabilizar o efetivo exercício de
protagonismo nas decisões por parte do conjunto de seus membros, em todas as
esferas de organização e em todos os passos do processo, numa perspectiva de
formação omnilateral dos Humanos.
Na formação
desses conselhos, há necessidade de se atentar, entre outros, para critérios
tais como:
- flexibilização do número,
conforme as circunstâncias concretas e a situação efetiva da caminhada dos
protagonistas;
- assegurar elegibilidade e
revocabilidade dos eleitos, tomando em consideração a vontade efetiva das
instâncias de base;
- respeitar as diferenças de
posições intraclassistas, preservada a unidade em torno dos interesses básicos
da Classe Trabalhadora;
- buscar exercitar, de forma
progressiva, o equilíbrio entre os distintos pólos das relações sociais de
gênero;
- tomar em consideração a
diversidade etária dos componentes do Instrumento Político;
- levar em conta as diferenças de
natureza étnica;
- acolher membros com diferentes
graus de experiência no Movimento e nas lutas sociais;
- Assegurar a participação no
referido instrumento político de membros com diferentes graus de escolaridade;
- tomar em conta as distintas
opções de credo religioso ou filosófico, desde que observados os interesses do
conjunto da Classe Trabalhadora;
- contar com gente de diferentes
procedências geográficas;
Também para
nós, continua de pé o reconhecimento da vigência do relevante papel do
instrumento político (aqui tendo um sentido correspondente ao papel de um
partido político, numa concepção gramsciana).
Estamos
aqui entendendo por “Instrumento Político” desse Projeto de construção de uma
sociabilidade alternativa o coletivo que atua como principal instância de
elaboração do plano de ação estratégica do Sujeito Coletivo, como meio
organicamente articulado às diferentes instâncias de protagonismo, no processo
de construção do Projeto Popular de transformação social. Entendemos que ao
Instrumento Político devam ser confiadas tarefas tais como:
- identificar e analisar, de
forma atualizada, os principais desafios colocados pela conjuntura
sócio-histórica e política;
- examinar a correlação de forças
predominante em face aos projetos fundamentais em disputa;
Na
explicitação do sentido aqui proposto de Instrumento Político, já vários
figuram elementos constitutivos do que se entende por Instrumento Político.
Mesmo assim, vale a pena sublinhar suas características principais:
- instância executiva referencial
do Sujeito Político;
- elaboração do Plano de Lutas,
conforme as deliberações das instâncias competentes do Sujeito Político, a
começar pelas instâncias de base;
- articulação das instâncias de
base;
- observância dos critérios de
representatividade, elegibilidade, revocabilidade pelas instâncias de base,
assegurada a efetividade do princípio de alternância de cargos e funções dos
membros de todas as instâncias do Sujeito Político.
Num
tal desenho de alternatividade societal, não tem lugar para a reedição de
práticas, valores e situações atinentes ao modelo dominante, nas diferentes
esferas da realidade. Não faz sentido, por exemplo, pensar em “ajustar” o velho
esquema ou mesmo elementos estruturantes do velho esquema ao projeto societal
que se quer inaugurar. Só por fragilidade e limites provisoriamente invencíveis
de seus protagonistas, cogita-se em reeditar o velho esquema. Por exemplo, não
faria sentido em reeditar a estrutura do salariado. Viver de salário implica
necessariamente compactuar com a velha ordem, hegemonizada pelas relações
patrão-empregado. Trabalho toma outro sentido para o conjunto dos membros da
nova sociedade. Diferentemente do contexto capitalista ou de qualquer outra
sociedade de classes, fica para trás o sentimento de Trabalho como penúria,
para caminhar em direção à autoprodução dos Humanos, em todas as suas dimensões
(cósmica, ecológica, econômica, política, cultural, espiritual, lúdica,
afetiva, existencial...).
Aqui, o Trabalho deixa de
implicar a velha dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual,
intrínseca à lógica capitalista e de qualquer sociedade de classes.
Seres
integrais fazem de um tudo: preparam comidas, alimentam-se, brincam, estudam,
trabalham (com as mãos e com a cabeça), planejam, executam, avaliam, namoram,
produzem e curtem Artes e Cultura, lêem, escrevem, debatem, decidem, plantam,
limpam, cozinham, passam pano, passam a ferro, lavam, cuidam das crianças, das
plantas, dos animais, curtem a Mãe-Natureza, reverenciam o Sagrado...
Tudo
isso, claro, é um passo de uma longa e incessante caminhada, cujo caminho, como
lembra Machado, se vai fazendo ao caminhar. Trata-se de uma aventura utópica,
na direção já apontada por outros, entre os quais Moisés Gonçalves, ao
explicitar seu conceito de Utopia:
Utopia em nossa abordagem
tem, portanto, a conotação de busca do inexistente, construção possível de uma
outra forma de ser e estar na sociedade, “horizonte de sentido”, a partir da
ação coletiva. Sinaliza “outros mundos”, perseguidos na práxis. (Gonçalves, 2005, p. 36)
Mesmo assim,
tão acostumados nos quedamos à rotina que o sistema nos impõe, que só falar
essas coisas suscita até deboche: “Isso é viajar demais!”. Felizmente, sonhar
faz parte da condição humana! Como vamos ousar enfrentar e vencer as agruras do
cotidiano de barbárie que esse sistema não cessa de espalhar, se não ousamos o
“inédito viável”? Mais: pensar Utopia não significa entregar-nos, passivos, a
uma longa e tediosa e inútil espera. Trata-se de, no que está ao nosso alcance,
antecipar essa Utopia, tratando de vivê-la já, da forma que podemos, ainda que
seja em termos moleculares, mantendo a tensão Blochiana (Ernst Bloch) entre o
“Já” e o “Ainda não”.
Esse
utópico esboço instituinte requer, por certo, um perfil de militantes que
corresponda aos desafios e exigências sócio-históricas, de modo a romper com as
práticas e concepções ainda largamente dominantes. Trata-se, por exemplo, de
militantes que
- primem, no plano subjetivo,
pelo seu desenvolvimento integral, buscando aprimorar, de forma dosada e
incessante, todas as suas potencialidades de ser cósmico e de ser humano;
- sejam pessoas profundamente
amorosas, apaixonadas pelo Povo, não importando que país ou região habite, e
pela nossa Casa Comum, a Mãe-Natureza;
- sejam capazes de recuperar a
primazia da perspectiva classista sobre quaisquer interesses de segmentos
particulares, do âmbito local ao internacional, ou melhor dito, capazes de
experienciar nos embates locais sua dimensão internacional, ao tempo em que, ao
participarem de lutas internacionais, são capazes de perceber as implicações
locais;
- se refontizem incessantemente
da força revolucionária da memória histórica, recuperando lutas, façanhas e
conquistas do passado e respectivos protagonistas;
- não abram mão do persistente
exercício de crítica e auto-crítica;
- sua permanente disposição à
autocrítica, alimentada pelo contínuo exercício da mística revolucionária, os
ajuda sobremaneira a tornar viva e eficaz, enquanto intervenção presentificada,
a memória histórica, de modo a não engessarem num passado longínquo e estéril
suas referências de luta e de militância;
- ao apreciarem com carinho a
memória e o testemunho exemplar de revolucionários e revolucionárias de ontem e
de hoje, cuidam de evitar transformá-los em “gurus”, preferindo apostar mais na
causa, no projeto, do que em seus protagonistas, e se a estes também prestam
reverência, o fazem na medida em que encarnam o projeto;
- constante acompanhamento
crítico da realidade social, mediante o recurso a fontes fidedignas, em função
do que tratam de aprimorar suas estratégias de intervenção;
- efetiva vigilância no sentido
de assegurar condições irrenunciáveis do protagonismo dos distintos segmentos
da sociedade civil, em sua luta de libertação;
- no relacionamento com as
pessoas e grupos de base, saibam pôr em prática uma pedagogia da escuta,
aprendendo com os outros e buscando também exercer sua dimensão docente;
- tenham consciência de que a
qualidade de sua aposta na Utopia é constantemente testada na oficina de
tecelagem do Cotidiano, a partir dos gestos minúsculos e aparentemente
invisíveis;
- sejam pessoas fortemente
desinstaladas e desinstaladoras, ao mesmo tempo inquietas na tomada de
iniciativas, e profundamente serenas, nos momentos de crise e de impasse;
- estejam conscientes de que
navegam sobre águas revoltas, e quase sempre navegam à contra-corrente, o que
implica uma postura ao mesmo tempo firme e serena de lutadores sociais;
- mostrem-se efetivamente
empenhados no seu processo de formação continuada, nas distintas dimensões do
cotidiano e da vida pessoal e grupal;
- exercitem, a cada dia, a
mística revolucionária, em virtude da qual asseguram a renovação de seu
compromisso ético-político, no horizonte de uma Utopia libertadora.
Isto
não se consegue da noite para o dia. É obra de grande fôlego, individual e
coletiva. Tem sua historicidade e, portanto, curso e ritmos diferenciados.
Importa, a essa altura, perguntarmos sobre que condições podem favorecer esse
Projeto? Examinemos algumas possíveis pistas, nessa direção, notadamente no
campo da Educação Popular.
Temos consciência de que
daquele ímpeto instituinte que inspirou as lutas sociais e os Movimentos
Sociais Populares, além das forças político-partidárias e sindicais do final
dos anos 70 e começos dos anos 80, restou muito pouco. E o que restou, com
raras exceções, parece facilmente assimilável pela ordem dominante, e até mesmo
funcional à mesma. Os embates eleitorais podem ser citados como um exemplo
disso. O que, antes, era assumido como mera tática, à qual se recorria como
espaço de denúncia e de propagação das idéias de mudança, se erige, cada vez
mais, em ferramenta principal de ação e de intervenção social. O que era mera
tática ganha foros de estratégia, ameaçando mesmo confundir-se com a finalidade
perseguida por tais forças. De fato, em não poucos casos, eleição se converte
num fim em si mesma, sinônimo até mesmo daquilo que outrora se tinha como
“Revolução”...
O próprio processo eleitoral,
que antes era assumido como tática, também vem sendo desfigurado. Se, antes,
atentava-se para requisitos preliminares tais como análise da conjuntura,
formas de luta a serem assumidas (dentre elas, o processo eleitoral), definição
da estratégia e correspondente tática a ser posta em prática na campanha
eleitoral, definição dos parceiros, aliados e adversários, programa de governo,
perfil de candidatos para o quadro em questão, para só então se definir quais
os nomes, hoje, virou moda “queimar-se” todas etapas, para ir-se direto aos
nomes... E com uma agravante: já não se fala mais em candidatura do Partido,
mas em candidatos que passam a postular candidatura como projeto pessoal... Daí
para o nivelamento aos “partidos da ordem” foi um pulo. Eis por que, a rigor,
não deveria surpreender a um(a) analista atento(a) o triste desfecho. Os
escândalos ético-políticos são um desdobramento quase inevitável desse
quadro...
Nesse sentido, um enfrentamento
exitoso desses desafios nos remete ao esforço de mutirão, no sentido de
criarmos condições sociais favoráveis na mesma direção. Indiquemos algumas
pistas, nesse sentido.
- Buscar conhecer bem o nosso chão. De fato, um
primeiro passo, nessa direção, pode ser ousarmos uma melhor compreensão do
caráter do processo de globalização em curso. Sem um olhar crítico sobre o atual quadro
sócio-histórico, em escala mundial, parece inútil insistir nas ferramentas
convencionais a que se recorre para o enfrentamento com maiores chances de
sucesso teórico-prático dos desafios do atual momento. Compreender melhor o
caráter do processo produtivo, os projetos de sociedade em disputa, seus
respectivos protagonistas, suas estratégias e táticas, suas potencialidades e
limites, corresponde a um pré-requisito para uma bem sucedida análise de
conjuntura, na perspectiva da classe trabalhadora.
Se,
antes, já não bastava atribuir-se mecanicamente tudo ao “velho imperialismo”,
sem análise objetiva da evolução do Capitalismo, muito menos hoje se trata de
reeditar tal equívoco. O cenário é mais complexo, é mais confuso, tanto da
parte dos parceiros e aliados, quanto da parte das forças adversárias ou
inimigas. Por exemplo, reduzir os adversários apenas ao “Imperialismo dos Estados
Unidos” como o cerne do problema já não parece uma tese convincente, na medida
em que, no atual contexto, mais do antes, os conglomerados transnacionais têm
assumido uma influência cada vez mais decisiva, inclusive sobre as grandes
potências estatais. A idéia de Marx de Estado como “comitê” do Capital parece
bem atual, sobretudo no que concerne aos Estados periféricos do Capitalismo.
As potências centrais –
Estados Unidos à frente – seguem sendo de grande relevância na tomada das
grandes decisões, mas sempre subordinadas e articuladas e a serviço dos
interesses dos grandes conglomerados transnacionais, por meio também dos
organismos multilaterais, não se devendo superestimar o papel de nenhuma
potência estatal, isoladamente, em detrimento do protagonismo das grandes
corporações e dos organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC, a própria
ONU)... Ficou notória, por ocasião do segundo massacre perpetrado pelas grandes
potências contra o Iraque, a orgânica colaboração de pelo menos parte desses
grandes conglomerados transnacionais, alguns dos quais concentram riquezas
equivalentes às de várias nações somadas.
No que
concerne, por exemplo, aos organismos multilaterais, tal é seu poder de fogo,
que, em vários países periféricos, a formulação de políticas sociais, antes da
alçada dos Estados nacionais, passou a ser prerrogativa do Banco Mundial,
conforme assinalamos anteriormente. Fatos como este há de chamar a atenção dos
Movimentos Sociais Populares com projeto alternativo de sociedade, no sentido
de que ampliem o seu raio de ação, de modo a orientar suas lutas para bem além
das fronteiras nacionais. De fato, as lutas puramente locais perdem força
transformadora, contribuindo inclusive para o agravamento do viés reformista,
hoje em moda.
- Revitalizar o ímpeto instituinte - Um outro
passo capaz de potencializar as ações dos Movimentos Sociais Populares
comprometidos com a construção de uma sociabilidade alternativa é a retomada do
combate à tendência burocratizante de suas organizações, sobretudo no âmbito
das direções e coordenações intermediárias. Vale lembrar, a propósito, que as
principais conquistas obtidas se deveram, fundamentalmente, a essa
característica instituinte, ao mesmo tempo em que, ao contrário, à medida que
esses Movimentos Sociais foram cedendo ao fascínio do atalho dos espaços
institucionalizados (perda ou redução da autonomia, arrefecimento da
independência de classe, encantamento pelos espaços governamentais, implicando
alianças duvidosas em troca de vantagens sedutoras, tais como facilidades de
créditos, vistas grossas a deslizes ético-políticos dos parceiros e aliados, ou
de membros das próprias fileiras), maior investimento nas campanhas eleitorais,
perda do vigor crítico e auto-crítico, entre outros).
Mas, na
prática, em que consistiria mesmo essa revitalização do ímpeto instituinte? Sem
qualquer pretensão a receita, é possível elencar alguns procedimentos apontando
nessa direção, tais como:
* recuperar e fortalecer o
horizonte classista, por meio de atitudes tais como: ampliação da agenda para
além de demandas apenas de um Movimento, em favor de uma prática que, sem
abandonar suas reivindicações específicas, tenha seu principal foco nas lutas
do conjunto da classe trabalhadora do campo e da cidade;
* investir
maciçamente, e de forma crescente e qualitativa, no processo de formação do
conjunto de seus membros, não apenas de uma parte. Formação para além da
educação escolar, de modo a implicar uma formação integral, omnilateral, que
seja capaz de desenvolver todas as potencialidades dos seus membros, numa perspectiva
humanizadora;
* revisitar os bons clássicos
da Pedagogia Socialista (os “utopistas”, os marxistas, Pistrak, Makarenko,
Gramsci...), bem como os contemporâneos da Educação Popular (Paulo Freire,
Carlos Rodrigues Brandão, Miguel Arroyo, Ivandro da Costa Sales, João Francisco
de Souza, Reinaldo Fleuri, Maria Valéria Rezende, Roseli Caldart, entre tantas
e tantos outros, só para mencionar alguns do Brasil), não com o objetivo de
reproduzi-los, mas de neles colher inspiração, na perspectiva de reinventar
práticas e caminhos alternativos aos desafios de hoje, à grade de valores hoje
dominante;
* exercitar a memória
histórica, por meio da Mística, de modo a reavivar a memória de lutas de movimentos passados e
contemporâneos, bem como de figuras do Povo que atestaram e atestam fidelidade
à causa dos-que-vivem-do-trabalho;
* superar a armadilha dos
instrumentos da Democracia burguesa, a exemplo do envolvimento desproporcional
em campanhas eleitorais, cujos resultados fundamentais amargamos, desde nossos
bisavós, e podemos conhecer por antecipação...
* pôr em prática, como ponto
de honra, o mecanismo da alternância ou rodízio de cargos e funções, permitindo
a quem é de base ter acesso a funções e cargos de coordenação, e a quem já cumpriu
funções administrativas ou de coordenação voltar a atuar na e como base;
* articulado ao mecanismo da
alternância de cargos e funções, cumpre sublinhar o processo de radicalização
democrática, ao interno do Movimento, de modo a implicar, por exemplo, a
descentralização das decisões, por meio da atuação orgânica e decisiva dos
organismos de base, qualquer que seja o nome que se lhes dê (conselhos,
células, brigadas...).;
* promover o exercício das
artes, em suas mais distintas expressões, favorecendo a descoberta e o
desenvolvimento dos talentos a serviço do coletivo;
* intimamente ligado ao
exercício das artes, tão ao gosto da Educação Popular, importa, de um lado,
fazer um bom uso de múltiplas linguagens (música, poesia, teatro, desenho,
fotos, vídeo...), superando a tendência tão generalizada do monopólio da
oralidade ou da escrita, perpetuando uma das menos felizes heranças ocidentais;
e, por outro lado, fazer uso de uma linguagem compreensível pelos educandos
interlocutores (José Comblin refere-se, com freqüência, a esse cacoete
academicista tão excludente);
* aprimorar das relações de
espacialidade, tanto as que se referem ao cuidado do Planeta, quanto às que
dizem respeito às características culturais, ligadas às procedências regionais
(quem é da capital em relação a quem é do interior; quem é da cidade em relação
a quem da roça; quem mora no centro da cidade em relação a quem mora na
periferia; quem é do Norte/Nordeste em relação a quem é da região Centro-Sul;
quem é do Brasil em relação a quem é da Bolívia; e assim por diante. Nesse
terreno, ainda há muito chão a andar, tendo em vista os preconceitos praticados
e nem sequer percebidos...
*
exercitando o respeito às opções filosóficas e religiosas dos seus membros.
Retomando a alusão à
relevância do processo de formação, convém ainda justificar o
caráter dessa formação, recorrendo, por exemplo, aos
clássicos da Pedagogia Socialista, completados por bons pensadores e pensadores
da atualidade.
Limitando-nos à época
contemporânea, destacam-se valiosas e fecundas experiências, a exemplo da
proposta pedagógica da Comuna de Paris, inspiradas na Pedagogia Socialista
elaborada por pensadores como Owen, Fourier, além de Marx e outros. Robert Owen
(1771-1858), por exemplo, mostrou-se um dos pioneiros na formulação da
Pedagogia pelo Trabalho. Na avaliação de um especialista nesse estudo,
Sua pesquisa pedagógica visa,
em primeiro lugar, a formação de uma nova sociedade... e, portanto, o
desaparecimento da sociedade atual (a do começo do século XIX), fundada na desigualdade
dos homens. A nova sociedade rejeita e suprime a propriedade privada, a
concorrência, a divisão social do trabalho que produzem “a pobreza, a
ignorância, as conspirações, as oposições, a exploração, o crime, a miséria, as
fraquezas do corpo e do espírito.” (Gérard Chauveau, 1998).[6]
De modo
semelhante a tal formulação apresenta-se a contribuição de Charles Fourier
(1772-1837), que se batia por uma educação unitária, polivalente, apta a
desenvolver, de modo harmonioso, todas as capacidades individuais, no contexto
do exercício do trabalho “liberado” e voltado para as necessidades da nova
sociedade ou da sociedade “futura”. Eis por que
A concepção de Fourier repousa
num conjunto de preocupações psicológicas, morais, econômicas. A educação deve
desenvolver, desde tenra idade, os pendores e as inclinações naturais da
criança, assegurar livre curso às suas capacidades psíquicas e intelectuais,
estimular o gosto pelo trabalho produtivo. (...) [Suas teses] denunciam, pois,
o ensino oficial europeu do século XIX por duas razões principais: os filhos
dos operários contentam-se com conhecimentos rudimentares da escola,
desgastando-se pela exploração do trabalho; os filhos dos burgueses são
submetidos a um ensino escolástoco e educados no desprezo ao trabalho
produtivo. (CHAUVEAU, 1998).[7]
Como se percebe, aí se acha
explicitada outra dimensão fundamental dessa Pedagogia, que é a
indissociabilidade entre trabalho manual e trabalho intelectual, em relação à
qual também Marx se mostrará enfático, ao defender uma educação que assegure às
crianças, aos adolescente e aos jovens, conforme sua faixa etária, aprendizagem
intelectual, educação física e participação no trabalho produtivo.
Muito antes de, em O Capital , em que
sublinha a distinção básica do trabalho humano (o exemplo mencionado foi o do
arquiteto), em relação às atividades de outros animais (a aranha, a abelha),
Marx já chamava a atenção para a dimensão social do trabalho, em seus
Manuscritos Econômico-Filosóficos , ao afirmar, por exemplo,
que:
Mas, mesmo
quando eu atuo cientificamente, etc., uma atividade que raramente posso
levar a cabo em comunidade imediata com outros, também sou social, porque atuo
enquanto homem. Não só o material de minha atividade – como a própria língua,
na qual o pensamento é ativo – me é dado como produto social, como também meu
próprio modo de existência é atividade social, porque o que eu faço de mim, o
faço para a sociedade e com a consciência de mim, enquanto um ser social.
(MARX, [1844] 1974, p. 16)
Pistrak e Makarenko são, a
justo título, referências de destaque, no campo da Pedagogia Socialista.
Contemporâneos, nascidos, ambos, na cultura soviética, no final do século XIX,
apresentam-se como Pedagogos de reconhecida contribuição. Seja no campo da
Educação Formal (Pistrak), seja no terreno da Educação não-formal (Makarenko),
ambos sublinhavam a importância do Trabalho no processo formativo. O Trabalho,
numa concepção marxiana, voltado para o desenvolvimento de todas as
potencialidades humanas, a serviço da construção de uma nova sociedade,
protagonizada por um novo homem e uma nova mulher.[8]
Na primeira parte do século
XX, tem sido uma outra referência de peso a contribuição de Antonio Gramsci,
cuja obra, sobretudo após os anos 60, vem tendo uma repercussão impactante, no
campo da pesquisa em
Educação. Basta revisitar a vasta literatura produzida e
publicada, por exemplo, pela revista Educação e Sociedade, com
inspiração nele.
As teses de Gramsci, entre
outros, revigoram, de modo fecundo, o campo da Educação Popular, juntamente com
autores como Paulo Freire e outros. Nesse sentido, a produção do MST tem em
Freire uma forte inspiração.
Em orgânica sintonia com a
questão educativa, está o desafio da comunicação para os Movimentos Sociais
Populares. Como romper o cerco do pensamento único, poderosamente veiculado
pela mídia convencional? Como assegurar fontes alternativas de comunicação a
serviço das classes populares, dos Movimentos Sociais? É certo que alguns
destes já vêm logrando relativo sucesso em seus bons ensaios de comunicação de
massa: jornais, revistas, boletins eletrônicos, páginas na Internet, etc. Mas,
qual será mesmo o alcance desses veículos? Como ampliar seu alcance
sócio-pedagógico, de modo a que um contingente cada vez maior de protagonistas,
comprometidos com o Projeto de construção de uma sociabilidade alternativa,
venha a fazer um bom uso, não apenas informativo – o que já representa um bom
passo -, mas sobretudo formativo?
Considerações sinópticas
Ensaiamos trilhas de
peregrinos e peregrinas, que se sentem relativamente confortados por terem uma
boa noção do horizonte aonde pretendem chegar, em que pese a necessidade de
irem fazendo caminho, ao caminharem. Sentimento de desinstalação que a busca de
alternatividade sempre implica. Buscamos empreender uma reflexão que nos
provoque passar do consenso ideológico ao dissenso alternativo. Não tanto por
força de novo discurso bem tecido, mas buscando na prática a força dos
argumentos. Tratamos de recuperar algumas facetas mais impactantes da atual
ordem dominante. Sublinhamos uma certa mudança na postura de entidades ligadas
ao status quo, que têm passado a admitir, por razões distintas, algum
hiato entre o por elas “proposto”, em termos de macro-políticas, e o efetivo
resultado das mesmas. Se antes se limitavam a negar ou a silenciar acerca de
dados cada vez mais contundentes que atestam uma involução da qualidade de vida
de bilhões de seres humanos e do Planeta, eis que, premidas pela gritante
realidade dos fatos, começam a ceder (em palavras), reconhecendo o óbvio antes
negado.
Enquanto isso, emerge
um desafio pouco ou nada esperado: a mudança de atitude ético-política de
relevantes segmentos das forças populares. Antes comprometidos com a construção
de um projeto alternativo de sociedade, com o passar do tempo e com as
primeiras conquistas no terreno institucional, passaram a transigir cada vez
mais em relação ao seu horizonte maior, e dispondo-se a apostar cada vez mais
nos espaços institucionais (pela via das conquistas eleitorais e dos espaços
governamentais e parlamentares), o que implicou progressivo abandono das lutas
sociais e dos movimentos sociais, com os quais antes caminhavam de perto.
Buscamos elencar uma
série de elementos que, ao nosso ver, não apenas contribuíram para forjar as
condições sócio-históricas de tal redirecionamento ético-político, como
concorreram efetivamente para o esgotamento de um “ciclo” das forças de
esquerda (no caso, a esquerda partidária), protagonizado pelo Partido dos
Trabalhadores e seus aliados (partidários, sindicais, eclesiais, de alguns
movimentos populares, etc.).
O terceiro tópico
deste texto foi dedicado a esboçar novas possibilidades sócio-históricas, em
moldes alternativos. Um primeiro passo, ainda trôpego, ainda prematuro, mas, de
todos os modos, anunciando sinais de um novo tempo, desta vez apostando no
potencial de uma sociabilidade alternativa, protagonizada por um novo Sujeito
Político, cujo perfil vai bem além de (embora passe por) espaços partidários de
esquerda, cujo foco de organização vai beber sua força maior na experiência dos
Conselhos Populares, com toda uma nova cultura política que os sustenta e lhes
dá sustentação. É um ensaio de um novo mutirão. Valerá mesmo a pena apostar
nesse caminho, como expressão de um dissenso alternativo ao que aí está?
Referências
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Operária, n. 69, Lisboa, maio-junho, 1999, pp. 19-20.
__________________. Memória Histórica e Movimentos Sociais:
ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João
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RAMONET, Ignácio. Stratégies de la faim, Le Monde diplomatique,
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RODRIGUES, Francisco
Martins. Acção comunista em tempo de maré baixa. In Política Operária, nº 62, novembro-dezembro, 1997, pp. 31-33.
__________________________.
Concorrer ao parlamento: princípio comunista? In: Política Operária, nº 74, Lisboa, março/abril, 2000, pp. 27-30.
- Documentos
fundantes de alguns partidos de esquerda.
SILVA, Rita de Cássia Curvelo da.
“Práxis Política no MST: produção de saberes e formação omnilateral de Gente”.
Texto apresentado para o exame de qualificação ao doutoramento, no Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFPB, João Pessoa, setembro, 2007.
João Pessoa, agosto
de 2007
*
Sociólogo e Educador Popular. Docente-Pesquisador no NUPESQ da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru – PE. Membro do Centro Paulo Freire –
Estudos e Pesquisas. Autor de, entre outros, Direitos Humanos X Capital:
potencializando a intervenção dos movimentos e organizações sociais de base.
João Pessoa: Idéia, 2003. Acompanha a caminhada dos movimentos sociais
populares e das pastorais sociais, no Nordeste, desde meados dos anos 60.
[1] No
meado dos anos 80, quando se dava o auge da influência da Teologia da
Libertação e da chamada “Igreja na Base” nos movimentos sociais e organizações
de base, no Brasil e na América Latina, as forças reacionárias internacionais,
dentro e fora da Igreja Católica, passaram à ofensiva. Seguindo a mesma
orientação do “Documento Militar Secreto sobre a Teologia da Libertação”,
produzido por ocasião de uma conferência das forças armadas do continente
americano, realizada em
Buenos Aires , em 1987, que alertava contra os “desvios” e a
“manipulação” da Teologia da Libertação, eis que o Documento de Santa Fé II,
fazendo eco ao Documento anterior, denunciava vigorosamente a “subversão
interna” da Teologia da Libertação, face à qual já não se tratava mais de
“ragir a posteriori”, sendo chegada a hora de combatê-la. Dessa mesma época é
também a ofensiva do Vaticano, sob o papado de João Paulo II, contra a “Igreja
na Base” (cf. DIAL. “Document militaire secret sur la théologie de la
libération”, n. 1338, Paris, 22 de setembro de 1988; e INSTITUTO HISTÓRICO
CENTROAMERICANO. Documento de Santa Fe II, in Envio, n. 1369, Nicarágua,
dez.-jan. 1988; CALADO, Alder J.F. “Educação e Novos Movimentos Sociais:
potencial, limites e perspectivas da Igreja
na Base”. In: Revista Temas em
Educação, n. 3, UFPB/Curso de Mestrado em Educação, João Pessoa, 1993, pp.
21-42.
[2] Em referência a um artigo seu, de 1o de Maio de 1990,
intitulado “Um amargo quarto de século, publicado no Jornal do Brasil, na mesma
data. Indignado, Florestan Fernandes se queixava de, apesar de incessantes
lutas, durante 25 anos, as coisas haviam se agravado para as classes
populares...
[3] Tivemos
oportunidade de nos remeter às contribuições de Weber e Troeltsch, por exemplo,
em nosso artigo intitulado “A dialética
instituído X instituinte: notas sobre a burocratização da esquerda brasileira.
In: CALADO, Alder J.F. (Org.). Por uma Cidadania Alternativa. João
Pessoa: Idéia/ Caruaru: Edições FAFICA, 2004, pp. 11-30.
[4]
Ver, entre outras pesquisas recentes, a realizada por Rita de Cássia Curvelo da
Silva, cuja tese (em vias de conclusão) intitulada “Práxis Política no MST:
produção de saberes e formação omnilateral de Gente”, aborda “a formação omnilateral de
gente no MST, considerando-se os saberes produzidos nas diferentes formas de
práxis dos Sem Terra, mas com ênfase para a práxis política: formas específicas
de luta – mobilização, organização e ação coletivas – por terra e reforma
agrária. Com base nas dimensões intelectual, afetiva, volitiva e atitudinal
desses saberes produzidos, analisar-se-á a formação de sujeitos
epistemológicos, psicológicos, éticos, estéticos, conscientes e participantes,
atentando para as dificuldades e contradições desse processo educativo.”
[5] Ver, por
exemplo, CHAVEAU, Gerard. L´école du
travail dans la pensée ouvrière, Ville École Intégration, n. 113, juin
1998.
[6] “Sa recherche
pédagogique vise en premier lieu la formation d’une nouvelle société… et donc
la disparition de la société actuelle (celle du début du XIXe siècle), fondée
sur l’inégalité des hommes. La nouvelle société refuse et supprime la propriété
privée, la concurrence, la division sociale du travail qui produisent " la
pauvreté, l’ignorance, les conspirations, les oppositions, l’exploitation, le
crime, la misère, les faiblesses du corps et de l’esprit " (CHAUVEAU, ib.)
[7] “Cette
éducation se veut " unitaire et intégrale-composée ", "
polyvalente " et " achevée " : elle vise à la fois le
développement harmonieux de toutes les capacités humaines et la préparation de
l’individu au travail " libéré " et aux besoins de la société "
future " (que Fourier appelle garantiste). La conception
fouriériste repose sur un ensemble de préoccupations psychologiques, morales et
économiques. L’éducation doit développer dès le jeune âge les penchants et les
instincts naturels de l’enfant, donner libre cours à ses capacités physiques et
intellectuelles, stimuler le goût du travail productif.”
(...) “Elles dénoncent donc l’enseignement officiel dans l’Europe du
XIXe siècle pour deux raisons majeures : les enfants d’ouvriers se contentent
des connaissances rudimentaires de l’école primaire et s’épuisent au travail
exploité ; les enfants des bourgeois sont soumis à un enseignement scolastique
et élevés dans le mépris du travail productif.
[8] A Editora Expressão Popular conta com um
excelente acervo de textos de bons clássicos, entre os quais um de Pistrak: Fundamentos
da Escola do Trabalho. No começo dos anos 80, a Editora Brasiliense
havia publicado esse texto, com uma densa introdução de M. Tragtenberg. (cf.
Revista Espaço Acadêmico, Ano III, No 24, - Maio de 2003: www.espacoacademico.com.br/024/24mt1981.htm
)
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