sexta-feira, 13 de julho de 2018

MOVIMENTOS SOCIAIS RUMO A UMA NOVA SOCIEDADE: do consenso ideológico ao dissenso alternativo


MOVIMENTOS SOCIAIS RUMO A UMA NOVA SOCIEDADE:
do consenso ideológico ao dissenso alternativo

Alder Júlio Ferreira Calado*


            Cada vez mais grave é o estado da atual crise de sociabilidade, a impregnar, ao mesmo tempo, relações de sociedade, de Estado, de instituições, de subjetividades, de valores... E já não são as forças sociais mais combativas que denunciam, sozinhas (ainda que por razões diferentes), os índices escandalosos da profunda desigualdade social, manifesta, por exemplo, na esdrúxula concentração de riquezas, a infelicitar bilhões de seres humanos, nos mais distintos recantos do Planeta. Não bastassem as fontes ligadas às forças opositoras da ordem estabelecida, eis que hoje são as mais insuspeitas fontes do, ou vinculadas a esse próprio sistema, que já não hesitam em reconhecer dados até há pouco tempo por elas omitidos ou mesmo negados.
            Situação de progressivo aviltamento que não se restringe à extremada concentração de riquezas. Estende-se a outras esferas da realidade. Além da esfera da produção (em suas mais diversas incidências: relações de propriedade, de produção, de trabalho, de comércio, de consumo, etc.), afeta não menos as relações de poder (instâncias, formas e procedimentos de decisão, seja nas relações com o Estado, seja em outros espaços de distribuição e exercício de poder), bem como a esfera cultural (valores hegemônicos, sujeitos produtores e consumidores de Cultura, processos de fruição dos bens culturais), sem esquecer as relações dos Humanos com o Planeta e com o Sagrado.
            Ao ensaiarmos uma breve incursão analítica por espaços, sujeitos, instâncias e posturas da sociabilidade atualmente hegemônica, move-nos, entretanto, o propósito de fazê-lo priorizando nossa atenção às formas alternativas de sociabilidade, em curso ou em gestação, a despeito de sua pouca ou quase nula visibilidade, no leito das relações sociais do “rio de superfície”, já que tais manifestações alternativas, ainda que moleculares, são, antes, observáveis nas “correntezas subterrâneas”, isto é, nos espaços não-convencionais.
Sucede que, para percebermos essas tão sutis manifestações alternativas, temos que exercitar continuamente o aprimoramento de nossa capacidade perceptiva, reeducando nossos olhos, nossos ouvidos, nosso sentir, nossa intuição, de modo a nos tornarmos progressiva e incessantemente capazes de ver, de ouvir, de sentir, de intuir fatos e situações dos quais, antes, não nos dávamos conta, ou que mal alcançávamos.
            Na exposição de nossa reflexão, que pretendemos problematizadora e provocativa, começamos por destacar a) fatos e situações mais palpáveis, mais visíveis, que permeiam as relações sociais características da sociabilidade hegemônica em curso, na qual campeia o exercício do consenso ideológico. Em seguida, buscamos apresentar b) alguns sinais capazes de apontar para o esgotamento e a insustentabilidade do perfil de forças sociais ainda consideradas aptas a enfrentar com eficácia o atual modelo de sociabilidade. Por último, ousamos acenar para c) algumas práticas de forças sociais - em especial, aqueles Movimentos Sociais com projeto alternativo de sociedade - que atestam, inclusive pelo exercício do dissenso alternativo, ser possível a construção de uma nova sociedade, de uma sociabilidade alternativa à ordem hoje hegemônica.

1. O exercício do consenso ideológico como ferramenta a serviço do “establishment”

            Não faz muito tempo, apenas as forças de oposição à ordem dominante encarregavam-se de denunciar o caráter perverso das políticas macro-sociais “propostas” pelos organismos multilaterais aos países periféricos. Tal o ritmo de agravamento das condições sociais e das do Planeta, resultantes de tais “propostas”, em tantos países do mundo, que agora se ouvem vozes oficiais (ou oficiosas), a reconhecerem o óbvio, que até então silenciavam ou negavam. Trata-se de depoimentos, declarações ou análises impactantes, não tanto pelo que revelam, mas por procederem de um outro horizonte. Sobretudo nos últimos tempos, vêm-se escutando referências a certos dados de realidade por parte dos próprios organismos multilaterais, inclusive a ONU. Dados concernentes, por exemplo, à infra-estrutura e às condições de vida de populações de vários países, a exporem índices alarmantes sobre o aviltamento progressivo da qualidade de vida de bilhões de seres humanos e do Planeta.
Há quase dez anos, vinham à tona dados do Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), relativos ao ano de 1998, dando conta do aumento do fosso entre ricos e pobres. Um dos artigos de Le Monde diplomatique, intitulado, não por acaso, “Stratégies de la faim”, assinado por Ignacio Ramonet, atinha-se particularmente ao teor desse Relatório:

Sabíamos que o fosso das desigualdades havia crescido, no decorrer das décadas ultraliberais (1979-1998), mas como imaginar que chegasse a esse ponto? Pois também tomamos conhecimento de que, se "em 1960, os 20% da população mundial que vivem nos países mais ricos, tinham uma renda 30 vezes maior do que a dos 20% mais pobres, em 1995 a renda dos mesmos era 82 vezes superior (2)"! Em mais de 70 países, a renda por habitante é inferior à de vinte anos atrás. No âmbito mundial, mais de 3 bilhões de pessoas - a metade da humanidade - vivem com menos de 10 francos. (“Stratégies de la faim”, Le Monde diplomatique, novembro de 1998)
           
Ora, de nada valeu o alerta. Vários anos depois, e já em meados da primeira década do século XXI, outros dados – desta vez do próprio Banco Mundial – mostravam que, não apenas a situação das desigualdades gritantes  não havia sido contornada, como chegava a agravar-se ainda mais. Em seu relatório de 2006, com efeito, lê-se, por exemplo, que “o nível médio da renda real dos países mais ricos é 50 vezes maior do que nos países mais pobres.” (World Development Report 2006, cf http://siteresources.worldbank.org )
            Soa de tal modo surpreendente, tal divulgação, que nos induz a indagar: o quê teria levado esses órgãos a admitirem, de própria voz ou pela boca de figuras ilustres ligadas aos mesmos, não só o agravamento das condições gerais de vida de parcelas significativas das populações de tantos países, como também algum tipo de reconhecimento de equívoco de suas “receitas”? Na verdade, o evidente agravamento é que os força a reconhecerem, ainda que implicitamente, o fracasso das políticas sociais que “propuseram” a esses mesmos países, via FMI, Banco Mundial e similares.
            É o que sucede, por exemplo, em relação às declarações, depoimentos, entrevistas e comentários vindos de Joseph Stiglitz, figura emblemática, dado seu perfil de celebrado e insuspeito economista acreditado junto às forças mais representativas do sistema dominante. E não se trata de uma “infeliz” declaração, pronunciada de modo açodado, nem de pretenso desvirtuamento do seu pensamento. Há cerca de cinco anos, os principais órgãos de imprensa tinham dado conta de declarações ou comentários seus nada ortodoxos. Uma dessas ocasiões deu-se em 12 de setembro de 2002, em palestra sua realizada no Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qual

o economista Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel de Economia, apontou o Consenso de Washington como um dos principais responsáveis pelo fraco desempenho econômico e social da América Latina nos anos 90. No entender de Joseph Stiglitz, o crescimento econômico verificado na América Latina na década de 90 foi aparente e, mesmo assim, ao invés de refletir uma eventual pertinácia do novo modelo que foi imposto à região, traduzia ´a recuperação da ressaca do crédito externo dos anos 80´, explicando a crise vivida a partir de 1988 e a elevação dos índices de desemprego e de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Em sua elucidativa palestra, Joseph Stiglitz não poupou nenhum dos pontos centrais do Consenso de Washington, especialmente a flexibilização do mercado de trabalho, a ênfase excessiva no ajuste fiscal, o controle da inflação, a privatização e liberalização. Para fechar, Stiglitz recomendou todo cuidado com a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) que, no seu entender, seria boa para os países da região, se os Estados Unidos abrissem de fato os seus mercados, mas isso não vai ocorrer pois ´os Estados Unidos são muito bons em barreiras não-tarifárias.´ (cf. Revista eletrônica O SOL, edição de 20/09/2002, www.solidaristas.com.br/sol06.htm )

Se, a propósito, nos ativermos, ainda que de passagem, ao campo das políticas educacionais “propostas” pelo BIRD aos países periféricos do Capitalismo, vamos constatar a configuração de um processo, até então inédito, além de fortemente intrigante. Em vez de serem as reformas educacionais (e em outras áreas) protagonizadas pelos respectivos Estados nacionais – prática até então habitual, no sistema capitalista -, o que se passou a ver, desde então, foi a imposição por um Banco – o BIRD – de uma política educacional, à revelia e, por vezes, até contrária às leis internas de cada país, como foi o caso do Brasil.
Os governantes de grande parte dos países periféricos – Brasil inclusive - foram cooptados a implementarem, via Congresso, mudanças nos textos legais, a partir da própria Constituição, a fim de se adaptarem àquela política educacional. Fato que levaria pesquisadores, como Roberto Leher, a imputarem, a justo título, ao BIRD a usurpação da função própria de um ministério de educação... Não apenas em sua tese de doutoramento, como também em outros escritos, Leher evidencia o lugar que o Banco Mundial vem ocupando na formulação de política educacional, inclusive para o Brasil. Também aqui, as reformas recém-implantadas, desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, têm nas formulações do BIRD sua principal matriz conceitual. E não apenas, no caso específico do Brasil, posto que

Em diversos países é possível presenciar a ação desenvolta dos representantes desses organismos nas decisões fundamentais da economia. (...) Este estudo sustenta a tese de que a redefinição dos sistemas educacionais está situada no bojo das reformas estruturais encaminhadas pelo Banco Mundial, guardando íntima relação com o par governabilidade-segurança. (LEHER, 2003, p. 1)

            A estreita associação feita pelo Banco Mundial entre educação e segurança, a que se refere Leher, nos remete, direta ou indiretamente, aos famosos “Documentos de Santa Fé” (I e II), como expressão fidedigna do famigerado “Consenso de Washington”, nos quais fora igualmente redobrada a atenção das forças dominantes em relação à educação e à cultura, mais precisamente, ao terreno dos valores. Naquele contexto sócio-histórico (começos dos anos 80), o alvo principal das atenções estratégicas das forças dominantes, no que concerne ao campo cultural, era constituído pela influência da Teologia da Libertação, especialmente no continente latino-americano, interpretada como mera referência sociológica vinculada ao Marxismo, e mais particularmente, à sua versão gramsciana, julgada perigosa nos mencionados Documentos de Santa Fé.[1] Urgia mover uma perseguição sem trégua aos principais formuladores daquela Teologia. Questão da qual o próprio Vaticano, então sob o pontificado de João Paulo II, não tardaria a ocupar-se, por meio da intimidação de seus principais formuladores, a exemplo de Leonardo Boff, punido também em razão da formulação heterodoxa de sua famosa obra Igreja: Carisma e Poder.
            De todos os modos, o campo educacional foi apenas uma das áreas-alvo das políticas formuladas pelas forças dominantes para a periferia do Capitalismo. Em outras áreas – saúde, previdência, telecomunicações, energia... -, o processo seria reeditado, movido pela mesma lógica de mercado. Hoje, é o deus etanol que está em voga: mais vale alimentar automóveis do que gente...
            Por outro lado, a despeito dos sucessivos ataques dos inimigos de classe, as classes populares ainda enfrentam os efeitos perversos de um desafio bastante complicado: o fascínio pelo exercício do consenso ideológico. E eis-nos diante do “fogo amigo”, como expressão e produto de uma das estratégias mais eficazes, atualmente postas em prática pelas forças dominantes: o recurso às técnicas de cooptação.
Com efeito, fazendo coro objetivamente com as novas incursões do Capital, no atual contexto, observa-se uma tendência de significativas parcelas das próprias forças populares a uma certa lassidão ético-política. Enquanto têm lugar os ataques do Capital, constata-se, mesmo no interior de segmentos das forças populares antes mais aguerridos, um certo refluxo em sua combatividade aos valores e às armadilhas do projeto dominante de sociedade.
Em vez disso, observa-se uma tendência ao irenismo (do grego “eirhnh”, “eiréne”, “paz”, significando, no caso em apreço, pacifismo ou paz a qualquer custo ou colaboracionismo). Já não se atêm, como dantes, ao cuidado de identificar e distinguir parceiros e aliados em relação aos inimigos de classe, o que induz, não raro, a práticas de conciliação de classes, por força do que passam a se conformar com ações meramente reivindicativas ou pontuais de políticas sociais capazes, quando muito, de aliviar temporariamente a extensão da barbárie a que se acham submetidas crescentes maiorias da população mundial, inclusive no Brasil.
Não raro, tenta-se justificar tais práticas, recorrendo-se a argumentos  pretensamente de esquerda, chegando-se até a evocar – no meu entender, indevidamente - categorias freireanas como “Diálogo”, fazendo-se ouvidos moucos ao alerta do próprio Freire, de que o diálogo só é possível entre semelhantes e diferentes, não entre antagônicos (o que implicaria algo como o diálogo do pescoço com a guilhotina...). Ao referir-se às características comuns de uma sociedade de classes, Paulo Freire assim descrevia o perfil dominante de suas relações:

Todos os temas e todas as tarefas características de uma ´sociedade fechada´. Sua alienação cultural, de que decorria sua posição de sociedade “reflexa” e a que correspondia uma tarefa alienada e alienante de suas elites. Elites distanciadas do povo. Superpostas à sua realidade. Povo “imerso” no processo, inexistente enquanto capaz de decidir e a quem correspondia a tarefa de quase não ter tarefa. De estar sempre sob. De seguir. De ser comandado pelos apetites da “elite”, que estava sobre ele. Nenhuma vinculação dialogal entre essas elites e essas massas, para quem ter tarefa corresponderia somente seguir e obedecer. (FREIRE, 1989, p. 47).

Outro sinal desse refluxo estratégico incide no recurso aos instrumentos de luta da Democracia representativa. Eleição atrás de eleição, entra governo, sai governo, e os problemas estruturais, não só não se resolvem, como se agravam, em escala crescente. Reedita-se, uma vez mais, o que – de tanto relembrar, em escritos meus – já começo a chamar de “síndrome Florestan Fernandes”.[2]
A despeito do caráter incisivo dos documentos fundantes do PT e da CUT, que repercutia na prática política de expressivos contingentes de seus militantes, vale reconhecer que um e outra, desde o nascedouro, não surgiam com proposta tipicamente revolucionária. Tampouco nasceram apostando todas as suas “fichas” nas instâncias de luta da Democracia representativa. Apostavam, sim, no instituinte.
O que contribuiu para essa reviravolta, que se foi produzindo progressivamente, sobretudo a partir dos anos 90? Que fatores têm concorrido, na produção desse fenômeno? Uma confluência de fatores dialeticamente relacionados ajuda a entender esse desfecho. Vejamos alguns. Embora essas forças não tenham surgido apostando demais na via institucional, tal atitude foi sendo progressivamente modificada, na mesma proporção em que tais forças logravam conquistar progressivos espaços nos aparelhos de Estado.
A exitosa participação nos embates eleitorais, em todas as esferas (Câmaras de Vereadores, Prefeituras, Assembléias Legislativas, Governos estaduais, Câmara Federal, Senado, Presidência, Ministérios) conferiu a essas forças sucessivas conquistas, permitindo-lhes inclusive uma reconhecida expansão do seu espaço de controle da máquina governamental. Enquanto isso, a CUT tomava gosto na progressiva colaboração de classes, seja em suas conversações com o patronado, seja em sua inserção nos espaços governamentais, inclusive como co-partícipe na gestão do Fundo de Amparo ao Trabalhador, ainda no Governo FHC, fazendo coro com a onda da “(re)qualificação” laboral exigida pelo Mercado, enquanto ferramenta de combate ao desemprego...
            No âmbito partidário, de uma meia dúzia de deputados federais que o PT elegeu, nas eleições de 1982, o número vai se multiplicando, a cada eleição. Ritmo semelhante, em outras instâncias legislativas. No plano do Executivo, desde a conquista eleitoral da Prefeitura de Fortaleza, em 1985, e da de Vila Velha (Espírito Santo), em 1988, o PT passaria a comemorar, a partir daí - e sempre com crescente euforia - a ininterrupta sucessão de tantas outras, inclusive de capitais e municípios de grande porte.
            Os milhares de militantes do PT e da CUT – mulheres e homens – até então organicamente envolvidos nas lutas sociais do campo e da cidade (haja vista o Plano de Lutas da CUT!) foram progressivamente abandonando (salvo exceções) o terreno das lutas, instados que eram a fazer assessoria aos eleitos e eleitas, e a ocuparem os mais diferentes espaços governamentais, passando a integrar quadros de secretarias municipais, estaduais e tantas outras instâncias estatais.
            Ainda em meados dos anos 90, à medida que ia percebendo uma certa tendência ao esgotamento, no atual contexto sócio-histórico, do potencial transformador do PT e dos demais partidos de esquerda convencionais, ousei considerar tal hipótese, em seguida socializada em alguns textos (cf. Calado, 1997; 1999). Hipótese que senti reforçada, confrontando-a com reflexões similares, atinentes ao caso de Portugal (cf. Rodrigues, 1997).
            Mesmo não nos propondo aqui aprofundar fatores e implicações dessa opção, até porque sobre isso vimos refletindo, há cerca de dez anos (cf. Calado, 1997; 1999; 2004; 2005), entendemos que vale a pena reportar-nos a e sublinhar aqui alguns dos que consideramos aspectos mais impactantes.
            Esses fatos concretos vêm sendo por nós interpretados como expressão e produto, de um lado, de uma tendência bastante freqüente na história das forças sociais que, ao surgirem radicais contra a ordem estabelecida, vão arrefecendo progressivamente seu potencial subversivo, à medida que passam a colecionar conquistas nos espaços institucionais. Tendência bem estudada, inclusive, por autores como Max Weber (cf. por ex., A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo) e Ernst Troeltsch (Die soziallehren der christilichen Kirchen und Gruppen), particularmente no que respeita à evolução de grupos sociais de orientação religiosa (os anabatistas, por exemplo), com propósito de subversiva radicalidade[3], e, por outro lado, de uma nova opção ético-política. A despeito de reiteradas declarações em contrário, falam mais alto suas atitudes de evidente mudança de escolha no rumo antes defendido e em seus respectivos caminhos. Critério de verdade é o que se faz, não tanto o que se diz, a menos que este reflita aquele. Princípio comum, aliás, tanto no Cristianismo (“Façam o que eles dizem, mas não o que eles fazem”), quanto na perspectiva marxiana, tal como formulada na segunda tese a Feuerbach.
            Mesmo admitindo-se a confluência de outras variáveis, a conjugação desses dois fatores, acima mencionados, tem um peso decisivo no desdobramento de fatos e situações por eles desencadeados, sob diferentes ângulos.
No que se refere a aspectos mais diretamente econômicos, as crescentes vantagens auferidas em função dos novos cargos (vereadores, prefeitos, governadores, deputados, senadores...) foram afetando gradativamente o princípio do auto-financiamento do Partido, corporificado na recomendação, até então tomada a sério, de que o Partido deve ser mantido sobretudo pelas contribuições dos seus militantes, de acordo com suas possibilidades, desde uma simples contribuição correspondente ao valor de “um cafezinho”.
Entretanto, o que se passa a ver, desde então, é o progressivo abandono desse princípio, que passa a ser maciçamente substituído pela contribuição dos eleitos (30% dos seus vencimentos de eleitos), com base na qual estes passam a controlar o Partido, começando a “falar mais alto”, fazendo eco àquele ditado popular, de que “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão.” Doravante, passou a pesar cada vez menos a voz das bases, dos núcleos, que, aliás, passaram a sofrer um processo de desmonte. Doravante, os eleitos do Partido passaram a ter peso maior nas decisões partidárias, nas diferentes instâncias. Os destinos do Partido passam a ser cada vez mais subordinados às decisões de um pequeno grupo, ainda que em nome do conjunto do Partido.
            Outro desdobramento: o crescente arrefecimento do compromisso com a formação. Tanto no âmbito partidário quanto no plano sindical, o processo formativo de membros dirigentes e das bases constituía uma das suas marcas mais eloqüentes. À medida, porém, que foram conquistando significativos espaços na institucionalidade, passaram a afastar-se rápida e progressivamente do seu propósito original, amoldando-se cada vez mais à feição do establishment., passando a equiparar-se a qualquer partido da ordem. De sua inicial desconfiança e relativo distanciamento das apostas no instituído, foram sendo progressivamente seduzidos pelos atrativos postos conquistados no interior dos aparelhos de Estado. Foram, desde então, abandonando sua aposta no potencial instituinte de sua organização.
Daí para frente, a perspectiva de classe foi cedendo lugar a uma luta fratricida, interna ao Partido e à CUT, posto que o que ora contava era o controle da máquina a serviço dos interesses de pequenos grupos, empenhados em garantir seus respectivos postos de mando ou suas táticas eleitorais. Se, antes, mesmo disputando eleições, havia a preocupação, por exemplo, com assegurar critérios programáticos, critérios de aliança apenas com forças dentro do campo socialista, além de critérios de perfis de candidaturas, doravante vão prevalecer outros critérios, muito semelhantes aos adotados pelos partidos e sindicatos da ordem.
Tal era a mudança, que, em não poucos casos, já não era preterida somente a Classe Trabalhadora, era o próprio Partido que seria relegado a plano inferior. Não era mais questão de honra formar um Comitê do Partido. Este até podia haver, mas como exceção ou de fachada. O que funcionava, com freqüência, era um simulacro de comitê, a serviço de cada candidato ou de um pequeno grupo de candidatos e seus apoiadores. Resultado previsível: ausência ou existência estatisticamente desprezível de candidaturas do Partido, dando lugar progressivamente a uma livre concorrência entre candidatos de si mesmos, não raro em disputas fratricidas. Assiste-se, então, à substituição de uma incipiente imprensa partidária por um serviço de imprensa de cada candidato, e por aí segue...
Se já não eram tão rígidos, como em suas origens, os critérios de admissão de novos filiados, o processo de filiação vai sendo cada vez mais submetido a procedimentos burocratizados, eufemisticamente ditos “pragmáticos”, de modo a permitirem a filiação de quem quisesse entrar no Partido (ou até mesmo de quem não quisesse...), independentemente de suas convicções político-ideológicas e de classe. Mecanismo importante, aliás, para se assegurar maiorias artificiais, por ocasião das assembléias deliberativas de eleições de delegados e delegadas dispostos a selarem alianças, de acordo com meras conveniências eleitorais. Daí para o surto de deslizes éticos (“quorum” forjado, atas fabricadas, etc.) foi um passo.
Entendemos que esses registros ajudam a compreender melhor como e por que se foi firmando a tendência a uma lassidão ético-política nas práticas protagonizadas pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados, no decorrer dos últimos anos. Tendência que se vem firmando, à medida que tais forças se nivelam por baixo aos partidos da ordem e seus aliados, nos mais diferentes espaços sociais (partidos convencionais, inclusive alguns ditos “comunistas”; centrais sindicais; organizações da sociedade civil; parcelas significativas de segmentos universitários, igrejas, associações e até certos movimentos sociais populares, todos sucumbindo ao exercício do consenso ideológico, a despeito de manterem, por vezes, o discurso de uma esquerda aparente, afinal para o discurso da razão cínica, não importa tanto a verdade, importa a verossimilhaça... E os profissionais do “marketing” político fazem a festa!
No tópico seguinte, buscamos trazer ao debate alguns elementos que possam ajudar a perceber sinais convincentes do esgotamento dessas forças político-partidárias, sindicais e populares, quando e se se trata da construção de relações sociais alternativas ao modelo dominante.

2. Esgotamento das forças políticas que até há algum tempo atrás haviam protagonizado o projeto de construção de uma sociabilidade alternativa

            Nada fácil enfrentar o tipo de desafio interposto à caminhada da Classe Trabalhadora, no atual momento do Capitalismo. Desafio multifacetado. Comporta múltiplas variáveis. Uma delas tem a ver com a teimosia pouco convincente de uma parcela das classes populares – inclusive parte dos dirigentes e militantes históricos da esquerda partidária - que insiste em continuar apostando numa mais que improvável recuperação de rumo do PT, da CUT e de seus aliados.
Isto nos faz lembrar um episódio jocoso, que um fiel militante  da Corrente “O Trabalho”, teimosamente ainda ligada ao PT, me passou. O episódio teria ocorrido no Sertão do Pajeú, em Pernambuco. À beira de um açude, alguém percebeu um cidadão a lançar nas águas sua vara sem anzol. Surpreso, o observador pergunta: - “Você não se deu conta de que sua vara está sem anzol?” E, em troca, recebe como resposta: - “Se preocupe não. Aí não tem peixe, mesmo!”... Voltando para o rio de superfície dos “partidos da ordem” (como, bom marxista, costumava chamar Florestan Fernandes), será mesmo que desse mato sairá coelho?
Parece inegável que a acumulação, pelas forças sociais até há pouco protagonistas de mudanças, de graves deslizes ético-políticos, em relação ao horizonte de mudança (na perspectiva das classes populares), bem como em relação aos caminhos trilhados, nessa mesma direção, induz a perguntas do tipo:
- Ainda vale a pena prosseguir apostando no potencial transformador dessas forças?
- Já não são bastantes e convincentes os sinais de impotência emitidos pelas forças sociais que até há pouco encabeçavam o projeto de construção de uma sociabilidade alternativa?
- Até quando vamos continuar reeditando práticas, cujos desdobramentos nos remetem ao “déjà vu”?
- E aí, até quando vamos continuar tentando dar conta dos desafios, recorrendo a meios que se têm mostrado sobejamente estéreis, no fundamental?
Perguntas como essas emergem, inevitavelmente, a nos exigirem uma reflexão (auto)crítica talvez incômoda, mas certamente ineludível. Em textos anteriores, já tivemos oportunidade de socializar alguns elementos desse desafio, mas episódios mais recentes do cenário político (não apenas no Brasil) têm trazido novos elementos que atualizam e reforçam ainda mais essa tendência. E, com ela, o sentimento de exaustão do atual “ciclo” protagonizado pela esquerda partidária, que se situa entre o final dos anos 70 e inícios do século atual.
As amplas e profundas transformações sócio-históricas ainda em curso vêm afetando também práticas e concepções macropolíticas que, até há pouco, gozavam de relativo consenso entre as forças que se reclamavam – e ainda cometem o despropósito de se reclamarem! - de esquerda, ainda que suas práticas disto cada vez mais se distanciem. Trata-se, aí, como o dissemos anteriormente, de jogar no lixo a questão muito claramente posta por Marx, no enunciado da segunda das “Onze Teses a Feuerbach”: a de que é pela prática, e não pelo discurso, que se testa a verdade.
Por mais que continuemos a não alimentar fáceis “certezas” de um passado ainda recente, que a tantos induzia a apostarem cegamente, como uma fatalidade por força da qual o Capitalismo cairia de podre, só temos a nos rebelar cada vez mais contra o discurso da racionalidade cínica que hoje campeia. Entendemos que, no caso do Brasil atual, partidos como o PT e seus aliados da base governista,  ainda que não cessem de comemorar seus inegáveis avanços no plano eleitoral, não apenas não conseguem fazer prosperar suas antigas propostas de mudança, como tendem a conformar-se aos padrões ditados pela ordem dominante (inclusive, em casos mais recentes como o projeto de transposição das águas do rio São Francisco e o programa do etanol), ora sob o pretexto de que “as mudanças têm que vir lentamente”, ora sob o argumento de que, sendo irreversível o espectro do atual neoliberalismo, não lhes restaria outra opção senão a de “buscar tirar proveito da situação dominante”. Com raras exceções, passam de partidos de resistência ao status quo à categoria de meros “partidos da ordem”.
            Por outro lado, a maior parte de seus militantes que, nas décadas de 1970 e 1980, viviam engajados nos movimentos e lutas sociais do campo e da cidade, na época de ascenso do PT e da CUT, hoje vem limitando sua atuação às instâncias governamentais: gabinetes de parlamentares, secretarias municipais e estaduais, e agora também aos espaços ministeriais, de primeiro, segundo e terceiro escalões... São milhares de militantes, mulheres e homens, de reconhecida qualificação acadêmica e política, que por distintas razões (por sobrevivência, uns; outros por desejo de ascensão institucional; outros ainda por evidente abandono da aposta num horizonte utópico, a despeito de suas declarações em contrário...), se distanciaram das lutas e dos movimentos sociais populares.
            Tal redirecionamento ético-político tem implicado uma multiplicidade de conseqüências práticas (quase todas enormemente prejudiciais aos interesses das classes populares), tais como: arrefecimento das lutas, por falta de animadores engajados; maior exposição e vulnerabilidade a iniciativas de cooptação; mudança de práticas e discursos numa direção de conciliação com a ordem dominante, entre outras.
            Ao referir-se ao que assinala como “a principal herança negativa” do chamado ciclo PT, um importante documento para debate, no interior da Consulta Popular, sustenta que tal herança consiste em

ter alimentado a confusão entre a defesa das liberdades democráticas e a burguesia. A bandeira das liberdades democráticas pertence à esquerda e não à burguesia. (que se apoderou delas em razão dos problemas enfrentados nas experiências da construção do socialismo). Todas as liberdades democráticas foram historicamente conquistadas em lutas populares e constituem um patrimônio das forças revolucionárias. Mas o Estado burguês democrático existente no Brasil não assegura a democracia. As experiências administrativas do PT nas prefeituras e governos estuduais, no parlamento e agora no governo federal, ao invés de sinalizar para a construção de força social que modifique o caráter do Estado, legitimaram o Estado burguês, institucionalizando a luta popular e desqualificando os setores e movimentos que a cooptação. (Cartilha 18, 2006, p. 33).

Conseqüências também no âmbito intrapartidário: abandono das práticas democráticas de base; superestimação do peso dos parlamentares nas decisões do partido; abandono das práticas de nucleação; desenfreada concorrência pela auto-reprodução dos mandatos eleitorais, ficando o horizonte da Classe Trabalhadora e o próprio partido em segundo (ou terceiro?) plano...
            Assiste-se, com efeito, a uma profunda crise de identidade das forças sociais que vinham protagonizando um projeto de transformação sócio-histórica, correspondente ao período compreendido entre o final dos anos 70 até o final do século passado e inícios do atual. Eis por que esse fenômeno tem sido analisado como característico de mais um dos chamados “ciclos” da esquerda brasileira. Textos recentes produzidos por autores ligados ao Movimento Consulta Popular vêm apontando tais marcas como características de fim do segundo ciclo.
O primeiro desses ciclos foi o protagonizado pelas forças marxistas, de corte anarco-sindical, das primeiras décadas do século XX. Estas forças tiveram uma influência considerável de organizações operárias européias, por intermédio dos intensos movimentos migratórios para o Brasil, no final do século XIX e começos do século XX. A extinção do tráfico de africanos escravizados, inclusive no Brasil, resultou na substituição de mão de obra escrava pela formada por migrantes europeus (italianos, alemães e de outros países).Esses grupos de esquerda constituem uma referência relevante nos principais eventos políticos e sócio-históricos das primeiras décadas do século XX, na medida em que estiveram à frente ou testemunharam acontecimentos de inegável relevância social, tais como greves, fundação e animação de partidos como o PCB, movimentos sociais de referência nacional, sem falar na força de atuação dessas forças no interior dos partidos políticos da época. A começar pelas influências recebidas pelo PCB e sua atuação como cidadão. 
Os migrantes para aqui vindos foram sendo progressivamente impelidos para os grandes centros urbanos, seja por conta da cultura escravista ainda em voga (apesar de sua revogação jurídica), seja por força do processo de urbanização e das atividades industriais em expansão. Esse contexto propiciou aos novos trabalhadores urbanos condições mais favoráveis de organização e mobilização, donde as primeiras greves gerais, a criação do Partido Comunista do Brasil (PCB), a participação nas rebeliões das primeiras décadas...
Tratava-se de uma proposta cuja centralidade recaía no instrumento partidário. Era a cultura política vigente. E não apenas neste primeiro “ciclo”. O segundo iria tomar como legado a mesma aposta na força do Partido. Na rebelião dos “Tenentes”, na Coluna Prestes, na mobilização popular em torno da Aliança Libertadora Nacional, na insurreição de 1935, na retomada das lutas sociais depois da Segunda Guerra Mundial, na participação nas campanhas de massas pela Constituinte de 1946, e mesmo durante um novo período de clandestinidade, com a cassação do registro dos mandatos dos deputados e do senador do PCB, na intensa mobilização das Ligas Camponesas, da UNE, pelas famosas “reformas de base”, em tudo estava presente a centralidade do e no Partido. Até o Golpe de Estado de 1o de abril de 1964...
O segundo ciclo da esquerda partidária terminou como “uma geração de militantes especializada em técnicas de gerenciamento dos conflitos sociais sem qualquer perspectiva transformadora que contemple rupturas ou alterações estruturais.” (Movimento Consulta Popular, Cartilha 18, 2006, p. 55).
A propósito deste ciclo mais recente, um rápido olhar sobre os textos produzidos pelos movimentos  mais destacados daquela época, é bastante, para se verificar o caráter do seu ímpeto instituinte. Os documentos fundantes de organizações como o PT e a CUT são emblemáticos. O plano de lutas – rurais e urbanas – da CUT não deixava margem a dúvidas sobre seu caráter anticapitalista (anti-latifúndio, anti-imperialista, combativo aos interesses do grande empresariado e, ao mesmo tempo, solidário às lutas das classes populares de todo o mundo, numa perspectiva socialista distinta da dos países do bloco soviético...), ainda que houvesse, dentro desse mesmo campo, quem ainda se mantivesse prisioneiro desse modelo.      É triste constatar esse redirecionamento de opções: à medida que se ia conseguindo conquistar alguns ganhos (sindicais, político-institucionais), ia-se, na mesma proporção, aliviando o tom das denúncias, das demandas classistas e, sobretudo, a força transformadora de suas práticas político-educativas.
Com efeito, passa-se a observar que, principalmente a partir dos anos 90, aquelas forças (políticas, sindicais, eclesiais e mesmo populares), antes tão bem articuladas contra a Ditadura Empresarial-Militar, logravam espaços institucionais (assentos parlamentares nas Câmaras de Vereadores, nas Assembléias Legislativas, na Câmara de Deputados, no Senado; cargos de assessoria; cargos no Executivo, com as crescentes conquistas de prefeituras, de governos estaduais, até chegar à presidência da República), com implicações diretas ou indiretas sobre as práticas de seus aliados sindicais, eclesiais e populares, foram mudando de perfil.
Vivia-se claramente uma tendência burocratizante, nas fileiras de segmentos antes comprometidos com os interesses da classe trabalhadora. Desafiante é examinar as condições sociais em que isto se dá. Seria tal tendência necessariamente inerente à trajetória de qualquer Movimento Social Popular? Ou seria, antes, expressão e resultado de condições históricas específicas? Nossa aposta recai sobre a segunda hipótese, como se verá mais adiante.
Outro aspecto que marca a crise identitária dessas forças tem a ver com incontrolável avidez pelo aliancismo, com o conchavo de cúpulas, cultivada com excessiva gula por parte de forças ditas de esquerda, com repercussão inclusive em segmentos desses próprios Movimentos Sociais Populares, que constituem alvo do nosso estudo. Que condições se mostram mais propícias à produção dessa cultura, convertida, com freqüência, em estratégia? Até que ponto a essa atitude irenista, acima mencionada, não subjaz uma estratégia a serviço do poder de alguns dirigentes, em nome de “todos”?
Não seria isso um forte indício da perda de referência na definição convincente de parceiros, aliados e, sobretudo, de adversários, que parecem cada vez mais ocultados ou omitidos, ou referidos de forma nebulosa e confusa? Será, por acaso, a esse propósito, a ampla vigência de uma atitude de certa “eclesialização”  (no sentido da generalização de discursos e de práticas “inofensivas”, tão próprias dos setores eclesiásticos conservadores, em relação aos adversários?
Não menos importante, emerge a necessidade de se avaliar o novo quadro sócio-histórico que, em razão do surgimento e consolidação de novos sujeitos para além das fronteiras da esquerda partidária, de modo a re-situar e redefinir o caráter do sujeito político de transformação social. Vivemos tempos que apontam claramente a obsolescência de manter-se a esquerda partidária como “o” sujeito da construção de uma sociabilidade alternativa. A esse propósito, têm sido claros e incisivos os sinais da emergência, no Brasil, na América Latina e no mundo, de novos sujeitos sociais que já não aceitam atuar a reboque das determinações de um único sujeito, seja quem for. Acena-se vivamente para a reivindicação de um protagonismo de forças plurais, desde que sintonizadas com a mesma causa transformadora e seus respectivos instrumentos de luta.
Ver, especificamente a esse respeito, o exemplo dos Zapatistas, a partir mesmo do modo como esse Movimento costuma subscrever seus escritos, que vêm assinados, não pelo “comandante”, mas pelo sub-comandante, num reconhecimento explícito da soberania das classes populares cuja organização transcende (embora continue incluindo) o protagonismo das forças partidárias.
Isto é mais um sinal de que está superado o recurso a uma força partidária como “a” condutora do processo de construção de uma sociabilidade alternativa. Por mais que se reconheça a relevância de um instrumento político especial, capaz de coordenar, de modo mais orgânico, o processo de transformação sócio-histórico, já não faz mais sentido atribuir-se a um único partido – seja qual for – toda a responsabilidade do protagonismo, nas decisões relevantes de todo o processo. As experiências recentes e menos recentes se apresentam suficientemente significativas quanto à necessidade de se ensaiar um instrumento político de novo tipo.
Nesse processo alternativo, o ensaio de um instrumento político de novo tipo – ao qual voltaremos, no tópico seguinte - vem estreitamente vinculado a um outro elemento essencial constitutivo do mesmo processo. Referimo-nos ao processo formativo, que tem jogado, não por acaso, relevante papel na consolidação de militantes conscientes, comprometidos, serenos, aguerridos e perseverantes.[4] Nesse terreno, a Educação Popular na perspectiva freireana se revela o lugar por excelência da formação dos Movimentos Sociais Populares comprometidos com as lutas por uma nova sociedade.
Isso é fato, em relação a um número proporcionalmente considerável de seus membros, sobretudo da direção e de coordenadores de setores de coordenação intermediários e, em menor proporção, também para membros da base. Sucede que, por conta inclusive das limitações infraestruturais, e à medida que vão crescendo tais Movimentos, e expandindo-se por todo o País, dificilmente estão à altura de assegurar, satisfatoriamente, a todo o conjunto de seus membros. Seu compromisso de universalizar o processo formativo e de fazê-lo com qualidade social resulta bem aquém do desejável. Ora, tal situação implica conseqüências, ocasiona lacunas e disparidades, com rebatimento no desempenho e nas relações político-educativas do cotidiano. Quem não tem condições de avançar no processo formativo, passa a ter um perfil político-educativo distinto dos companheiros a quem são asseguradas as condições de formação desejáveis.
Um dos distintivos desses Movimentos Sociais Populares aqui estudados, em especial do MST, tem sido sua aposta no exercício da Mística, como parte relevante do processo formativo de seus membros. O exercício da Mística representa um momento denso de rememoração histórica do exemplo de sujeitos (coletivos e individuais), cuja trajetória de luta muito contribuiu para o avanço da causa das classes populares. Constitui, também, um privilegiado espaço favorável à renovação interior dos compromissos e da fidelidade com as lutas sociais, com a classe trabalhadora do Brasil, da América Latina e de todo o mundo. Em tempos de crise, porém, não é surpresa que tal elemento venha sofrendo arranhões por parte da militância. Para quê isso? Isso já não teria tido seu tempo? Não terá virado mera repetição, uma simples rotina? Ainda faz sentido priorizar a Mística, nos Movimentos Sociais Populares?
Vale, também, questionar critérios duvidosos utilizados no processo de adesão ao Movimento – Em virtude de uma necessidade de caráter estatístico, como meio de “atestar” o crescimento e a força do Movimento, não raro, pode ocorrer um afrouxamento nos critérios que devem orientar o processo de adesão dos novos membros. É certo que, às vezes, em razão das próprias condições de marginalização a que vivem submetidas as camadas populares urbanas, parte-se para uma relativização desses critérios, favorecendo uma seleção sumária dos novos membros. Dadas as diferenças de perfil dos novos membros – boa parte dos quais sem qualquer familiaridade com a questão rural, além dos valores contraditórios incorporados no dia-a-dia das periferias urbanas, marcadas de profundas ambigüidades -, com o passar do tempo, vai-se revelando um complicado desafio nas relações com a maioria dos componentes de perfil distinto, sob vários aspectos.
            Como se percebe, é longa a lista de desafios. Por certo, vai muito além do leque acima levemente enunciado. Não obstante, é possível, a partir deles, ter-se uma idéia de que tipo são, para um enfrentamento mais eficaz. A partir daí, vamos buscar refletir sobre os mesmos, buscando aportar algum tipo de contribuição, em forma de algumas apostas.

3. Movimentos Sociais Populares em busca da construção de um dissenso alternativo

            Diante desse quadro, será mesmo possível romper e superar esse ciclo de consenso ideológico, e, ao mesmo tempo, envidar esforços para tecer fios de um dissenso alternativo, traduzido em práticas concretas? Em que consistiria essa aventura? Que condições ela supõe e como assegurá-las? Há sinais efetivos apontando nessa direção? Eis algumas das inquietações que nos ocuparão, neste tópico.
Podemos iniciar dizendo em que tal aventura NÃO deveria consistir. Não se trata, por exemplo, contrapor idéias a meras idéias, isto é, de apenas contraditar a lógica dominante com meros argumentos discursivos em favor de nossa posição. Até que isso pode se dar, desde que nossa prioridade seja a de responder por atitudes.
Também, não se trata de apostar simplesmente no surgimento de novos integrantes, aos quais se delegaria a hercúlea tarefa de pretensamente tocar, “de outro modo”, a organização das instâncias do(s) movimento(s) e forças sociais comprometidas com o processo de transformação, tendo como base apenas o novo perfil ético-político dos novos dirigentes, sem alteração substantiva das estruturas em que vão atuar. Neste caso, corresponderia a algo semelhante a investir-se na eleição de novos candidatos partidários, com a pretensão de que, por se tratar de candidatos novos ou mesmo politicamente bem preparados, iriam dar conta da missão...
A esse propósito, vale a pena recorrermos a experiências recentes e menos recentes: quantas vezes - e com que amplitude! - foram “renovadas” Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas, Câmara Federal, Senado (em até mais de 50%)? Não tardamos a perceber, entre frustrados e indignados, que mudar o perfil dos eleitos, mantendo, porém, a estrutura, de pouco ou nada vale, a não ser para legitimar o sistema perante as mesmas forças dominantes.
            Essa aventura não há de consistir, tampouco, em seguir apostando, sem mais, por exemplo, no processo eleitoral em vigor. Em outro recente artigo (Calado, in Scocuglia e Jezine, 2006: 289-314), dedico algumas páginas especificamente a tentar compreender o sentido e a relação custo-benefício das  campanhas eleitorais, fazendo perguntas do tipo:

Quanto tempo passam os brasileiros ocupados com os processos eleitorais, cujo ritual, embora se realize oficialmente em cerca de três meses, implica, no mínimo, um ano de movimentações? Que estimativa é possível fazer-se quanto ao volume de recursos financeiros e outros empregados, antes, durante e depois de cada campanha eleitoral? De onde vêm esses recursos? No exame acurado da relação custo-benefício, do ponto de vista das classes populares, qual o resultado? Quem ganha com as eleições? No caso de quem admite vantagens político-sociais no processo eleitoral, questionamos também sobre os gastos eleitorais, no âmbito nacional, na esfera estadual e no plano municipal: caso fosse aplicado todo esse volume de recursos (somando-se os contabilizados e os não contabilizados) em políticas sociais, o que daria para construir? (p. 294).

            Esse processo se acha visceralmente viciado, do ponto de vista das classes populares. Só comporta meros “reparos”. Equivaleria a pôr remendo novo em pano velho: resulta inútil. Só para citar um único exemplo, o da chamada “Lei contra a corrupção”. Não faz muito tempo, foi organizada, como se sabe, uma ampla campanha anti-corrupção eleitoral, encabeçada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e organismos a ela ligados, visando a mudar a legislação, de modo a fortalecer os mecanismos de fiscalização, denúncia e punição dos envolvidos em falcatruas eleitoreiras. Passados alguns anos de sua vigência, qual mesmo o resultado efetivo dessa Lei?
            O que está em questão é a natureza própria do sistema com seu processo dito democrático, tal como exercitado nas Democracias ocidentais, comprometidas, inclusive,  em seu respectivo instrumento político, monopolizado pelos partidos políticos convencionais. A despeito do intenso bombardeio permanente dos aparelhos ideológicos (inclusive a ação eficaz da mídia), a justificarem as graves falcatruas do sistema, como se fossem devidas a meros excessos individuais (de parlamentares, por exemplo), ou a fatores circunstanciais, têm-se ouvido, aqui, ali, vozes socialmente relevantes a acenarem para o esgotamento, inclusive, do atual “modo de produção e de consumo”, como ainda recentemente ponderou Leonardo Boff, em entrevista concedida ao IHU, da UNISINOS: “Hoje não apenas os pobre gritam, mas também as águas, as florestas, os animais e a prória Terra, sob a agressão sistemática do modo de produção e consumo globalizado.” (cf. entrevista integral em www.adital.com.br , acesso em 15/08/2007). Documentos ainda recentes produzidos por órgãos da, ou ligados à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a exemplo do resultante do “Seminário do Mutirão pela Superação da Miséria e da Fome”, que data de 2002, alertam para a necessidade e urgência de se defender as “fontes de vida” (terras, águas, florestas, ar, etc.), o que implica defender seu caráter público, frontalmente oposto aos critérios de mercado baseados na privatização inclusive de tais bens.
Para tanto, também não se trata de mudar os membros dirigentes componentes dos partidos ditos de esquerda, sob a alegação de que se trata de “crise de direção”. É sabido que nossa história política recente (e menos recente), notadamente no que toca aos partidos políticos, é pontilhada de casos de dissidências e de rupturas, seguidos de recomeços proclamados instituintes que, tempos depois, parecem reeditar a trajetória de fracassos. Veja-se o exemplo dos partidos de esquerda brasileiros de maior tradição. O PCB, inicialmente, e já a partir dos anos 60, o PCdoB apresentam uma lista apreciável de dissidências, de dissidências da dissidência, de rupturas, sem que se toque o âmago do problema: sua estrutura interna, sua relação com as demais forças protagonistas.
Não raro, certo tempo depois, no seio do próprio grupo dissidente, começam a aparecer vozes dissonantes que, ao se avolumarem, passam a instalar novos elementos de ruptura. Essa também é uma dinâmica movida pela dialética entre o instituído e o instituinte. Nossa aposta, porém, é de que tal tendência não é uma fatalidade. Tem, antes, a ver com sua natureza histórica. Se as coisas têm sido conduzidas assim, isto não quer dizer que tenham que se dar assim, eternamente. Isso vai depender da capacidade dos protagonistas, de, reconhecendo os passos viciados do processo, ousarem passos alternativos, compatíveis com o horizonte alvejado. Daí nossa aposta de tentar outros caminhos, até porque, as coisas não mudam espontaneisticamente, como lembrava Marx (em sua terceira tese a Feuerbach): as circunstâncias precisam dos humanos para serem transformadas...
            Se bem repararmos no caráter da trajetória das tentativas pretensamente instituintes, é possível observar-se que essas pretensas rupturas têm mais a ver com re-opções de caráter tático em relação a procedimentos avaliados como dissonantes ou contraditórios. Um atestado disso pode ser, por exemplo, a crença inalterada no poder de transformação centrado, única ou quase exclusivamente, no núcleo dirigente das forças partidárias. A anunciada ruptura se daria fundamentalmente por discordâncias em relação a atitudes arbitrárias de indivíduos ou de um pequeno grupo. Corrigidas aquelas, o instrumento político estaria de novo apto a cumprir seu papel...
Pretender-se mudar esse rumo, sem tocar substantivamente na estrutura, equivaleria a reeditar equívocos, por exemplo, praticados em alguns embates feministas com ênfase exacerbada no mero ascenso formal de mulheres a cargos públicos de chefia, abrindo-se mão de uma dinâmica alternativa de organização e de exercício de poder, no âmbito inclusive das relações de gênero. Ou seja: não basta lutar-se para que mulheres ocupem cargos que hoje são monopolizados por homens, caso venha a ser mantida a dinâmica piramidal de exercício do poder. Se assim continuar sendo, apenas faz-se uma mudança de homens por mulheres, como acontece (ainda que timidamente) no Parlamento, mantendo-se, porém, intacta a estrutura do exercício do poder. Importa, sim, mudar a natureza das relações!
Mais: mesmo quando se dizia que as decisões anunciadas procediam “do Partido”, este era reduzido a uma pequena instância, composta por uma meia dúzia ou até menos. Tudo em nome do “Centralismo democrático”! Centralismo, sim, não há dúvida. Agora, quanto a ser “democrático”, mesmo do ponto de vista do conjunto das instâncias partidárias, isto era outra coisa! Estão aí “n” relatos de experientes dirigentes desses Partidos, ao alcance de quem quiser conferir: de Gregório Bezerra a Jacob Gorender – só para citar dois nomes.
Por uma razão ou por outra, o fato é que se tratava de decisões graves, tomadas por uma pequena minoria de dirigentes, em nome do Partido e das forças aliadas e até em nome da Classe Trabalhadora... Essa via parece esgotada, no presente quadro histórico, o que não quer dizer que vá desaparecer, como por um golpe de mágica. Mas, quem pode negar que “nessa estrada, há mais caminhantes”? Ou seja, não faz mais sentido agir assim, sem contar com o efetivo protagonismo nas decisões de bem mais gente, além do conjunto do Partido X ou Y. Há outras forças (principalmente os Movimentos Sociais Populares) que exigem participar, em pé de igualdade, com forças partidárias, das decisões maiores que lhes digam respeito, direta ou indiretamente. Para bem além dos partidos convencionais – inclusive os partidos de esquerda -, é inevitável reconhecer o protagonismo de forças não-partidárias, desde que efetivamente comprometidas com o rumo, os caminhos e as posturas características de um Projeto de construção de uma sociabilidade alternativa.
Até aqui, lidamos mais com aquilo em que não deve consistir essa aventura institinte. É chegada a hora de passarmos a discutir a consistência da aventura proposta.
Assim, começamos por afirmar que a disposição de reconhecer sinais de esgotamento, no atual contexto sócio-histórico, do potencial transformador (sob o ponto de vista das forças de esquerda) dos partidos convencionais não implica a negação do reconhecimento do papel específico de um partido político como um dos protagonistas-chave do processo de transformação das relações macro-estruturais.
            Pois bem, no caso específico do contexto atual, é ou não razoável falar-se no surgimento de uma esquerda de novo tipo, que não esteja condenada a reproduzir a trajetória das experiências precedentes? A seguir, reconhecendo embora o caráter ainda prematuro da hipótese, arriscaria alguma palavra apontando para a possibilidade de uma tal empreitada.
            Nossa atenção agora se volta para uma organização societal que, em vez de ter na figura do Estado e seus respectivos aparelhos sua base estruturante da vida social, econômica, política e cultural, como tem sido uma marca inevitável a toda sociedade de classes, a exemplo das sociedades ocidentais com suas democracias representativas, venha a centrar sua força organizativa num novo Sujeito Político, formado pelos conselhos populares (ou que outros nomes lhes sejam atribuídos: tribos, comunas, “soviets”, células, núcleos, pequenas comunidades de base, brigadas, etc.).
Até em sua etimologia (do vocábulo latino “Consilium”; no plural: “Consilia”, desde o verbo “Cónsulo”, de que também se origina “Consulta”), os conselhos têm a ver com consulta para fins de decisão. Mas, não basta por certo uma referência etimológica. Nossa justificativa apóia-se em algo mais concreto e mais de fundo. Recorre, por exemplo, à memória histórica de povos de diferentes lugares e épocas. E o fazemos sem qualquer propósito de reeditar ou de copiar tais experiências. Tratamos, antes, de recolher o espírito de seu fecundo legado. Não nos move o desejo de reverter ao seu tempo. Vivemos em lugares e tempos distintos, com desafios novos. Não por acaso, temos aludido, com freqüência, ao lema de um candidato petista, na campanha eleitoral de 1986: “Nem o passado como era, nem o presente como está.” Rememorar o passado da Humanidade significa para nós examinar experiências exitosas e sombrias, em busca de extrair lições de ambas as situações, buscando colher delas o que de melhor puderem oferecer-nos, guardadas as singularidades e circunstâncias histórico-culturais.
É assim que nos aventuramos a examinar o passado, pois, como lembra Eduardo Galeano, “O passado tem muito a dizer ao presente”. No caso de experiências de organização societal baseadas em conselhos ou instâncias similares, temos que remontar a priscos tempos. Temos conhecimento de algo semelhante, na história do povo hebreu anterior à monarquia, aproximadamente entre os séculos XIII e IX a.C. Referimo-nos à experiência das tribos de Israel. À parte suas especificidades de contexto histórico remoto, as antigas tribos de Israel tinham traços de conselhos. Sua experiência de organização societal não passava pelos aparelhos de Estado, de feição piramidal, como posteriormente passaram a viver os hebreus, a partir da instalação da monarquia.
Mais tarde, as comunidades cristãs primitivas, em que pese imersas num contexto estatal, ensaiaram passos alternativos que encantaram até pensadores marxistas ateus, a exemplo de Engels. Os cristãos formavam um agrupamento alternativo de comunistas, dentro daquele contexto histórico específico. Experiência sufocada pelo ascenso da alta hierarquia usurpadora dos direitos dos pobres, a partir do período do Imperador Constantino, com a celebração do pacto entre trono e altar.
Na própria Idade Média, quando foi tão intenso e terrível o controle exercido pelo poder eclesiástico, despontaram relevantes movimentos de resistência e com propósito utópico, alternativo àquela ordem dominante. Dentre eles, podemos citar os Albigenses. (cf. Calado, 1999).
Em nossa própria história, registramos a densidade do imaginário popular, em relação a experiências de lutas sociais e movimentos indígenas, negros e populares como o dos Guaranis, o de Palmares, o de Canudos, entre outros. O mesmo se passa em relação a outras experiências similares em outros povos de distintos continentes. Não é nosso propósito aprofundar este aspecto, aqui e agora.
            De todos os modos, chamamos a atenção para experiências de um novo Sujeito Político organizado em conselhos bem mais recentes, atinentes ao período da contemporaneidade, mais precisamente a partir da experiência da Comuna de Paris. Somada a outras concebidas pela gesta da Pedagogia Socialista[5], a que se somam as contribuições de figuras como Rosa Luxemburgo e Gramsci, entre outros, vamos encontrar densos elementos de inspiração, sem com isso insinuar qualquer pretensão a repeti-las. O que desejamos é recuperar sua memória, e delas recolher elementos de inspiração para os desafios presentes.
Entendemos que cabe a esses conselhos, ciosos de sua autonomia relativa e de sua corresponsabilidade cogestionária – desde que reconhecendo-se como protagonistas, co-partícipes de uma organização mais ampla (a organização societal da Classe do produtores e produtoras, de “todos-os-que-vivem-do-trabalho”) -, viabilizar o efetivo exercício de protagonismo nas decisões por parte do conjunto de seus membros, em todas as esferas de organização e em todos os passos do processo, numa perspectiva de formação omnilateral dos Humanos.
Na formação desses conselhos, há necessidade de se atentar, entre outros, para critérios tais como:
- flexibilização do número, conforme as circunstâncias concretas e a situação efetiva da caminhada dos protagonistas;
- assegurar elegibilidade e revocabilidade dos eleitos, tomando em consideração a vontade efetiva das instâncias de base;
- respeitar as diferenças de posições intraclassistas, preservada a unidade em torno dos interesses básicos da Classe Trabalhadora;
- buscar exercitar, de forma progressiva, o equilíbrio entre os distintos pólos das relações sociais de gênero;
- tomar em consideração a diversidade etária dos componentes do Instrumento Político;
- levar em conta as diferenças de natureza étnica;
- acolher membros com diferentes graus de experiência no Movimento e nas lutas sociais;
- Assegurar a participação no referido instrumento político de membros com diferentes graus de escolaridade;
- tomar em conta as distintas opções de credo religioso ou filosófico, desde que observados os interesses do conjunto da Classe Trabalhadora;
- contar com gente de diferentes procedências geográficas;
Também para nós, continua de pé o reconhecimento da vigência do relevante papel do instrumento político (aqui tendo um sentido correspondente ao papel de um partido político, numa concepção gramsciana).
            Estamos aqui entendendo por “Instrumento Político” desse Projeto de construção de uma sociabilidade alternativa o coletivo que atua como principal instância de elaboração do plano de ação estratégica do Sujeito Coletivo, como meio organicamente articulado às diferentes instâncias de protagonismo, no processo de construção do Projeto Popular de transformação social. Entendemos que ao Instrumento Político devam ser confiadas tarefas tais como:
- identificar e analisar, de forma atualizada, os principais desafios colocados pela conjuntura sócio-histórica e política;
- examinar a correlação de forças predominante em face aos projetos fundamentais em disputa;
            Na explicitação do sentido aqui proposto de Instrumento Político, já vários figuram elementos constitutivos do que se entende por Instrumento Político. Mesmo assim, vale a pena sublinhar suas características principais:
- instância executiva referencial do Sujeito Político;
- elaboração do Plano de Lutas, conforme as deliberações das instâncias competentes do Sujeito Político, a começar pelas instâncias de base;
- articulação das instâncias de base;
- observância dos critérios de representatividade, elegibilidade, revocabilidade pelas instâncias de base, assegurada a efetividade do princípio de alternância de cargos e funções dos membros de todas as instâncias do Sujeito Político.
            Num tal desenho de alternatividade societal, não tem lugar para a reedição de práticas, valores e situações atinentes ao modelo dominante, nas diferentes esferas da realidade. Não faz sentido, por exemplo, pensar em “ajustar” o velho esquema ou mesmo elementos estruturantes do velho esquema ao projeto societal que se quer inaugurar. Só por fragilidade e limites provisoriamente invencíveis de seus protagonistas, cogita-se em reeditar o velho esquema. Por exemplo, não faria sentido em reeditar a estrutura do salariado. Viver de salário implica necessariamente compactuar com a velha ordem, hegemonizada pelas relações patrão-empregado. Trabalho toma outro sentido para o conjunto dos membros da nova sociedade. Diferentemente do contexto capitalista ou de qualquer outra sociedade de classes, fica para trás o sentimento de Trabalho como penúria, para caminhar em direção à autoprodução dos Humanos, em todas as suas dimensões (cósmica, ecológica, econômica, política, cultural, espiritual, lúdica, afetiva, existencial...).
Aqui, o Trabalho deixa de implicar a velha dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual, intrínseca à lógica capitalista e de qualquer sociedade de classes.
            Seres integrais fazem de um tudo: preparam comidas, alimentam-se, brincam, estudam, trabalham (com as mãos e com a cabeça), planejam, executam, avaliam, namoram, produzem e curtem Artes e Cultura, lêem, escrevem, debatem, decidem, plantam, limpam, cozinham, passam pano, passam a ferro, lavam, cuidam das crianças, das plantas, dos animais, curtem a Mãe-Natureza, reverenciam o Sagrado...
            Tudo isso, claro, é um passo de uma longa e incessante caminhada, cujo caminho, como lembra Machado, se vai fazendo ao caminhar. Trata-se de uma aventura utópica, na direção já apontada por outros, entre os quais Moisés Gonçalves, ao explicitar seu conceito de Utopia:

Utopia em nossa abordagem tem, portanto, a conotação de busca do inexistente, construção possível de uma outra forma de ser e estar na sociedade, “horizonte de sentido”, a partir da ação coletiva. Sinaliza “outros mundos”, perseguidos na práxis. (Gonçalves, 2005, p. 36)

Mesmo assim, tão acostumados nos quedamos à rotina que o sistema nos impõe, que só falar essas coisas suscita até deboche: “Isso é viajar demais!”. Felizmente, sonhar faz parte da condição humana! Como vamos ousar enfrentar e vencer as agruras do cotidiano de barbárie que esse sistema não cessa de espalhar, se não ousamos o “inédito viável”? Mais: pensar Utopia não significa entregar-nos, passivos, a uma longa e tediosa e inútil espera. Trata-se de, no que está ao nosso alcance, antecipar essa Utopia, tratando de vivê-la já, da forma que podemos, ainda que seja em termos moleculares, mantendo a tensão Blochiana (Ernst Bloch) entre o “Já” e o “Ainda não”.
            Esse utópico esboço instituinte requer, por certo, um perfil de militantes que corresponda aos desafios e exigências sócio-históricas, de modo a romper com as práticas e concepções ainda largamente dominantes. Trata-se, por exemplo, de militantes que
- primem, no plano subjetivo, pelo seu desenvolvimento integral, buscando aprimorar, de forma dosada e incessante, todas as suas potencialidades de ser cósmico e de ser humano;
- sejam pessoas profundamente amorosas, apaixonadas pelo Povo, não importando que país ou região habite, e pela nossa Casa Comum, a Mãe-Natureza;
- sejam capazes de recuperar a primazia da perspectiva classista sobre quaisquer interesses de segmentos particulares, do âmbito local ao internacional, ou melhor dito, capazes de experienciar nos embates locais sua dimensão internacional, ao tempo em que, ao participarem de lutas internacionais, são capazes de perceber as implicações locais;
- se refontizem incessantemente da força revolucionária da memória histórica, recuperando lutas, façanhas e conquistas do passado e respectivos protagonistas;
- não abram mão do persistente exercício de crítica e auto-crítica;
- sua permanente disposição à autocrítica, alimentada pelo contínuo exercício da mística revolucionária, os ajuda sobremaneira a tornar viva e eficaz, enquanto intervenção presentificada, a memória histórica, de modo a não engessarem num passado longínquo e estéril suas referências de luta e de militância;
- ao apreciarem com carinho a memória e o testemunho exemplar de revolucionários e revolucionárias de ontem e de hoje, cuidam de evitar transformá-los em “gurus”, preferindo apostar mais na causa, no projeto, do que em seus protagonistas, e se a estes também prestam reverência, o fazem na medida em que encarnam o projeto;
- constante acompanhamento crítico da realidade social, mediante o recurso a fontes fidedignas, em função do que tratam de aprimorar suas estratégias de intervenção;
- efetiva vigilância no sentido de assegurar condições irrenunciáveis do protagonismo dos distintos segmentos da sociedade civil, em sua luta de libertação;
- no relacionamento com as pessoas e grupos de base, saibam pôr em prática uma pedagogia da escuta, aprendendo com os outros e buscando também exercer sua dimensão docente;
- tenham consciência de que a qualidade de sua aposta na Utopia é constantemente testada na oficina de tecelagem do Cotidiano, a partir dos gestos minúsculos e aparentemente invisíveis;
- sejam pessoas fortemente desinstaladas e desinstaladoras, ao mesmo tempo inquietas na tomada de iniciativas, e profundamente serenas, nos momentos de crise e de impasse;
- estejam conscientes de que navegam sobre águas revoltas, e quase sempre navegam à contra-corrente, o que implica uma postura ao mesmo tempo firme e serena de lutadores sociais;
- mostrem-se efetivamente empenhados no seu processo de formação continuada, nas distintas dimensões do cotidiano e da vida pessoal e grupal;
- exercitem, a cada dia, a mística revolucionária, em virtude da qual asseguram a renovação de seu compromisso ético-político, no horizonte de uma Utopia libertadora.
            Isto não se consegue da noite para o dia. É obra de grande fôlego, individual e coletiva. Tem sua historicidade e, portanto, curso e ritmos diferenciados. Importa, a essa altura, perguntarmos sobre que condições podem favorecer esse Projeto? Examinemos algumas possíveis pistas, nessa direção, notadamente no campo da Educação Popular.
Temos consciência de que daquele ímpeto instituinte que inspirou as lutas sociais e os Movimentos Sociais Populares, além das forças político-partidárias e sindicais do final dos anos 70 e começos dos anos 80, restou muito pouco. E o que restou, com raras exceções, parece facilmente assimilável pela ordem dominante, e até mesmo funcional à mesma. Os embates eleitorais podem ser citados como um exemplo disso. O que, antes, era assumido como mera tática, à qual se recorria como espaço de denúncia e de propagação das idéias de mudança, se erige, cada vez mais, em ferramenta principal de ação e de intervenção social. O que era mera tática ganha foros de estratégia, ameaçando mesmo confundir-se com a finalidade perseguida por tais forças. De fato, em não poucos casos, eleição se converte num fim em si mesma, sinônimo até mesmo daquilo que outrora se tinha como “Revolução”...
O próprio processo eleitoral, que antes era assumido como tática, também vem sendo desfigurado. Se, antes, atentava-se para requisitos preliminares tais como análise da conjuntura, formas de luta a serem assumidas (dentre elas, o processo eleitoral), definição da estratégia e correspondente tática a ser posta em prática na campanha eleitoral, definição dos parceiros, aliados e adversários, programa de governo, perfil de candidatos para o quadro em questão, para só então se definir quais os nomes, hoje, virou moda “queimar-se” todas etapas, para ir-se direto aos nomes... E com uma agravante: já não se fala mais em candidatura do Partido, mas em candidatos que passam a postular candidatura como projeto pessoal... Daí para o nivelamento aos “partidos da ordem” foi um pulo. Eis por que, a rigor, não deveria surpreender a um(a) analista atento(a) o triste desfecho. Os escândalos ético-políticos são um desdobramento quase inevitável desse quadro...
Nesse sentido, um enfrentamento exitoso desses desafios nos remete ao esforço de mutirão, no sentido de criarmos condições sociais favoráveis na mesma direção. Indiquemos algumas pistas, nesse sentido.
- Buscar conhecer bem o nosso chão. De fato, um primeiro passo, nessa direção, pode ser ousarmos uma melhor compreensão do caráter do processo de globalização em curso. Sem um olhar crítico sobre o atual quadro sócio-histórico, em escala mundial, parece inútil insistir nas ferramentas convencionais a que se recorre para o enfrentamento com maiores chances de sucesso teórico-prático dos desafios do atual momento. Compreender melhor o caráter do processo produtivo, os projetos de sociedade em disputa, seus respectivos protagonistas, suas estratégias e táticas, suas potencialidades e limites, corresponde a um pré-requisito para uma bem sucedida análise de conjuntura, na perspectiva da classe trabalhadora.
            Se, antes, já não bastava atribuir-se mecanicamente tudo ao “velho imperialismo”, sem análise objetiva da evolução do Capitalismo, muito menos hoje se trata de reeditar tal equívoco. O cenário é mais complexo, é mais confuso, tanto da parte dos parceiros e aliados, quanto da parte das forças adversárias ou inimigas. Por exemplo, reduzir os adversários apenas ao “Imperialismo dos Estados Unidos” como o cerne do problema já não parece uma tese convincente, na medida em que, no atual contexto, mais do antes, os conglomerados transnacionais têm assumido uma influência cada vez mais decisiva, inclusive sobre as grandes potências estatais. A idéia de Marx de Estado como “comitê” do Capital parece bem atual, sobretudo no que concerne aos Estados periféricos do Capitalismo.
As potências centrais – Estados Unidos à frente – seguem sendo de grande relevância na tomada das grandes decisões, mas sempre subordinadas e articuladas e a serviço dos interesses dos grandes conglomerados transnacionais, por meio também dos organismos multilaterais, não se devendo superestimar o papel de nenhuma potência estatal, isoladamente, em detrimento do protagonismo das grandes corporações e dos organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC, a própria ONU)... Ficou notória, por ocasião do segundo massacre perpetrado pelas grandes potências contra o Iraque, a orgânica colaboração de pelo menos parte desses grandes conglomerados transnacionais, alguns dos quais concentram riquezas equivalentes às de várias nações somadas.
            No que concerne, por exemplo, aos organismos multilaterais, tal é seu poder de fogo, que, em vários países periféricos, a formulação de políticas sociais, antes da alçada dos Estados nacionais, passou a ser prerrogativa do Banco Mundial, conforme assinalamos anteriormente. Fatos como este há de chamar a atenção dos Movimentos Sociais Populares com projeto alternativo de sociedade, no sentido de que ampliem o seu raio de ação, de modo a orientar suas lutas para bem além das fronteiras nacionais. De fato, as lutas puramente locais perdem força transformadora, contribuindo inclusive para o agravamento do viés reformista, hoje em moda.
- Revitalizar o ímpeto instituinte - Um outro passo capaz de potencializar as ações dos Movimentos Sociais Populares comprometidos com a construção de uma sociabilidade alternativa é a retomada do combate à tendência burocratizante de suas organizações, sobretudo no âmbito das direções e coordenações intermediárias. Vale lembrar, a propósito, que as principais conquistas obtidas se deveram, fundamentalmente, a essa característica instituinte, ao mesmo tempo em que, ao contrário, à medida que esses Movimentos Sociais foram cedendo ao fascínio do atalho dos espaços institucionalizados (perda ou redução da autonomia, arrefecimento da independência de classe, encantamento pelos espaços governamentais, implicando alianças duvidosas em troca de vantagens sedutoras, tais como facilidades de créditos, vistas grossas a deslizes ético-políticos dos parceiros e aliados, ou de membros das próprias fileiras), maior investimento nas campanhas eleitorais, perda do vigor crítico e auto-crítico, entre outros).
            Mas, na prática, em que consistiria mesmo essa revitalização do ímpeto instituinte? Sem qualquer pretensão a receita, é possível elencar alguns procedimentos apontando nessa direção, tais como:
* recuperar e fortalecer o horizonte classista, por meio de atitudes tais como: ampliação da agenda para além de demandas apenas de um Movimento, em favor de uma prática que, sem abandonar suas reivindicações específicas, tenha seu principal foco nas lutas do conjunto da classe trabalhadora do campo e da cidade;
* investir maciçamente, e de forma crescente e qualitativa, no processo de formação do conjunto de seus membros, não apenas de uma parte. Formação para além da educação escolar, de modo a implicar uma formação integral, omnilateral, que seja capaz de desenvolver todas as potencialidades  dos seus membros, numa perspectiva humanizadora;
* revisitar os bons clássicos da Pedagogia Socialista (os “utopistas”, os marxistas, Pistrak, Makarenko, Gramsci...), bem como os contemporâneos da Educação Popular (Paulo Freire, Carlos Rodrigues Brandão, Miguel Arroyo, Ivandro da Costa Sales, João Francisco de Souza, Reinaldo Fleuri, Maria Valéria Rezende, Roseli Caldart, entre tantas e tantos outros, só para mencionar alguns do Brasil), não com o objetivo de reproduzi-los, mas de neles colher inspiração, na perspectiva de reinventar práticas e caminhos alternativos aos desafios de hoje, à grade de valores hoje dominante;
* exercitar a memória histórica, por meio da Mística, de modo a reavivar a memória  de lutas de movimentos passados e contemporâneos, bem como de figuras do Povo que atestaram e atestam fidelidade à causa dos-que-vivem-do-trabalho;
* superar a armadilha dos instrumentos da Democracia burguesa, a exemplo do envolvimento desproporcional em campanhas eleitorais, cujos resultados fundamentais amargamos, desde nossos bisavós, e podemos conhecer por antecipação...
* pôr em prática, como ponto de honra, o mecanismo da alternância ou rodízio de cargos e funções, permitindo a quem é de base ter acesso a funções e cargos de coordenação, e a quem já cumpriu funções administrativas ou de coordenação voltar a atuar na e como base;
* articulado ao mecanismo da alternância de cargos e funções, cumpre sublinhar o processo de radicalização democrática, ao interno do Movimento, de modo a implicar, por exemplo, a descentralização das decisões, por meio da atuação orgânica e decisiva dos organismos de base, qualquer que seja o nome que se lhes dê (conselhos, células, brigadas...).;
* promover o exercício das artes, em suas mais distintas expressões, favorecendo a descoberta e o desenvolvimento dos talentos a serviço do coletivo;
* intimamente ligado ao exercício das artes, tão ao gosto da Educação Popular, importa, de um lado, fazer um bom uso de múltiplas linguagens (música, poesia, teatro, desenho, fotos, vídeo...), superando a tendência tão generalizada do monopólio da oralidade ou da escrita, perpetuando uma das menos felizes heranças ocidentais; e, por outro lado, fazer uso de uma linguagem compreensível pelos educandos interlocutores (José Comblin refere-se, com freqüência, a esse cacoete academicista tão excludente);
* aprimorar das relações de espacialidade, tanto as que se referem ao cuidado do Planeta, quanto às que dizem respeito às características culturais, ligadas às procedências regionais (quem é da capital em relação a quem é do interior; quem é da cidade em relação a quem da roça; quem mora no centro da cidade em relação a quem mora na periferia; quem é do Norte/Nordeste em relação a quem é da região Centro-Sul; quem é do Brasil em relação a quem é da Bolívia; e assim por diante. Nesse terreno, ainda há muito chão a andar, tendo em vista os preconceitos praticados e nem sequer percebidos...
* exercitando o respeito às opções filosóficas e religiosas dos seus membros.
Retomando a alusão à relevância do processo de formação, convém ainda justificar o
caráter dessa formação, recorrendo, por exemplo, aos clássicos da Pedagogia Socialista, completados por bons pensadores e pensadores da atualidade.
Limitando-nos à época contemporânea, destacam-se valiosas e fecundas experiências, a exemplo da proposta pedagógica da Comuna de Paris, inspiradas na Pedagogia Socialista elaborada por pensadores como Owen, Fourier, além de Marx e outros. Robert Owen (1771-1858), por exemplo, mostrou-se um dos pioneiros na formulação da Pedagogia pelo Trabalho. Na avaliação de um especialista nesse estudo,

Sua pesquisa pedagógica visa, em primeiro lugar, a formação de uma nova sociedade... e, portanto, o desaparecimento da sociedade atual (a do começo do século XIX), fundada na desigualdade dos homens. A nova sociedade rejeita e suprime a propriedade privada, a concorrência, a divisão social do trabalho que produzem “a pobreza, a ignorância, as conspirações, as oposições, a exploração, o crime, a miséria, as fraquezas do corpo e do espírito.” (Gérard Chauveau, 1998).[6]

            De modo semelhante a tal formulação apresenta-se a contribuição de Charles Fourier (1772-1837), que se batia por uma educação unitária, polivalente, apta a desenvolver, de modo harmonioso, todas as capacidades individuais, no contexto do exercício do trabalho “liberado” e voltado para as necessidades da nova sociedade ou da sociedade “futura”. Eis por que

A concepção de Fourier repousa num conjunto de preocupações psicológicas, morais, econômicas. A educação deve desenvolver, desde tenra idade, os pendores e as inclinações naturais da criança, assegurar livre curso às suas capacidades psíquicas e intelectuais, estimular o gosto pelo trabalho produtivo. (...) [Suas teses] denunciam, pois, o ensino oficial europeu do século XIX por duas razões principais: os filhos dos operários contentam-se com conhecimentos rudimentares da escola, desgastando-se pela exploração do trabalho; os filhos dos burgueses são submetidos a um ensino escolástoco e educados no desprezo ao trabalho produtivo. (CHAUVEAU, 1998).[7]


Como se percebe, aí se acha explicitada outra dimensão fundamental dessa Pedagogia, que é a indissociabilidade entre trabalho manual e trabalho intelectual, em relação à qual também Marx se mostrará enfático, ao defender uma educação que assegure às crianças, aos adolescente e aos jovens, conforme sua faixa etária, aprendizagem intelectual, educação física e participação no trabalho produtivo.
Muito antes de, em O Capital, em que sublinha a distinção básica do trabalho humano (o exemplo mencionado foi o do arquiteto), em relação às atividades de outros animais (a aranha, a abelha), Marx já chamava a atenção para a dimensão social do trabalho, em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, ao afirmar, por exemplo, que:

Mas, mesmo quando eu atuo cientificamente, etc., uma atividade que raramente posso levar a cabo em comunidade imediata com outros, também sou social, porque atuo enquanto homem. Não só o material de minha atividade – como a própria língua, na qual o pensamento é ativo – me é dado como produto social, como também meu próprio modo de existência é atividade social, porque o que eu faço de mim, o faço para a sociedade e com a consciência de mim, enquanto um ser social. (MARX, [1844] 1974, p. 16)

Pistrak e Makarenko são, a justo título, referências de destaque, no campo da Pedagogia Socialista. Contemporâneos, nascidos, ambos, na cultura soviética, no final do século XIX, apresentam-se como Pedagogos de reconhecida contribuição. Seja no campo da Educação Formal (Pistrak), seja no terreno da Educação não-formal (Makarenko), ambos sublinhavam a importância do Trabalho no processo formativo. O Trabalho, numa concepção marxiana, voltado para o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas, a serviço da construção de uma nova sociedade, protagonizada por um novo homem e uma nova mulher.[8]
Na primeira parte do século XX, tem sido uma outra referência de peso a contribuição de Antonio Gramsci, cuja obra, sobretudo após os anos 60, vem tendo uma repercussão impactante, no campo da pesquisa em Educação. Basta revisitar a vasta literatura produzida e publicada, por exemplo, pela revista Educação e Sociedade, com inspiração nele.
As teses de Gramsci, entre outros, revigoram, de modo fecundo, o campo da Educação Popular, juntamente com autores como Paulo Freire e outros. Nesse sentido, a produção do MST tem em Freire uma forte inspiração.
Em orgânica sintonia com a questão educativa, está o desafio da comunicação para os Movimentos Sociais Populares. Como romper o cerco do pensamento único, poderosamente veiculado pela mídia convencional? Como assegurar fontes alternativas de comunicação a serviço das classes populares, dos Movimentos Sociais? É certo que alguns destes já vêm logrando relativo sucesso em seus bons ensaios de comunicação de massa: jornais, revistas, boletins eletrônicos, páginas na Internet, etc. Mas, qual será mesmo o alcance desses veículos? Como ampliar seu alcance sócio-pedagógico, de modo a que um contingente cada vez maior de protagonistas, comprometidos com o Projeto de construção de uma sociabilidade alternativa, venha a fazer um bom uso, não apenas informativo – o que já representa um bom passo -, mas sobretudo formativo?

Considerações sinópticas

            Ensaiamos trilhas de peregrinos e peregrinas, que se sentem relativamente confortados por terem uma boa noção do horizonte aonde pretendem chegar, em que pese a necessidade de irem fazendo caminho, ao caminharem. Sentimento de desinstalação que a busca de alternatividade sempre implica. Buscamos empreender uma reflexão que nos provoque passar do consenso ideológico ao dissenso alternativo. Não tanto por força de novo discurso bem tecido, mas buscando na prática a força dos argumentos. Tratamos de recuperar algumas facetas mais impactantes da atual ordem dominante. Sublinhamos uma certa mudança na postura de entidades ligadas ao status quo, que têm passado a admitir, por razões distintas, algum hiato entre o por elas “proposto”, em termos de macro-políticas, e o efetivo resultado das mesmas. Se antes se limitavam a negar ou a silenciar acerca de dados cada vez mais contundentes que atestam uma involução da qualidade de vida de bilhões de seres humanos e do Planeta, eis que, premidas pela gritante realidade dos fatos, começam a ceder (em palavras), reconhecendo o óbvio antes negado.
            Enquanto isso, emerge um desafio pouco ou nada esperado: a mudança de atitude ético-política de relevantes segmentos das forças populares. Antes comprometidos com a construção de um projeto alternativo de sociedade, com o passar do tempo e com as primeiras conquistas no terreno institucional, passaram a transigir cada vez mais em relação ao seu horizonte maior, e dispondo-se a apostar cada vez mais nos espaços institucionais (pela via das conquistas eleitorais e dos espaços governamentais e parlamentares), o que implicou progressivo abandono das lutas sociais e dos movimentos sociais, com os quais antes caminhavam de perto.
            Buscamos elencar uma série de elementos que, ao nosso ver, não apenas contribuíram para forjar as condições sócio-históricas de tal redirecionamento ético-político, como concorreram efetivamente para o esgotamento de um “ciclo” das forças de esquerda (no caso, a esquerda partidária), protagonizado pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados (partidários, sindicais, eclesiais, de alguns movimentos populares, etc.).
            O terceiro tópico deste texto foi dedicado a esboçar novas possibilidades sócio-históricas, em moldes alternativos. Um primeiro passo, ainda trôpego, ainda prematuro, mas, de todos os modos, anunciando sinais de um novo tempo, desta vez apostando no potencial de uma sociabilidade alternativa, protagonizada por um novo Sujeito Político, cujo perfil vai bem além de (embora passe por) espaços partidários de esquerda, cujo foco de organização vai beber sua força maior na experiência dos Conselhos Populares, com toda uma nova cultura política que os sustenta e lhes dá sustentação. É um ensaio de um novo mutirão. Valerá mesmo a pena apostar nesse caminho, como expressão de um dissenso alternativo ao que aí está?




Referências


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__________________. A esquerda brasileira face ao neoliberalismo: riscos de domesticação. In: Política Operária, n. 69, Lisboa, maio-junho, 1999, pp. 19-20.

__________________. Memória Histórica e Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa:Idéia, 1999.

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_________________. Tecendo saberes em busca de uma sociabilidade alternativa. In: CALADO, Alder J.F. & SILVA, Alexandre M.T.da. (Orgs.). Desafios da produção de saberes político-educativos. João Pessoa: Idéia/ Caruaru: Edições FAFICA, 2004b, pp. 9-24.

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SILVA, Rita de Cássia Curvelo da. “Práxis Política no MST: produção de saberes e formação omnilateral de Gente”. Texto apresentado para o exame de qualificação ao doutoramento, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB, João Pessoa, setembro, 2007.

João Pessoa, agosto de 2007



* Sociólogo e Educador Popular. Docente-Pesquisador no NUPESQ da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru – PE. Membro do Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisas. Autor de, entre outros, Direitos Humanos X Capital: potencializando a intervenção dos movimentos e organizações sociais de base. João Pessoa: Idéia, 2003. Acompanha a caminhada dos movimentos sociais populares e das pastorais sociais, no Nordeste, desde meados dos anos 60.
[1] No meado dos anos 80, quando se dava o auge da influência da Teologia da Libertação e da chamada “Igreja na Base” nos movimentos sociais e organizações de base, no Brasil e na América Latina, as forças reacionárias internacionais, dentro e fora da Igreja Católica, passaram à ofensiva. Seguindo a mesma orientação do “Documento Militar Secreto sobre a Teologia da Libertação”, produzido por ocasião de uma conferência das forças armadas do continente americano, realizada em Buenos Aires, em 1987, que alertava contra os “desvios” e a “manipulação” da Teologia da Libertação, eis que o Documento de Santa Fé II, fazendo eco ao Documento anterior, denunciava vigorosamente a “subversão interna” da Teologia da Libertação, face à qual já não se tratava mais de “ragir a posteriori”, sendo chegada a hora de combatê-la. Dessa mesma época é também a ofensiva do Vaticano, sob o papado de João Paulo II, contra a “Igreja na Base” (cf. DIAL. “Document militaire secret sur la théologie de la libération”, n. 1338, Paris, 22 de setembro de 1988; e INSTITUTO HISTÓRICO CENTROAMERICANO. Documento de Santa Fe II, in Envio, n. 1369, Nicarágua, dez.-jan. 1988; CALADO, Alder J.F. “Educação e Novos Movimentos Sociais: potencial, limites e perspectivas da Igreja na Base”. In: Revista Temas em Educação, n. 3, UFPB/Curso de Mestrado em Educação, João Pessoa, 1993, pp. 21-42.
[2]  Em referência a um artigo seu, de 1o de Maio de 1990, intitulado “Um amargo quarto de século, publicado no Jornal do Brasil, na mesma data. Indignado, Florestan Fernandes se queixava de, apesar de incessantes lutas, durante 25 anos, as coisas haviam se agravado para as classes populares...

[3] Tivemos oportunidade de nos remeter às contribuições de Weber e Troeltsch, por exemplo, em nosso artigo intitulado “A dialética instituído X instituinte: notas sobre a burocratização da esquerda brasileira. In: CALADO, Alder J.F. (Org.). Por uma Cidadania Alternativa. João Pessoa: Idéia/ Caruaru: Edições FAFICA, 2004, pp. 11-30.
[4] Ver, entre outras pesquisas recentes, a realizada por Rita de Cássia Curvelo da Silva, cuja tese (em vias de conclusão) intitulada “Práxis Política no MST: produção de saberes e formação omnilateral de Gente”, aborda a formação omnilateral de gente no MST, considerando-se os saberes produzidos nas diferentes formas de práxis dos Sem Terra, mas com ênfase para a práxis política: formas específicas de luta – mobilização, organização e ação coletivas – por terra e reforma agrária. Com base nas dimensões intelectual, afetiva, volitiva e atitudinal desses saberes produzidos, analisar-se-á a formação de sujeitos epistemológicos, psicológicos, éticos, estéticos, conscientes e participantes, atentando para as dificuldades e contradições desse processo educativo.”

[5] Ver, por exemplo, CHAVEAU, Gerard. L´école du travail dans la pensée ouvrière, Ville École Intégration, n. 113, juin 1998.
[6]Sa recherche pédagogique vise en premier lieu la formation d’une nouvelle société… et donc la disparition de la société actuelle (celle du début du XIXe siècle), fondée sur l’inégalité des hommes. La nouvelle société refuse et supprime la propriété privée, la concurrence, la division sociale du travail qui produisent " la pauvreté, l’ignorance, les conspirations, les oppositions, l’exploitation, le crime, la misère, les faiblesses du corps et de l’esprit " (CHAUVEAU, ib.)
[7]Cette éducation se veut " unitaire et intégrale-composée ", " polyvalente " et " achevée " : elle vise à la fois le développement harmonieux de toutes les capacités humaines et la préparation de l’individu au travail " libéré " et aux besoins de la société " future " (que Fourier appelle garantiste). La conception fouriériste repose sur un ensemble de préoccupations psychologiques, morales et économiques. L’éducation doit développer dès le jeune âge les penchants et les instincts naturels de l’enfant, donner libre cours à ses capacités physiques et intellectuelles, stimuler le goût du travail productif.”  (...) “Elles dénoncent donc l’enseignement officiel dans l’Europe du XIXe siècle pour deux raisons majeures : les enfants d’ouvriers se contentent des connaissances rudimentaires de l’école primaire et s’épuisent au travail exploité ; les enfants des bourgeois sont soumis à un enseignement scolastique et élevés dans le mépris du travail productif.
[8]  A Editora Expressão Popular conta com um excelente acervo de textos de bons clássicos, entre os quais um de Pistrak: Fundamentos da Escola do Trabalho. No começo dos anos 80, a Editora Brasiliense havia publicado esse texto, com uma densa introdução de M. Tragtenberg. (cf. Revista Espaço Acadêmico, Ano III, No 24, - Maio de 2003: www.espacoacademico.com.br/024/24mt1981.htm )

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