Em memória de Octavio Ianni
Alder Júlio Ferreira
Calado*
Não
é segredo que estamos chegando aos limites da tolerância - se já não os
tenhamos atingido -, no que tange ao incessante agravamento do atual quadro
social e político brasileiro. A uma eventual cobrança de justificativas a esse
respeito, tendo a responder, apelando para o refrão de uma canção, que, cheio
de indignação cívica, costumava ouvir, nos sombrios anos 70: “Não há
considerações gerais a fazer/ Tá tudo aí/ Tá tudo aí/ Para quem quiser ver...”
A
despeito de reconhecer avanços pontuais, no varejo, pergunto, com efeito, se
haveria mesmo necessidade de reavivar a memória do leitor/da leitora - neste
caso, pela enésima vez -, quanto ao agravamento de índices decisivos tais como
concentração de terra, de renda e de riquezas, desemprego, déficit de moradias,
compressão salarial, especulação financeira, política de juros (inclusive com
lucros escorchantes e acintosos dos bancos), índice de falências, recessão,
desenfreado crescimento da violência social, em breve, uma cadeia de índices
sócio-econômicos e políticos dando conta do progressivo aviltamento da
qualidade de vida dos Humanos e do Planeta, do caráter, da extensão e do ritmo
do crescente empobrecimento da maioria da população.
A
propósito, sempre que escrevo sobre isso, me vem logo à lembrança o teor de um
artigo escrito por Florestan Fernandes, no Jornal do Brasil, de 1º de
maio de 1989, intitulado “Um amargo quarto de século”, analisando o saldo de
vinte e cinco anos do Brasil de 1964 a 1989, no qual externava, a justo título,
seu sentimento de revolta, ao constatar, perplexo (a despeito de sua longa
experiência como sociólogo em fazer análise de conjuntura), que as coisas não
apenas não haviam melhorado, como vinham até piorando.
À
semelhança do que se passou com Florestan Fernandes, sobre isso não deveria, em
princípio, haver surpresa para quem, por razões profissionais ou de efetivo
exercício de uma cidadania alternativa, vem acompanhando esse processo, já há
algum tempo. E não apenas no que concerne ao Brasil. No caso específico da
sociedade brasileira, é notória e bem festejada a astúcia dos setores
dominantes em sua arte de forjar as mais excêntricas situações de conciliação “por
cima”: sempre que suspeitam de alguma ameaça de mudança em curso, logo cuidam
de se antecipar, introduzindo leves e estéreis modificações, com o verdadeiro
propósito de manter intacto o essencial. Trata-se de mexer em algo secundário,
com a firme intenção de em nada mexer de substantivo. Se for o caso,
prontificam-se até a “perder os anéis”, contanto que não percam os dedos.
Sendo,
portanto, esta a reiterada prática da mais remota tradição dos grupos
dominantes de nossa sociedade, sua capacidade de forjar alianças, com o
propósito de inibir e de impedir qualquer mudança digna deste nome, em vários
períodos de transição (o caso das “Diretas-Já”, por exemplo, não terá sido o
último nem o mais recente...), nada, pois, haveria a estranhar, sob esse
aspecto.
Há, contudo,
algo de novo, no atual cenário: as principais forças que recentemente accederam
ao governo do país, se reclamavam abertamente, até há bem pouco, e ao longo das
últimas décadas, de esquerda, opostas, por conseguinte, à tradição
conservadora. A despeito de estranhas concessões, especialmente por ocasião dos
embates eleitorais, continuavam depositárias da mais ampla confiança das massas
trabalhadoras em seus propósitos declaradamente mudancistas, tendo sido
justamente este, seu principal trunfo na vitória eleitoral de 2002. E, no
entanto, agora no governo, pensam - e
sobretudo fazem - diferente , quando não mesmo ao contrário de quase tudo
em que diziam apostar...
Ainda
que essa guinada – que não se deu de forma tão abrupta, como pensam não poucos,
– comporte evidentes desdobramentos de natureza ideológica, ao presente artigo
interessam, antes, seus rebatimentos mais diretamente econômicos e políticos
sobre o cotidiano da vida dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, devendo,
desde já, assinalar que é a partir da perspectiva desses protagonistas, e não a
partir da ótica dos interesses do Capital, do G-7, dos organismos multilaterais
sob seu controle e de seus aliados, que importa interpretar os argumentos aqui
expostos.
Levantamos,
de início, alguns fatos considerados dos mais impactantes, a título de situar
os principais dilemas com que se tem defrontado a sociedade brasileira, no
(des)compasso do Governo Lula. Em seguida, tratamos de listar e comentar
algumas apostas presentes no atual cenário, seja as defendidas pelo atual
Governo, seja as reivindicadas por forças com propostas alternativas, após o
que se indicam riscos pertinentes a tais apostas. No final, nos perguntamos
pelo papel das forças que se reivindicam de uma esquerda alternativa, para além
dos espaços governamentais e parlamentares.
1. Dilemas expressos por fatos emblemáticos
Ninguém
desconhece o peso da “herança maldita” legada ao atual Governo, à qual,
contraditoriamente, dá.continuidade. A política econômica da era da globalização
dita neoliberal, implementada durante os oito anos do Governo Fernando Henrique
Cardoso, sem contar o período Collor de Mello, foi - todos sabemos – de voraz
privatização de parte substantiva do patrimônio nacional, de sucateamento e
desmonte das políticas sociais básicas, de crescente e acelerado endividamento,
de aprofundamento dos laços de sujeição em relação ao segmento mais parasitário
do Capital (o do setor financeiro), da veloz expansão da violência social,
entre outras marcas.
Não
faz muito, por ocasião de um Encontro Estadual do PT, na Paraíba, realizado em
outubro de 1999, foi da boca do então presidente do Partido, José Dirceu, que
partiu, a justo título, a indignada denúncia da sangria resultante do
pagamento, pelo Governo FHC, em ano anterior, de cerca de 100 bilhões de
dólares, desembolsados a título de pagamento dos serviços do endividamento.
Desembolso então considerado, com toda a razão, um escândalo.
Igualmente,
até há bem pouco tempo, era clara e firme a oposição do PT à implantação da
ALCA - Área de Livre Comércio das Américas, capitaneada pelos Estados Unidos.
Bastante significativo foi seu apoio inicial ao plebiscito promovido pelos
movimentos sociais populares e outros organismos da sociedade civil, primeiro,
sobre a dívida e(x)terna, e em seguida, sobre ALCA. As razões são bem
conhecidas. Trata-se, no fundo, de uma tentativa do Governo dos Estados Unidos,
de recolonizar ou, mais precisamente, de aprofundar os laços de sujeição dos
países do continente aos caprichos econômicos e políticos (com claros
desdobramentos militares e culturais) do Império. Eis que, de repente, os
dirigentes do PT mudaram de idéia, ao forçarem o Partido a retirar o seu apoio
à referida campanha. Pior: uma vez eleito Presidente da República, com uma votação
consagradora, com o compromisso de mudança, o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva
simplesmente aceita ser alçado à co-presidência da ALCA, lado a lado com o
Presidente Bush.
Antes
e durante a campanha presidencial, o então candidato Lula, expressando o propósito
de seu Partido, não se furtou a reconhecer o óbvio: o agravamento do desemprego
no Brasil. Mais: acenou para a meta de criação de dez milhões de empregos, até
ao final do seu Governo, aí incluída a chamada política do primeiro emprego, a
contemplar os jovens.
Uma vez eleito
presidente, em vez de buscar as reais condições de geração de emprego (o que
passa, entre outras medidas, pelo reexame da política fiscal e da política de
endividamento), tenta retificar, negando haver prometido, assumindo que teria
apenas reconhecido a necessidade de geração de semelhante contingente de novos
postos de trabalhos. Passados mais de 16 meses do Governo Lula, a situação do
desemprego não apenas se manteve, como até se tem agravado...
Fato
igualmente emblemático foi o que ocorreu ainda no curso da mais recente
campanha presidencial. Com o claro objetivo de algemar, por antecipação, os
candidatos de maior potencialidade eleitoral, o FMI trata de fazê-los firmar –
e, Lula à frente, todos accedem! – um acordo de fidelidade canina aos
compromissos assumidos pelo Governo FHC...
A
respeito de sua avaliação, no quadro da disputa eleitoral, também se
pronunciaria, em Caros Amigos,
Octavio Ianni (recém-falecido), um dos mais conseqüentes sociólogos
brasileiros. Posicionando-se em relação aos principais candidatos à
presidência, não hesitou em manifestar seu ceticismo, por lhe parecer clara a
efetiva impotência dos centros internos de decisão: não importando quem fosse o
eleito, o Brasil não passaria de um vice-reinado...
Eleito
presidente por uma maciça e estupenda votação, começa a se revelar mais
abertamente o peso do pragmatíssimo jogo de alianças, a partir mesmo da
composição de seu ministério, principalmente nos cargos-chave... Daí por
diante, já a ninguém mais deveria surpreender toda uma cadeira de medidas e
omissões, dentre as quais:
- fixação (inclusive para além do
formalmente exigido!) de meta generosíssima do superávit primário;
- observância escrupulosa da Lei
de Responsabilidade Fiscal, em virtude da qual os cofres públicos passam a ter
como finalidade central a de assegurar reservas destinadas ao pagamento dos
serviços da dívida;
- a pretexto de “honrar
compromissos” com credores, determinou até cortes suplementares no orçamento
das políticas sociais, afetando até o Projeto Fome Zero;
- vistas grossas para o
insuportável nível de concentração de riquezas e rendas no Brasil, em que,
conforme o Atlas da Exclusão Social – Os
ricos do Brasil, 45% das riquezas produzidas ficam concentradas nas mãos de
apenas 5 mil famílias. Número, aliás, correspondente a parte do que a mídia
costuma chamar servilmente de “o Mercado”, envolvendo proprietários de grandes
empresas e de grandes bancos como Bradesco, Itaú, Unibanco, HSBC, ABN Real,
Santander, Safra, Votorantim, Volkswagen, GM, Parmalat, Sadia, Nestlé, Globo,
SBT, Pão de Açúcar, Odebrecht, entre outros...
- celebração de acordos no
Parlamento, visando a formar maioria na Câmara e no Senado (e, por extensão,
nas Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, além de outros espaços governamentais),
sob critérios no mínimo suspeitos, do ponto de vista ético-poítico, a implicar
acordos com notórios grupos fisiológicos do Congresso;
- manutenção (ou redução
simbólica) da política de juros dos mais altos do mundo, antes tão combatida
pelo PT, a demonstrar sua relação privilegiada com o mundo financista;
- gestões feitas no sentido da
aprovação pelo Congresso da impropriamente chamada autonomização do Banco
Central (que selaria definitivamente nossa renúncia à soberania);
- desastrada condução do processo
de Reforma da Previdência, enfim aprovada para deleite do FMI e das empresas de
previdência privada;
- descumprimento das metas de
Reforma Agrária, abusando da paciência dos movimentos sociais do campo, o que
precipitou, este ano, o desencadeamento do “Abril Vermelho”, com dezenas de
ocupações por todo o país;
- completo abandono da meta de
geração de empregos, pelo menos na proporção sinalizada na campanha: em vez de
novos empregos, o que se viu foi o crescimento do desemprego...
- aposta equivocada no programa
conhecido como PPP (Parcerias Público-Privadas), não por acaso fortemente
“recomendadas” pelos organismos multilaterais como FMI e Banco Mundial, não
sendo tampouco por acaso que tenha figurado na “Carta de Intenções” do Governo
Lula ao FMI, assinada em novembro de 2003, envolvendo sérios riscos aos cofres
públicos e à nossa já combalida soberania;
- manutenção da política de
compressão salarial, haja vista o valor do “aumento” do Salário Mínimo...
- continuação da política de
desmonte e sucateamento dos serviços públicos, inclusive na pretendida reforma
universitária;
- empenho na reforma trabalhista,
passando pela reforma sindical, com o firme propósito de fazer o jogo do
Mercado, precarizando ainda mais as relações de trabalho já tão fragilizadas, e
cassando o que resta de direitos aos trabalhadores;
- participação no mínimo
reticente nas reuniões da ALCA, incluindo encontros com Bush; - - até com Blair
tem se encontrado o Presidente Lula, e com declarações lisonjeiras, mesmo
estando aquele sob o fogo cruzado das pesadas denúncias relativas à cruel
ocupação do Iraque;
- posição dúbia do Governo
brasileiro frente à invasão do Iraque, mantendo uma postura irenista (de paz a
qualquer custo, sem qualquer disposição de denunciar firmemente os ocupantes e
seus crimes contra os prisioneiros), contentando-se com reclamar a condução da
ONU, sem atentar para critérios éticos (por exemplo, em caso de autorização de
invasão por uma força internacional, o Governo brasileiro, ainda assim, apoiaria
a ONU incondicionalmente?);
- silenciamento ou complacência
sobre os horrores do terrorismo de Estado, praticado pelas forças invasoras,
cujo episódio trágico mais recente são as cenas de torturas infligidas por
soldados das tropas estadunidenses e inglesas às vítimas iraquianas.
Pergunta-se até que ponto tal comportamento do Governo brasileiro não se deve à
sua pretensão de integrar, em caráter permanente, o Conselho de Segurança da
ONU, em vez de questionar o verniz democrático da ONU, que continua a assegurar
a cinco membros do Conselho de Segurança (Estados Unidos, Inglaterra, França,
Rússia e China) o odioso privilégio do veto, pondo abaixo qualquer decisão
democraticamente tomada pelo conjunto das nações?
2 -Novas apostas: o que está por trás?
Mudanças
de tom, de acentos e até de procedimentos não deveriam constituir surpresa, no
complexo terreno das relações políticas. Autores como Max Weber e seu
contemporâneo Ernst Troeltsch, a partir de seus estudos sobre a evolução das
“seitas”, já haviam alertado para a tendência à burocratização manifesta por
grupos religiosos (“Seitas”, no sentido weberiano), portadores de
características hoje extensivas a alguns movimentos sociais que, ao irromperem
com práticas e discursos de ruptura da ordem vigente, à medida que, com o
passar do tempo, vão obtendo certas conquistas ou certos espaços de poder,
passam a amenizar, ou vão mesmo perdendo seu ímpeto inovador, característico de
suas origens.
Seria
isso característico apenas das seitas do passado? Ou teria, antes, que ver com
recentes movimentos sociais (inclusive sindicatos e partidos nascidos de
movimentos)? A que se deve tal comportamento: à natureza mesma desses
movimentos ou à forma como se organizam e intervêm nos espaços do cotidiano? O
que os faz mudarem de apostas? É o que tentaremos examinar, a seguir.
Já
durante a campanha presidencial, eram freqüentes as declarações irenistas por
parte do candidato, cuja postura não tardaria a ser definida como do gênero
“Lulinha – paz e amor” seria, enfim, a marca registrada da campanha. E para
além desta. E não apenas por razões táticas, o que, do ponto de vista
ético-político, já não seria aceitável. O candidato e o chamado núcleo duro do
PT, que cercava de perto o candidato, já haviam mudado de posição, a despeito de
reiteradas declarações em contrário. José Genuíno, alçado à presidência do PT,
não se cansaria de repetir: “Mudamos muito, amadurecemos, mas não mudamos de
lado.” Valem as palavras ou as práticas? O que estaria por trás dessas (novas?)
apostas?
Alcançar o Governo como meta central
Em princípio,
nada de novo há na aposta tão característica dos partidos políticos, como a de
alcançar o Governo. Desde os primeiros passos do então Movimento pró-PT – para
não recuar a outros períodos de nossa história - esta aposta figurava
certamente nos sonhos daqueles protagonistas. Sonho, aliás, de todo partido
político, independentemente de seu horizonte político. Nem mesmo os partidos
revolucionários, salvo exceções ditadas pela conjuntura, recusaram esse
caminho.
Tampouco
surpreende que os partidos convencionais, indo bem além disso, persigam o
Governo inclusive como sua meta central. Tem sido assim nas democracias
ocidentais, razão maior, aliás, do firme engajamento dos seus quadros nos
periódicos embates eleitorais.
Não era esse,
porém, o entendimento do PT das origens. Chegar ao Governo, sim, mas não a
qualquer preço. A meta central era a construção de uma sociedade alternativa –
justa, solidária, socialista. A esse respeito, farta é a documentação
produzida, discutida e aprovada nas diferentes instâncias do PT, a começar
pelos seus documentos fundantes. Esse, o horizonte que alimentava a mística de
seus militantes. Fosse outra sua aposta, e teria conquistado o Governo, já há
muito tempo. A diferença é óbvia. As razões, não menos.
O
abandono do critério da subordinação da conquista de espaços governamentais ao
projeto de construção de uma sociedade socialista está por trás da aposta
atual. Ainda quando alguns dirigentes e parlamentares teimam em reafirmar seu
propósito “socialista”, suas práticas falam mais alto. E são essas, as que
contam.
Progressivo nivelamento aos partidos burgueses
Sobre esta
questão, venho refletindo, já há algum tempo (cf. Calado, 1997; 1999; 2003).
Sobretudo a partir de meados dos anos 90, partilhando idéias com outros
estudiosos diante de contextos semelhantes, como o de Portugal (cf. Rodrigues,
1997; 2000), já não me anima mais apostar, em semelhantes conjunturas, na
eficácia transformadora da ação parlamentar. Os espaços governamentais e parlamentares
vêm se transformando, mais do que nunca, em campo minado para a ação
instituinte, na perspectiva dos “de baixo” (para usar uma expressão cara também
a Florestan Fernandes). Os argumentos já são conhecidos.
Relegado o
horizonte socialista, o resto vem por acréscimo. Com efeito, no caso do PT
(mas, não apenas o PT), após os primeiros embates do Partido, nos anos 80, à
medida que iam sendo conquistados postos no Parlamento e em outros espaços
governamentais, crescia o insaciável apetite por cargos e funções, e, com ele,
o progressivo abandono dos critérios e apostas antes seguidos. Há toda uma gama
de práticas que foram tomando conta do cotidiano do Partido. Lembremos algumas:
- o processo eleitoral (e com
ele, toda uma vasta gama de conseqüências) passou a ser o foco central – por
vezes, o único – dos dirigentes e de parte significativa da militância;
- o afastamento das lutas e dos
movimentos sociais por parte de expressiva maioria de militantes, agora mais
afeitos às lides governamentais, confirmando assim a tendência ao viés
burocratizante, em prejuízo do caráter instituinte,
até então predominante;
- nada desprezível é o número dos
que trocaram os embates classistas por fratricidas disputas internas por cargos
e posições, seja nos espaços parlamentares/governamentais, seja na máquina
sindical;
- o maciço investimento do(s)
partido(s) no processo eleitoral surtiu efeitos significativos em pelo menos
duas direções:
a) no âmbito
estritamente eleitoral: a cada campanha eleitoral realizada a cada dois anos, a
esquerda partidária (PT e seus aliados) lograva uma expressiva ampliação de
seus quadros, tanto nas instâncias parlamentares quanto nos espaços
governamentais ligados ao poder executivo
b)
no plano ético-político: abandono de práticas e discursos classistas;
distanciamento dos princípios que inspiraram a fundação do(s) partido(s);
abandono dos critérios que orientavam o(s) partido(s) a ser(em) construído(s)
pela base (a prática da atuação nos núcleos nos locais de trabalho e moradia);
progressiva tendência à centralização do poder em certos nomes ou instâncias
privilegiadas; crescente descompromisso dos filiados em relação à manutenção
financeira do(s) partido(s), passando este(s) a ser(em) mantido(s) basicamente
pelos eleitos, o que, na prática, implica a vigência do conhecido “Quem come do
meu pirão, prova do meu cinturão”; afrouxamento dos critérios de filiação
partidária; progressivo agravamento da síndrome do aliancismo; inobservância
dos critérios democráticos que, nos primeiros tempos, regiam a formação dos
comitês eleitorais unificados; desvairada concorrência interna entre os
candidatos, conforme a lei do mais forte ou do mais esperto; financiamento de
fontes no mínimo duvidosas; conchavos celebrados à base de interesses futuros
(do tipo “eu o apóio agora, e você me apóia nas próximas eleições”);
descolamento dos candidatos e dos eleitos em relação ao controle democrático
do(s) partido(s); estrelismo e briga pela auto-reprodução do mandato (com vasta
infraestrutura assegurada ao titular do mandato, a serviço dos interesses
individuais dos eleitos, tal como pelo figurino dos partidos “da ordem”)...
- crescente deslumbramento pelas
instâncias parlamentares/governamentais, que passam a ser tidas mais como fins
em si mesmas do que como instrumento de luta, o que é atestado, por exemplo,
pelo apego ao mecanismo da reeleição permitindo a uma única pessoa o exercício
de sucessivos mandatos;
- transformação do exercício
parlamentar (ou de outros espaços governamentais), que é uma eventualidade da
condição de cidadão, em carreira profissional, mediante sucessivas reeleições,
implicando, na prática, abandono de sua condição de trabalhador / de
trabalhadora;
- progressivo descompromisso
do(s) partido(s) com o processo de formação política de seus militantes;
- por último, mas não menos
relevante, convém sublinhar o enorme impacto
político-pedagógico da influência direta ou indireta exercida por alguns
milhares desses militantes/dirigentes sobre milhões de trabalhadores espalhados
por esse País...
Desnecessário
lembrar que os sinais acima mencionados não devem ser atribuídos à totalidade
dos militantes/dirigentes. Há, por certo, nesse(s) partido(s), quem aja
diferente. As costumeiras exceções que não infirmam a regra. Contudo, mais do
que registrar exceções no âmbito dos indivíduos, trata-se aqui de examinar,
antes, o caráter institucional. E, sob este aspecto, torna-se difícil não
generalizar.
Fábrica de justificas
Sob o fogo
cruzado das reiteradas cobranças das bases, face à progressiva mudança de rumo,
arma-se um verdadeiro arsenal de justificativas de duvidoso poder de persuasão.
Não prometemos fazer a revolução –
Cobrar ou esperar do PT, especialmente do seu núcleo dirigente, um programa
revolucionário seria passar atestado de cegueira política. O que se esperava do
PT, uma vez tendo alcançado o governo – o governo, não o poder! - era que pusesse em prática suas promessas de
campanha, por força das quais seu candidato recebeu aquela retumbante votação,
em relação a políticas tais como democratização da terra, emprego, salário,
defesa da soberania, combate à especulação, melhoria da qualidade dos serviços
públicos essenciais. Nenhuma dessas políticas extrapola a alçada de um governo
reformista, atento aos seus limites constitucionais. Até as forças adversárias,
mesmo não concordando, esperavam isso do Governo do PT. O que se tem,
entretanto, não é a revolução lulista que ninguém esperava, mas o simples
descumprimento das promessas de campanha. É, no essencial, ou pelo menos em
pontos fundamentais, a mais descarada continuidade da política de FHC, a
propósito do que afirma, a justo título, Ivonaldo Leite: “A situação chegou a um tal ponto que,
recentemente, muitos foram obrigados a engolir a seco a declaração de FHC
segundo a qual, no Governo, ele teria sido mais esquerda do que o PT”. Sem que
isso implique, evidentemente, qualquer apreço aos dois períodos do Governo
FHC...
Não nos cobrem antes do tempo. Vamos
cumprir tudo o que prometemos, mas não durante os quatro anos do nosso Governo
– Até aos cem primeiros dias do Governo Lula, insistia-se em que não se deveria
fazer um juízo apressado do seu desempenho, de modo a reivindicar resultados
imediatos. Em vários debates, de que participei, naquela ocasião, tive a
oportunidade de externar que não teria nenhuma dificuldade em esperar o tempo
que fosse necessário, para que se cumprissem os passos, na direção das
promessas da campanha, por força das quais Lula havia sido eleito.
O que me
inquietava, então – e depois, muito mais – era precisamente a direção dos passos
dados: quase todos sinalizando na direção oposta ao prometido. Como, ao menos
no essencial, dar conta do programa de governo, anunciado à exaustão, durante a
campanha, com aquele perfil de ministério, notadamente nos cargos-chave? Que
diferença fundamental havia entre Armindo Fraga e Meireles, à frente do Banco
Central? Instalado o Governo, não tardaria a despontar toda uma série de
medidas apontando na direção inversa à prometida e esperada. Inclusive a
disposição do Governo de, na questão do superávit primário, ir além do exigido
pelo FMI...
Recebemos uma herança maldita. – E,
contudo, contra todas as vozes dos aliados mais conseqüentes, teima em manter a
medicação (ou o veneno?) antes administrada, que levou o país à bancarrota. A
quem interessa a implementação de tal estratégia? Aos trabalhadores do campo e
da cidade? Aos setores médios da sociedade? Aos setores industriais, dos quais
é porta-voz o Vice-Presidente? Ou interessa, antes, ao setor mais parasitário
do Capital, o do mundo das finanças? Interessa, sim, ao FMI e demais organismos
multilaterais representantes dos interesses dos grandes conglomerados
transnacionais e do G-7, à frente o Governo dos Estados Unidos.
Nós temos uma história – Uma das
justificativas mais freqüentes – de que se tem, aliás, abusado – remete os
críticos do PT ao passado do Partido e de seus dirigentes. “Olhem a nossa
história. Nós temos um passado que merece respeito.” Ao que consta, o PT e seus
dirigentes passaram a ser respeitados pelo seu passado de lutas, de fidelidade
aos interesses da classe trabalhadora. À medida, porém, que suas práticas foram
se distanciando desse horizonte, nada mais natural do que a mudança conseqüente
de sua apreciação. Nisso não há a menor injustiça. O passado dessa gente
continua sendo reverenciado, enquanto se guardou fidelidade à causa da classe
trabalhadora.
Parafraseando
um conhecido texto de Bertolt Brecht, que reverencia os lutadores do povo,
considerando sua maior ou menor constância na luta (“Há homens que lutam um
dia, e são bons. Há outros que lutam um ano, e são melhores. Há aqueles que
lutam muitos anos, e são muito bons. Porém, há os que lutam toda a vida, esses
são os imprescindíveis.”), continuarão merecendo respeito e reverência aqueles
e aquelas que, de um modo ou de outro, deram sua contribuição ao processo de
emancipação dos que vivem do trabalho. Mas, é natural que, à medida que
práticas colaboracionistas e até nocivas à classe trabalhadora vão se
instalando e se contrapondo claramente às do passado reverenciado, esses protagonistas
vão perdendo a reverência e o respeito da classe trabalhadora, até porque são
outros, pelo menos objetivamente, os interesses a que passam a servir, e outros
também os que os respaldam e elogiam...
3. Toda aposta comporta riscos e responsabilidades
Seja
como for, num contexto de grandes incertezas e instabilidade, não se deve
esperar uma travessia sem riscos, qualquer que seja a estratégia adotada.
Também
uma aposta em outros protagonistas comportaria riscos. Será que vingaria, sem
mais, a determinação de alguns dirigentes que se obstinassem, por exemplo, a
exigir uma auditoria sobre a dívida externa, à revelia das forças vivas da
sociedade brasileira? Ou a romper com o FMI, dessa maneira? Claro que riscos
haveria, de todos os modos.
Não
se nega que uma eventual decisão do Governo brasileiro (será que ainda teria
tempo, além de vontade política?), de ousar outro discurso perante o FMI (ainda
que não fosse de ruptura) e outros organismos similares, no sentido de
repactuar a questão do endividamento, comportaria algum tipo de risco. A mídia
servil logo passaria a falar em “calote”, os telejornais ficariam repletos de
declarações de represália por parte dos organismos multilaterais e de
representantes do G-7, os banqueiros entrariam em cena com seu agressivo jogo
midiático. Isso, porém, é mesmo impeditivo? Por acaso, não foi essa a história
do movimento operário-camponês, em todos os tempos, inclusive nos primeiros
tempos do PT? Por acaso, uma ação instituinte não tem preço algum a pagar? Tem
que agradar a todos? Impossível: “Ninguém pode servir a dois senhores”.
De
se esperar seria, sim, que o Governo fosse respaldado pelo grito das ruas, por
aqueles mesmos que o elegeram justamente para que fossem cumpridas as promessas
de campanha, que todos já conheciam, inclusive os adversários. A propósito,
nossos co-irmãos argentinos, em condições muito mais fragilizadas que as
nossas, têm tomado atitudes de altivez frente à voracidade do FMI e seus
patrões. Nem por isso a Argentina foi devastada.
Por
que não uma atitude mais firme em relação à repactuação do endividamento (que
pessoalmente não reconheço), à Reforma Agrária, à recusa de participar da ALCA,
à política de juros, à recusa de independentização do Banco Central, à política
de emprego, à questão salarial, à política de habitação, às reformas do Estado,
na perspectiva dos trabalhadores do campo e da cidade?
Riscos
sempre há. A alternativa melhor parece a que menos riscos ofereça, do ponto de
vista dos protagonistas em que se aposte. No caso do Governo Lula, esperava-se
que tal aposta recaísse em favor dos setores majoritários da sociedade civil, e
não, como objetivamente vem ocorrendo, em benefício dos protagonistas do
Capital, com a agravante de tratar-se do seu setor mais parasitário, ainda que
não propriamente dissociado dos demais setores do Capital.
Por
conseguinte, no caso de o Governo continuar apostando no investimento no
Capital especulativo; no caso de continuar apostando no receituário do FMI e do
Banco Mundial; no caso de continuar a apostar na impropriamente chamada
autonomização do Banco Central (na verdade, mais um ato de renúncia à
soberania); no caso de continuar apostando (com ônus para o erário e sobretudo
com ônus ético) nos votos da maioria fisiológica do Congresso; no caso de continuar
apostando na ALCA; no caso de continuar a apostar em reformas do Estado, na
perspectiva das forças do Capital, entre outras apostas, assume o Governo
múltiplos e pesados riscos, cuja responsabilidade será cobrada, no seu devido
tempo:
- comprometerá o tão prometido
desenvolvimento sustentável;
- não terá como cumprir sua meta
de Reforma Agrária;
- em vez de combater as causas e
reduzir-lhe o impacto perverso, contribuirá efetivamente para o agravamento do
desemprego, haja vista que já se estimam em mais de 70% os trabalhadores que
sobrevivem da economia informal, com todas as conseqüências perniciosas,
inclusive a receita tributária e da previdência social;
- contribuirá ainda mais com o
sucateamento e desmonte dos serviços públicos essenciais;
- sucumbirá ao plano de
aprofundamento dos laços de assujeitamento político e econômico aos ditames do
Capital, inclusive de sua parte mais parasitária;
- continuará sendo elogiado pelo
FMI, por Bush e cia., e começará a ser odiado pelos protagonistas das classes
populares, que não tardarão a perceber e a cobrar pelo tamanho da infidelidade;
- precipitará a ira dos
deserdados, cuja fome e decepção os levarão ao desespero e os farão explodir,
haja vista o que se pode prever da ação de milhões de desempregados, de sem
teto, de sem terra, enfim, de centenas de milhares de trabalhadores sem
condições mínimas de assegurar sua dignidade.
4. Ainda há lugar para uma esquerda que se queira conseqüente?
A
onda burocratizante que se instalou, nos últimos anos, nos espaços governamentais,
parlamentares, sindicais e outros agentes da sociedade civil que, em outros
tempos, haviam jogado um papel relevante na animação das lutas e movimentos
sociais, parece haver triunfado, em definitivo. Haveria, então, alguma chance
de tentar se reverter esse quadro, buscando-se recuperar os sobreviventes dessa
maré? Onde estariam eles e elas? Eles existem, sim, e se acham resistindo nos
mesmos espaços desgastados pela tendência burocratizante, responsável pela
frustrada tentativa de engessamento e imobilização dos movimentos sociais. Está
aí o “Abril vermelho” para atestar. Pode-se, então, perceber aí a presença de
pessoas e pequenos grupos a resistirem firmes, descontentes que se sentem com
os “novos” rumos, que já nascem envelhecidos.
Há, sim, os
descontentes que se manifestavam por meio de discursos irados, por vezes
bombásticos; e há quem prefira expressar sua ira de maneira mais discreta nas
palavras e mais eloqüentes em seus gestos. Trata-se de pequenos grupos
espalhados por distintos espaços sociais, dentro e fora das instâncias
oficiais, dentro e fora dos partidos de esquerda; dentro e fora das instâncias
sindicais; dentro e foram dos espaços eclesiais; dentro e fora dos movimentos
sociais...
Se o rótulo da
vinculação institucional não constitui o critério definidor do perfil de um
partido alternativo de esquerda, então que iniciativas passam a apontar, nessa
direção? Vejamos, em seguida, alguns desses elementos.
Sinais definidores de uma esquerda alternativa
Se
em outras dimensões da vida humana e social, já não se concebe um esforço
identitário pré-definido, acabado, posto que os Humanos, como seres
perfectíveis que são, vivem mergulhados no plano histórico, no terreno político
tampouco é razoável pretender-se uma identidade pronta. Vale a mesma orientação
para a tentativa de um esboço de alguns traços identitários de uma esquerda que
se pretenda comprometida com a alternatividade, inclusive no âmbito partidário.
Para
começo do esboço, cumpre ter sempre presente a direção dos seus passos. Se, de
fato, se pretende construir um projeto de sociedade no campo da
alternatividade, isto é, que se contraponha claramente à sociabilidade
capitalista, cada passo (individual ou coletivo) deve refletir atitude de
inevitável combate às práticas e à grade de valores da ordem dominante
(individualismo, oportunismo, concentração de poder em mãos de poucos,
concorrência, acomodação ao status quo,
apego desmedido a cargos e funções concentrados em uma única pessoa ou num
pequeno grupo, recusa à autocrítica, etc.) e, ao mesmo tempo, de compromisso
com a construção de relações alternativas, pautadas por valores que apontem em
direção oposta aos da ordem imperante (decisões tomadas pela base, direção
colegiada, alternância de cargos e funções, espírito crítico e autocrítico,
postura de autonomia em relação aos dirigentes, recusa da prática dos métodos
combatidos nos inimigos, coerência entre prática e discurso, fidelidade
continuamente testemunhada aos interesses das classes populares, inclusive em
situações de clara infidelidade cometida pelo partido ou coligação, etc.)
Pelo
que ficou acima esboçado, percebe-se que rumo e procedimentos se acham de tal
modo afinados, que transgredir um implica inobservância do outro. De um lado,
merece toda a atenção o ensinamento da personagem José Dolores, do famoso filme
“Queimada” – “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e
não saber para onde ir”; por outro, não devemos medir esforço em perceber que o
jeito de caminhar no rumo almejado diz muito da intenção e da postura
ético-política do caminhante.
No
que concerne ao rumo em construção, o horizonte de quem se põe a caminho, numa
perspectiva de esquerda, não poderia ser outro senão o da classe trabalhadora
ou, como costuma expressar Ricardo Antunes, “os-que-vivem-do-trabalho”.
Contribui
nesta direção o partido que, ininterruptamente e de modo transparente, aposta
na força transformadora do protagonismo das classes populares. E, ao
permanentemente dar prova de sua fidelidade à classe trabalhadora, não concilia
com, nem sucumbe à prática – hoje moeda corrente – do aliancismo, do
colaboracionaismo ou dos conchavos interclassistas.
Nos escritos
produzidos ao longo de sua vida, Paulo Freire, sempre que analisava a
conjuntura, costumava lembrar ou explicitar uma verdade freqüentemente
esquecida por segmentos que se pretendem de esquerda: a de que se torna
impraticável a quem quer que se pretenda favorável aos interesses da classe
trabalhadoras, não se pronunciar contrário aos interesses dominantes, implicando
uma postura de denúncia e oposição aos interesses dos setores dominantes.
No
âmbito parlamentar, vez por outra, estamos a ler ou a escutar alegações
autojustificativas de mandatários, em relação a atitudes e votos que contrariam
suas declaradas posições de defesa dos interesses das classes populares.
Declarações do tipo;”Eu votei, porque o partido fechou questão” ou “Embora eu
tenha votado contra, eu recebo aquela verba, porque se não, ela fica para o
Estado, e outros vão fazer mau uso da mesma.”
Depois
de sucessivas ameaças, alguns parlamentares do PT terminaram sendo expulsos,
porque se recusaram a votar contra notórios compromissos históricos do Partido.
A direção do PT tentava justificar – e continua justificando - que dentro do
Partido há liberdade de opinião, mas, na hora do voto, todos devem fidelidade à
posição assumida. Critério que estimula atitudes esquizofrênicas, à medida que
induz que as pessoas externem uma opinião logo desmentida pela prática do voto:
falar, podem à vontade, desde que ajam em contrário...
Contradição
que pode ser observada, também, em posições corporativas freqüentes nas lides
sindicais com viés burocratizante, em que, sob o pretexto de se lutar pelos
interesses da categoria “x”, “y” ou “z”, não raro se perdem de vista os mais
elementares interesses do conjunto da classe trabalhadora. Por exemplo, em vez
de se fortalecer a luta em defesa do Sistema Único de Saúde (e de outras
políticas públicas), parte-se para a defesa e adoção de planos de saúde
paralelos....
Outro
traço que compõe o perfil de um partido alternativo acena para a formação de um
partido-movimento, cujo maior emblema passa a ser o da figura de um peregrino,
que faz do conjunto dos Humanos sua família, e do Planeta sua pátria, sem que
isso implique qualquer perda de seus traços identitários (de subjetividade, de
gênero, de espacialidade, de etnia, de idade, de cidadania, de condição
profissional, de sua condição de ser cósmico e de sua relação com o Sagrado).
Em suma, um partido-movimento necessariamente anticapitalista e, ao mesmo
tempo, ininterruptamente comprometido com a construção de uma sociabilidade
alternativa, marcada pela justiça social, pela solidariedade, pela radical
democratização do saber, do ter, do poder.
Um
partido que seja capaz de romper as fronteiras intra e inter-partidárias, e de
fincar raízes em diferentes segmentos da sociedade civil (movimentos sociais
populares, setores progressistas de igrejas, etc.). Um partido que se constitua
de pessoas e grupos atuando em qualquer espaço social, desde que comprometidos
(mais pelas práticas do que pelo discurso), a partir dos embates do cotidiano,
com o combate aos valores do Capitalismo, e com a construção permanente e
ininterrupta de novas relações humanas e sociais, de fidelidade à causa libertadora
dos empobrecidos.
Esse
esboço de partido instituinte requer, por certo, um perfil de militantes que
corresponda aos desafios e exigências sócio-históricas, de modo a romper com as
práticas e concepções ainda largamente dominantes. Trata-se, por exemplo, de
militantes que
- primem, no plano subjetivo,
pelo seu desenvolvimento integral, buscando aprimorar, de forma dosada, todas
as suas potencialidades de ser cósmico e de ser humano+;
- sejam pessoas profundamente
amorosas, apaixonadas pelo Povo, não importando que país ou região habite, e
pela nossa Casa Comum, a Mãe-Natureza;
- sejam capazes de recuperar a
primazia da perspectiva classista sobre quaisquer interesses de segmentos
particulares, do âmbito local ao internacional, ou melhor dito, capazes de experienciar
nos embates locais sua dimensão internacional, ao tempo em que, ao participarem
de lutas internacionais, são capazes de perceber as implicações locais;
- se refontizem incessantemente
da força revolucionária da memória histórica, recuperando lutas, façanhas e
conquistas do passado e respectivos protagonistas;
- não abram mão do persistente
exercício de crítica e auto-crítica;
- sua permanente disposição à
autocrítica, alimentada pelo contínuo exercício da mística revolucionária, os
ajuda sobremaneira a tornar viva e eficaz, enquanto intervenção presentificada,
a memória histórica, de modo a não engessarem num passado longínquo e estéril
suas referências de luta e de militância;
- ao apreciarem com carinho a
memória e o testemunho exemplar de revolucionários e revolucionárias de ontem e
de hoje, cuidam de evitar transformá-los em “gurus”, preferindo apostar mais na
causa, no projeto, do que em seus protagonistas, e se a estes também prestam
reverência, o fazem na medida em que encarnam o projeto;
- constante acompanhamento
crítico da realidade social, mediante o recurso a fontes fidedignas, em função
do que tratam de aprimorar suas estratégias de intervenção;
- efetiva vigilância no sentido
de assegurar condições irrenunciáveis do protagonismo dos distintos segmentos
da sociedade civil, em sua luta de libertação;
- no relacionamento com as
pessoas e grupos de base, saibam pôr em prática uma pedagogia da escuta,
aprendendo com os outros e buscando também exercer sua dimensão docente;
- tenham consciência de que a
qualidade de sua aposta na Utopia é constantemente testada na oficina de
tecelagem do Cotidiano, a partir dos gestos minúsculos e aparentemente
invisíveis;
- sejam pessoas fortemente
desinstaladas e desinstaladoras, ao mesmo tempo inquietas na tomada de
iniciativas, e profundamente serenas, nos momentos de crise e de impasse;
- estejam conscientes de que
navegam sobre águas revoltas, e quase sempre navegam à contra-corrente, o que
implica uma postura ao mesmo tempo firme e serena de lutadores sociais;
- mostrem-se efetivamente
empenhados no seu processo de formação continuada, nas distintas dimensões do
cotidiano e da vida pessoal e grupal;
- exercitem, a cada dia, a
mística revolucionária, em virtude da qual asseguram a renovação de seu compromisso
ético-político, no horizonte de uma Utopia libertadora.
Considerações sinópticas
Apostas,
riscos, responsabilidades, alternativas – eis a que nos conduziu o rápido
percurso pela “Encruzilhada Brasil”, a partir dos fatos e desafios com que se
defrontam a Sociedade, o Estado e o Governo brasileiros, nesses tempos de
Globalização neoliberal, como é conhecida e apelidada a fase atual do
Capitalismo.
Relembramos
fatos e ocorrências de extrema gravidade, em relação aos quais o Governo Lula,
de quem tanto se esperava, parece sucumbir. Continua a apostar (já não como
mera tática, agora como estratégia) numa política econômica que o torna cada
vez mais refém dos caprichos do segmento
capitalista mais parasitário, o mercado financeiro, a quem servem os organismos
multilaterais (FMI, Banco Mundial, OCDE, OMC...), cuja receita é adotada como
dogma. Não são por acaso os freqüentes elogios públicos que deles o Governo
Lula tem recebido.
As
promessas de campanha – que já eram bem distintas das campanhas presidenciais
anteriores – vão sendo descumpridas ou indefinidamente adiadas. Enquanto isso,
os índices de empobrecimento e de aviltamento da qualidade de vida da maioria
da população não cessam de se agravar, no essencial: do desemprego ao
achatamento salarial; do sucateamento ou desmonte dos serviços públicos à
escalada da violência social, para ficar apenas com esses exemplos.
Constantemente
cobrado pelos seus eleitores, o Governo, em vez de corrigir rumos desastrados,
empenha-se em forjar justificativas – uma fábrica de justificativas! -, fazendo
apelo sistemático a sofisticados recursos de marketing, que valem o que valem.
A
despeito de todo o seu empenho em “encobrir o Sol com a peneira”, não vai
conseguir escapar ao julgamento das vítimas, justamente aqueles que o Governo
Lula diz representar.
Como
ensaio alternativo, observa-se em movimento uma rede de protagonistas de
diferentes segmentos da sociedade civil, cuja determinação de marchar à
contra-corrente da oficialidade já é capaz de mostrar sinais de esperança, a
quem se dispõe a ver o que se passa nas correntezas subterrâneas. Aqui se
ensaia algo alternativo, cultivando-se a articulação entre rumo, caminhos e
jeitos de caminhar, com o sentimentos de que, em última instância, como
costumava dizer José Dolores, a personagem do filme “Queimada”: “É melhor saber
para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir”.
Referências e textos de apoio
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STÉDILE, João Pedro. Os dilemas
da ALCA e o nosso futuro. Caros Amigos,
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* Sociólogo.
Docente-pesquisador na área de movimentos sociais e Estado. Membro do
CEPED/FAFICA. Autor de Paolo Freire, forjador de utopías. Sevilla:
Educación Cooperativa, 2004, entre outros livros.
+
(“O ser humano - sustenta Marx, em seus Manuscrtos
Econômico-Filosóficos -“apropria-se de sua omnilateralidade, de modo
integral, portanto como ser humano total” (“Der Mensch eignet sich sein
allseitiges Wesen auf eine allseitige Art an, also als ein totaler Mensch.” (Ökonomisch-philosophische Manuskripte,
III, XXXIX, VI-VII, extraído da página http;//www.mlwerke.de/default.htm).
João Pessoa, 28 de Janeiro de 2010
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