terça-feira, 3 de julho de 2018

AÇÃO DOS CRISTÃOS NUM MUNDO GLOBALIZADO: desafios, discernimento e pistas de intervenção dos Cristãos (desde o olhar dos Católic@s da Igreja da Paraíba)


AÇÃO DOS CRISTÃOS NUM MUNDO GLOBALIZADO:
desafios, discernimento e pistas de intervenção dos Cristãos
(desde o olhar dos Católic@s da Igreja da Paraíba)

À guisa de introdução

            Às vésperas da realização da próxima Assembléia Pastoral Arquidiocesana da Igreja Católica da Paraíba, parece oportuno aos seus membros, especialmente aos seus delegados e delegadas, terem presente um quadro panorâmico dos principais desafios conjunturais (e estruturais) que se colocam ao conjunto dos cidad@s, e, em especial, ao segmento d@s cidad@s de identidade católica apostólica romana, que vivem na Igreja da Paraíba.
Como é sabido, nenhuma ação pastoral se dá numa espécie de vazio social. Nossas atividades eclesiais - queiramos ou não, e disso tenhamos ou não consciência – se acham impregnadas, direta ou indiretamente, das inquietações das mulheres e dos homens do nosso lugar, do nosso tempo. Nossa atuação pastoral será tanto mais fecunda, quanto mais consistente seja, sob a inspiração dos critérios do Seguimento de Jesus, a nossa percepção dos dramas humanos que enfrentamos, a começar dos que envolvem os mais pobres, assim acolhendo e fazendo eco à bela introdução da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concício Valitacno II: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo.” (GS, n. 1).

1. Retalhos do nosso mundo

Vivemos num mundo cada vez mais globalizado, cada vez mais atravessado por uma complexa e extensa rede de relações a nos desafiar constantemente, seja como cidad@s, seja como crist@s (leigas, leigos, religiosas, religiosos, diáconos, presbíteros, bispo), nas mais distintas esferas de nosso dia-a-dia, isto é, tanto no campo da produção, quanto no da política e da cultura.
Para nós cidad@s crist@s, o processo de globalização é, em princípio, um alvo desejado e incessantemente buscado. Tendo o Cristianismo, na perspectiva do Seguimento de Jesus, uma motivação, uma destinação, em breve, uma vocação de caráter universal, não se entende o cristão, a cristã que não se sinta provocado, convocado e comprometido com uma ação globalizada, ainda quando realizada no âmbito local.
Do Antigo ao Novo Testamento, passando pela densa e multissecular contribuição de distintos protagonistas crist@s, ao longo da História, o Movimento de Jesus protagonizado pelas comunidades cristãs primitivas, ao denso legado da Patrística; do Concílio Ecumênico Vaticano II às conferências episcopais latino-americanas de Medellín e Puebla e aos documentos da CNBB, os cristãos, as cristãs somos incessantemente convocados a construir a globalização da solidariedade e do amor, a partir e junto com os pobres, os prediletos do Reino de Deus, feitos pela vontade mesma do Senhor da História seus principais protagonistas.
Sucede que, sobretudo no decorrer das últimas três décadas, o espectro da globalização vem assumindo uma feição, não apenas distinta, como também completamente oposta à perspectiva do Reino de Deus. Em vez de uma globalização da justiça, da solidariedade e da paz, o que temos assistido é à consolidação de valores diametralmente antagônicos à grade de valores do Reino de Deus, haja vista, por exemplo,  o papel que vem cumprindo a mídia. Não só a mídia, diga-se, de passagem, pois essa grade de valores ditada pelo processo de globalização neoliberal vem, a olhos vistos, atuando sob múltiplas formas, de tal modo que, não raro, somos nós próprios inclinados a assimilá-los e reproduzi-los, em nosso dia-a-dia, fazendo ouvidos moucos ao alerta de Paulo (Rm 12, 2) – “Nolite conformari huic saeculo (“Não se amoldem às estruturas desse mundo!”), tentados que nos sentimos a pretender alcançar a Ressurreição sem passar pela Cruz...
Essa tendência de globalização neoliberal não se restringe, como se sabe, aos espaços mediáticos. No campo científico-tecnológico, os avanços atestados pelas recentes conquistas, por um lado, não raro se fazem em prejuízo da Natureza e por cima de critérios éticos, enquanto, por outro lado, no tocante aos seus aspectos positivos, não apenas não conseguem estender-se às maiorias empobrecidas da população, como têm se concentrado em benefício de cada vez menos pessoas e grupos. Fenômeno que se explica pelo caráter de crescente monopolização que tem caracterizado toda a cadeia produtiva, seja no campo da produção científico-tecnológica, seja no âmbito das demais atividades econômicas, sem esquecer a indústria cultural, todas hegemonizadas pelo setor financeiro, justamente o mais parasitário.
            Como avalista-mor de tal cadeia monopolista, atuam as grandes potências do Capitalismo – o G7, à frente os Estados Unidos, hoje mais do que ontem, transformadas em “comitê” dos grandes conglomerados transnacionais. Haja vista o que vêm fazendo as transnacionais do petróleo, junto às quais a família Bush tem uma história não desprezível.
De fato, mediante os organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC, etc.), igualmente sob o controle do G7, as grandes potências formulam e impõem aos países periféricos, com a cumplicidade de seus respectivos governantes, políticas econômicas de efeito reconhecidamente perverso.
Disso tem sido exemplo a imposição da política impropriamente chamada “Estado Mínimo”, que, associada à política de privatização do patrimônio público dos Estados nacionais periféricos, tem se convertido em eficaz estratégia de formação de fundos públicos para assegurar o pagamento do serviço da dívida e(x)terna, entre outros mecanismos de pilhagem adotados, de forma velada ou expressa.
            Tal contexto implica um novo papel para os Estados nacionais. Há algum tempo atrás, a despeito de suas conhecidas limitações, não se questionava a responsabilidade dos Estados nacionais quanto ao seu dever de formulação, financiamento e implementação de políticas sociais tidas como essenciais, como educação, saúde, transporte coletivo, segurança pública, entre outras.
            Se antes da era Reagan-Thatcher, os Estados nacionais periféricos já amargavam imposições do Capital, com o avanço e enraizamento do paradigma dito neoliberal, as estratégias de sucateamento e desmonte das políticas sociais, combinadas com a adoção de sofisticados instrumentos de pilhagem (política de privatização e endividamento, volatilidade do capital financeiro, remessas de lucro indevidas dos conglomerados com representação no Brasil para suas respectivas matrizes, aumento de fraudes quase sempre impunes, entre outros) têm resultado em crescente redução, por parte dos Estados nacionais, de sua responsabilidade social e de suas atribuições convencionais.
Graças ao crescente assujeitamento das instâncias governamentais dos Estados periféricos ao novo desenho do establishment, esses Estados vêm se transformando em instâncias secundárias de mera legitimação oficial das decisões tomadas pelos organismos multilaterais controlados pelo G7 e a serviço dos interesses dos grandes conglomerados transnacionais, notadamente do seu setor financeiro.
            Não bastassem estudos feitos por analistas de reconhecida notabilidade internacional, a exemplo dos publicados com freqüência por Le Monde diplomatique, além de vários escritos produzidos por Ignácio Ramonet, documentos dos próprios órgãos multilaterais, a exemplo do Relatório PNUD/ONU de 1996, atestam as contradições como a concentração de riquezas acumuladas por menos de 400 pessoas, que retêm mais de 40% das riquezas mundiais...

2. A impotência dos partidos de esquerda convencionais frente ao rolo compressor das forças dominantes.

            Nesse cenário de hiperconcentração de riquezas e de poderes dos grandes conglomerados transnacionais, política e militarmente sustentados pelos países centrais do Capitalismo, os partidos de esquerda vêm amargando sucessivas e crescente derrotas, no que diz respeito ao seu declarado propósito de transformação social. Quando muito, sobra-lhes o direito de espernear, de se pronunciarem contrários ao modelo imperante, não tardando a voltar a conformar-se à agenda oficial.
            No caso do Brasil, partidos como o PT, o PCdoB, o PSB, o PDT, mesmo com enormes avanços no plano eleitoral (caso do PT), não apenas não conseguem fazer avançar suas propostas de mudança, como tendem a conformar-se aos padrões ditados pela ordem dominante, ora sob o pretexto de que as mudanças têm que vir lentamente, ora sob o argumento de que, sendo irreversível o espectro do atual neoliberalismo, não restaria outra opção senão a de buscar tirar proveito da situação dominante. Com raras exceções, passariam de partidos de resistência ao status quo à categoria que Florestan Fernandes, com base em Marx, costumava chamar de “partidos da ordem”.
            Por outro lado, a maior parte de seus militantes que, nas décadas de 1970 e 1980, viviam engajados nos movimentos e lutas sociais do campo e da cidade, na época de ascenso do PT e da CUT, hoje restringe sua atuação às instâncias governamentais: gabinetes de parlamentares, secretarias municipais e estaduais, e agora também nos espaços ministeriais... São milhares de militantes, mulheres e homens, de reconhecida qualificação acadêmica e política, que por distintas razões (por sobrevivência, uns; outros por desejo de ascensão institucional; outros ainda por mudança de aposta num horizonte utópico, a despeito de suas declarações em contrário...), se distanciaram das lutas e dos movimentos sociais populares.
            Tal redirecionamento político tem implicado uma multiplicidade de conseqüências práticas (quase todas enormemente prejudiciais aos interesses das classes populares), tais como: arrefecimento das lutas, por falta de animadores engajados; maior exposição e vulnerabilidade a iniciativas de cooptação; mudança de práticas e discursos numa direção de conciliação com a ordem dominante, entre outras.
Conseqüências também no âmbito intrapartidário: abandono das práticas democráticas de base; superestimação do peso dos parlamentares nas decisões do partido; abandono às práticas de nucleamento; desenfreada concorrência pela auto-reprodução dos mandatos eleitorais, ficando o partido em segundo (ou terceiro?) plano...
            Se esse vai sendo, doravante, o papel do partido, pode-se deduzir qual lugar passa a ser o reservado à classe trabalhadora... A esse propósito, sempre me volta à lembrança um episódio a que assisti, por ocasião de uma reunião de militantes partidários. Tratava-se de avaliar o desempenho do PT. Enquanto os dirigentes se empenhavam em auto-elogios pelos ganhos eleitorais, surge alguém a ponderar que o partido até poderia ir bem, do ponto de vista dos resultados eleitorais, mas o problema era saber se o povo também estava bem. Pergunta-chave para quem se pretenda de esquerda! Não apenas para o plano partidário, aliás. Há de se estendê-la a instâncias sindicais, eclesiais, associativas, entre outras.
            Questão-chave, sim, porque vai diretamente à raiz do problema. Numa perspectiva de esquerda, não se admite que, em qualquer dessas instâncias, a luta por reivindicações de uma ou de algumas categorias se sobreponha a, ou secundarize os interesses do conjunto das classes populares.

3. Uma nova sociedade é possível, com o protagonismo articulado de diferentes sujeitos sociais comprometidos com rumo, métodos e posturas alternativos

            Se cada vez mais surgem fatos e episódios convincentes quanto ao esgotamento do potencial transformador do modelo corrente de se fazer política, parece inútil persistir-se na mesma tecla. Há de se encontrar caminhos e pistas conseqüentes com o projeto de sociedade que se deseja construir. É hora – se já não estamos em atraso – de ousarmos ensaiar trilhas alternativas, conseqüentes ao tipo de projeto que desejamos construir.. Busca de alternatividade que implica, entre outras condições, reduzir cada vez mais nossa aposta em caminhos já percorridos que se têm mostrado ineficazes e mesmo falaciosos quanto ao rumo que pretendemos alcançar.
            No caso específico do contexto atual, parece razoável falar-se no surgimento de forças sociais exercendo um protagonismo de novo tipo, que não esteja condenado a reproduzir a trajetória das experiências precedentes malogradas.
            A quem ouse acompanhar a caminhada dos movimentos sociais do campo e da cidade, não é surpresa constatar os estragos que o ideário dito neoliberal, graças também à cooptação de antigos militantes, tem logrado contra os movimentos sociais populares, em inquietante refluxo, à exceção de alguns. Salta à vista o enorme retraimento – para não dizer abandono - de militantes históricos, dos embates protagonizados pelos movimentos sociais, à medida que aqueles militantes agora se fazem cada vez mais presentes e atuantes ora na cena parlamentar, ora se reproduzindo indefinidamente em cargos de direção sindical, ora ainda em assessoria a ONGs de compromisso duvidoso com o protagonismo dos movimentos sociais...
            Também do ponto de vista pedagógico, vale a pena ter presente um conjunto de sinais dando conta da tendência que vem prosperando especialmente nos partidos ditos de esquerda, notadamente a partir dos anos 90, apontando para o esgotamento do seu potencial transformador:
- o crescente afastamento das lutas e dos movimentos sociais por parte de expressiva maioria de militantes, o que confirma o viés burocratizante, em prejuízo do caráter instituinte, até então predominante;
- a militância passou a recorrer ao processo eleitoral como foco privilegiado – por vezes exclusivo – de sua relação com as bases partidárias, pouco a pouco transformadas de parceiras no cotidiano das lutas políticas em mera alavanca dos embates eleitorais;
- em parte, impelidos pelos graves efeitos do desmonte promovido pela globalização dita neoliberal (desemprego estrutural, extinção de milhões de postos de trabalho...); e, em parte, pelo desencanto e resfriamento da aposta no horizonte revolucionário, nada desprezível é o número dos que trocaram os embates classistas por fratricidas disputas internas por cargos e posições, seja na máquina sindical, seja nos espaços parlamentares/governamentais;
- o maciço investimento do(s) partido(s) no processo eleitoral surtiu efeitos significativos em pelo menos duas direções:
a) no âmbito estritamente eleitoral: a cada campanha eleitoral realizada a cada dois anos, a esquerda partidária (PT e seus aliados) lograva uma expressiva ampliação de seus quadros tanto nas instâncias parlamentares quanto nos espaços governamentais ligados ao poder executivo
            b) no plano ético-político: abandono de práticas e discursos classistas; distanciamento dos princípios que inspiraram a fundação do(s) partido(s); abandono dos critérios que orientavam o(s) partido(s) a serem construídos pela base (a prática da atuação nos núcleos nos locais de trabalho e moradia); progressiva tendência à centralização do poder em certos nomes ou instâncias privilegiadas; crescente descompromisso dos filiados em relação à manutenção do(s) partido(s), passando este(s) a ser mantido(s) basicamente pelos eleitos, o que, na prática, implica a vigência do conhecido “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”; afrouxamento dos critérios de filiação partidária; progressivo agravamento da síndrome do aliancismo; inobservância dos critérios democráticos que, nos primeiros tempos, regiam a formação dos comitês eleitorais unificados; desvairada concorrência interna entre os candidatos, conforme a lei do mais forte ou do mais esperto; financiamento de fontes no mínimo duvidosas; conchavos celebrados à base de interesses futuros (do tipo “eu o apóio agora, e você me apóia na próximas eleições”); descolamento dos candidatos e dos eleitos em relação ao controle democrático do(s) partido(s); estrelismo e briga pela auto-reprodução do mandato (com vasta infraestrutura assegurada ao titular do mandato, a serviço dos interesses individuais dos eleitos, tal como pelo figurino dos partidos “da ordem”)...
- crescente deslumbramento pelas instâncias parlamentares/governamentais, que passam a ser tidas mais como fins em si mesmas do que como instrumento de luta, o que é atestado, por exemplo, pelo apego ao mecanismo da reeleição permitindo a uma única pessoa o exercício de sucessivos mandatos;
- transformação do exercício parlamentar (ou em outros espaços governamentais), que é uma eventualidade da condição de cidadão, em carreira profissional, mediante sucessivas reeleições, implicando, na prática, abandono de sua condição de trabalhador/de trabalhadora;
- por último, mas não menos relevante, convém sublinhar o enorme impacto político-pedagógico da influência direta ou indireta exercida por alguns milhares desses militantes/dirigentes sobre milhões de trabalhadores espalhados por esse País...
            Desnecessário lembrar que os sinais acima mencionados não devem ser atribuídos à totalidade dos militantes/dirigentes. Há, por certo, nesse(s) partido(s), quem aja diferente. As costumeiras exceções que não infirmam, porém, a regra.
            Se, por um lado, é fato essa tendência, por outro, não se deve perder de vista os promissores sinais do protagonismo articulado de distintas forças sociais emergentes, apontando numa direção alternativa.
            Às vezes, nas mesmas instâncias em que se tem observado sinais da tendência burocratizante, pode ser percebida a presença de pessoas e pequenos grupos descontentes com aqueles rumos. Tanto a dos descontentes que se manifestam por meio de discursos irados, por vezes bombásticos; quanto a d@s que preferem expressar sua ira de maneira mais discreta nas palavras e mais eloqüente em seus gestos. Eram (e continuam sendo) pequenos grupos espalhados por distintos espaços sociais, dentro e fora das instâncias oficiais, dentro e fora dos partidos de esquerda; dentro e fora das instâncias sindicais; dentro e foram dos espaços eclesiais; dentro e fora dos movimentos sociais...
Se o rótulo da vinculação institucional já não constitui o único critério definidor do perfil dos sujeitos emergentes, numa perspectiva de alternatividade, então que outros critérios e iniciativas passam a apontar, nessa direção?

4. Traços identitários dos  sujeitos emergentes, numa perspectiva de alternatividade

            Se em outras dimensões da vida humana e social, já não se concebe um esforço identitário pré-definido, acabado, posto que os Humanos, como seres perfectíveis que são, vivem mergulhados no plano histórico, no terreno político tampouco é razoável pretender-se uma identidade pronta. Vale a mesma orientação para a tentativa de um esboço de alguns traços identitários de uma força emergente que se pretenda comprometida com a alternatividade, nas mais distintas esferas da vida social.
            Para começo do esboço, cumpre ter sempre presente a direção dos seus passos. Se, de fato, se pretende construir um projeto de sociedade no campo da alternatividade, isto é, que se contraponha claramente à sociabilidade capitalista, cada passo (individual ou coletivo) deve refletir, mais no chão das relações do cotidiano do que no plano da retórica, atitude de inevitável combate às práticas e à grade de valores da ordem dominante (individualismo, oportunismo, concentração de poder em mãos de poucos, concorrência, acomodação ao status quo, apego desmedido a cargos e funções concentrados em uma única pessoa ou num pequeno grupo, recusa à autocrítica, etc.) e, ao mesmo tempo, de compromisso com a construção de relações alternativas, pautadas por valores que apontem em direção oposta aos da ordem imperante (decisões tomadas pela base, direção colegiada, alternância de cargos e funções, espírito crítico e autocrítico, postura de respeitosa autonomia em relação aos dirigentes, recusa da prática dos métodos combatidos nos inimigos, coerência entre prática e discurso, fidelidade continuamente testemunhada aos interesses das classes populares, inclusive em situações de clara infidelidade cometida por quem quer que seja.
            Pelo que ficou acima esboçado, é possível perceber-se que rumo e procedimentos se acham de tal modo afinados, que transgredir um implica inobservância do outro. De um lado, merece toda a atenção o ensinamento da personagem José Dolores, do famoso filme “Queimada” – “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir”; por outro, não devemos medir esforço em perceber que o jeito de caminhar no rumo almejado diz muito da intenção e da postura ético-política do caminhante.
            No que concerne ao rumo em construção, o horizonte de quem se põe a caminho, numa perspectiva de alternatividade, não poderia ser outro senão o da classe trabalhadora ou, como costuma expressar Ricardo Antunes, “os-que-vivem-do-trabalho”, princípio que, na perspectiva d@s cidad@s que se reconhecem como crist@s, deve coincidir com os critérios do Reino de Deus (Mt 25, 31-45; Mc 10, 42-45; Lc 4,16-19; Jo 10, 10-16), com os do Seguimento de Jesus, tão bem explicitados na gesta dos Atos dos Apóstolos..
Contribuem nesta direção todos os protagonistas (coletivos e individuais) que, ininterruptamente e de modo transparente, apostem na força transformadora das classes populares, o principal protagonista. E, ao permanentemente darem prova de sua fidelidade à classe trabalhadora, não conciliem com, nem sucumbam à prática – hoje moeda corrente – do aliancismo, do colaboracionaismo ou dos conchavos interclassistas, numa vã tentativa de servir a dois senhores...
Nos escritos produzidos ao longo de sua vida, Paulo Freire, sempre que analisava a conjuntura, costumava lembrar ou explicitar uma verdade freqüentemente esquecida por segmentos que se pretendem de esquerda: a de que se torna impraticável a quem quer que se pretenda favorável aos interesses da classe trabalhadoras, não se pronunciar contrário aos interesses dominantes, implicando uma postura de denúncia e oposição aos interesses dos setores dominantes.
            No âmbito parlamentar, vez por outra, estamos a ler ou a escutar alegações autojustificativas de mandatários, em relação a atitudes e votos que contrariam suas declaradas posições de defesa aos interesses das classes populares. Declarações do tipo;”Eu votei, porque o partido fechou questão” ou “Embora eu tenho votado contra, eu recebo aquela verba, porque se não, ela fica para o Estado.” E daí?
            No presente momento, alguns parlamentares do PT estão ameaçados de expulsão, porque se recusam a votar contra notórios compromissos históricos do Partido. A direção do PT tenta justificar que há liberdade de opinião, mas, na hora do voto, todos devem fidelidade à posição do Partido. Posição que estimula atitudes esquizofrênicas, à medida que induz que as pessoas externem uma opinião logo desmentida pela prática do voto: falar, podem à vontade, desde que ajam em contrário...
Contradição que pode ser observada, também, em posições corporativas freqüentes nas lides sindicais com viés burocratizante, em que, sob o pretexto de se lutar pelos interesses da categoria “x”, “y” ou “z”, não raro se perdem de vista os mais elementares interesses do conjunto da classe trabalhadora. Por exemplo, em vez de se fortalecer a luta em defesa do Sistema Único de Saúde (e de outras políticas públicas), parte-se para a defesa e adoção de planos de saúde ou similares....
            Outro traço que compõe o perfil de um partido alternativo acena para a formação de um partido-movimento, cujo maior emblema passa a ser o da figura de um peregrino, que faz do conjunto dos Humanos sua família, e do Planeta sua pátria, sem que isso implique qualquer perda de seus traços identitários (de subjetividade, de gênero, de espacialidade, de etnia, de idade, de cidadania, de condição profissional, de sua condição de ser cósmico e de sua relação com o Sagrado). Em suma, um partido-movimento necessariamente anticapitalista e, ao mesmo tempo, ininterruptamente comprometido com a construção de uma sociabilidade alternativa, marcada pela justiça social, pela solidariedade, pela radical democratização do saber, do ter, do poder.
            Um partido que seja capaz de romper as fronteiras intra e inter-partidárias, e de fincar raízes em diferentes segmentos da sociedade civil (movimentos sociais populares, setores progressistas de igrejas, etc.). Um partido que se constitua de pessoas e grupos atuando em qualquer espaço social, desde que comprometidos (mais pelas práticas do que pelo discurso), a partir dos embates do cotidiano, com o combate aos valores do Capitalismo, e com a construção permanente e ininterrupta de novas relações humanas e sociais, de fidelidade à causa libertadora dos empobrecidos.
            Esse esboço de partido instituinte requer, por certo, um perfil de militantes que corresponda aos desafios e exigências sócio-históricas, de modo a romper com as práticas e concepções ainda largamente dominantes. Trata-se, por exemplo, de militantes que
- primem, no plano subjetivo, pelo seu desenvolvimento integral, buscando aprimorar, de forma dosada, todas as suas potencialidades de ser cósmico e de ser humano+;
- sejam pessoas profundamente amorosas, apaixonadas pelo Povo, não importando que país ou região habite, e pela nossa Casa Comum, a Mãe-Natureza;
- sejam capazes de recuperar a primazia da perspectiva classista sobre quaisquer interesses de segmentos particulares, do âmbito local ao internacional, ou melhor dito, capazes de experienciar nos embates locais sua dimensão internacional, ao tempo em que, ao participarem de lutas internacionais, são capazes de perceber as implicações locais;
- se refontizem incessantemente da força revolucionária da memória histórica, recuperando lutas, façanhas e conquistas do passado e respectivos protagonistas;
- não abram mão do persistente exercício de crítica e auto-crítica;
- sua permanente disposição à autocrítica, alimentada pelo contínuo exercício da mística revolucionária, os ajuda sobremaneira a tornar viva e eficaz, enquanto intervenção presentificada, a memória histórica, de modo a não engessarem num passado longínquo e estéril suas referências de luta e de militância;
- ao apreciarem com carinho a memória e o testemunho exemplar de revolucionários e revolucionárias de ontem e de hoje, cuidam de evitar transformá-los em “gurus”, preferindo apostar mais na causa, no projeto, do que em seus protagonistas, e se a estes também prestam reverência, o fazem na medida em que encarnam o projeto;
- constante acompanhamento crítico da realidade social, mediante o recurso a fontes fidedignas, em função do que tratam de aprimorar suas estratégias de intervenção;
- efetiva vigilância no sentido de assegurar condições irrenunciáveis do protagonismo dos distintos segmentos da sociedade civil, em sua luta de libertação;
- no relacionamento com as pessoas e grupos de base, saibam pôr em prática uma pedagogia da escuta, aprendendo com os outros e buscando também exercer sua dimensão docente;
- tenham consciência de que a qualidade de sua aposta na Utopia é constantemente testada na oficina de tecelagem do Cotidiano, a partir dos gestos minúsculos e aparentemente invisíveis;
- sejam pessoas fortemente desinstaladas e desinstaladoras, ao mesmo tempo inquietas na tomada de iniciativas, e profundamente serenas, nos momentos de crise e de impasse;
- estejam conscientes de que navegam sobre águas revoltas, e quase sempre navegam à contra-corrente, o que implica uma postura ao mesmo tempo firme e serena de lutadores sociais;
- mostrem-se efetivamente empenhados no seu processo de formação continuada, nas distintas dimensões do cotidiano e da vida pessoal e grupal;
- exercitem, a cada dia, a mística revolucionária, em virtude da qual asseguram a renovação de seu compromisso ético-político, no horizonte de uma Utopia libertadora.

5. A contribuição específica d@s crist@s católic@s

            No momento em que nos preparamos para a realização de nossa próxima Assembléia Pastoral da Arquidiocese da Paraíba, convém partirmos do chão do cotidiano do nosso Povo, especialmente dos pobres e sofredores, e, neles inspirados, após bem avaliarmos a caminhada pastoral de nossa Igreja particular, nos últimos anos, elegermos as prioridades de nossa ação pastoral para o próximo período.
            Quaisquer que sejam as prioridades pastorais a serem eleitas, elas devem tomar como referência o Seguimento de Jesus, a Quem nossa Igreja é chamada a testemunhar e renovar constantemente seu propósito e suas práticas de fidelidade, seguindo a direção apontada pela Constituição Dogmática Lúmen Gentium, quando afirma que “assim como o Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho a fim de comunicar aos homens os frutos da salvação.” (LG, n. 8).
            A partir de nossa breve incursão analítica pelo atual quadro conjuntural, do qual são emblemáticas as cifras do recente Relatório do PNUD, órgão da ONU para o desenvolvimento, dando conta de que os principais gastos efetivados pelas grandes potências foram com produtos supérfluos (US$ 8 bilhões foram ue pistas evangélicas nos inspiram na definição de nossas prioridades pastorais?






Considerações sinópticas

            O propósito axial das presentes notas foi enfocar o sentido e traços das manifestações históricas da dialética instituinte X instituído. Trazer de novo a lume múltiplos aspectos da tensão existente entre o ímpeto subversivo dos movimentos sociais populares (de ontem e de hoje) e sua tendência à institucionalização, vale dizer, ao arrefecimento ou à perda de suas potencialidades transformadoras.
            Remetendo, de passagem, a situações históricas precedentes, cuidamos de pontuar aspectos mais relevantes do atual contexto sócio-histórico, principalmente no que resulta como implicações ético-políticas para os protagonistas de mudanças sociais, numa ótica de esquerda.
            Ao reconhecermos a diversidade de espaços sociais em que se produz tal tensão, optamos por priorizar como locus específico de apreciação os embates travados no espaço dos partidos considerados de esquerda. Tal incursão se desenrolou tendo como referência axiológica o que aqui se chamou de horizonte utópico libertador.
            No intuito de apresentar o modus operandi da tendência burocratizante que se observar dominante em parcela significativa dos protagonistas partidários considerados de esquerda, cuidamos de exemplificar situações que sinalizam nessa direção.
            Embora reconhecendo tratar-se de tendência hoje dominante, cuidamos de apontar e caracterizar algumas iniciativas partidárias que apontam numa direção de alternatividade.
            O último aspecto trabalhado reporta-se a um elenco de características requeridas pelos protagonistas que apostam na construção de um projeto alternativo, anticapitalista e dotado de sinais correspondentes a um projeto utópico libertador.

















+ (“O ser humano - sustenta Marx, em seus Manuscrtos Econômico-Filosóficos -“apropria-se de sua omnilateralidade, de modo integral, portanto como ser humano total” (“Der Mensch eignet sich sein allseitiges Wesen auf eine allseitige Art an, also als ein totaler Mensch.” (Ökonomisch-philosophische Manuskripte, III, XXXIX, VI-VII, extraído da página http;//www.mlwerke.de/default.htm).




João Pessoa, 8 de Março de 2001.

Nenhum comentário:

Postar um comentário