AÇÃO DOS CRISTÃOS NUM MUNDO GLOBALIZADO:
desafios, discernimento e pistas de
intervenção dos Cristãos
(desde o olhar dos Católic@s da Igreja
da Paraíba)
À guisa de introdução
Às
vésperas da realização da próxima Assembléia Pastoral Arquidiocesana da Igreja
Católica da Paraíba, parece oportuno aos seus membros, especialmente aos seus
delegados e delegadas, terem presente um quadro panorâmico dos principais
desafios conjunturais (e estruturais) que se colocam ao conjunto dos cidad@s,
e, em especial, ao segmento d@s cidad@s de identidade católica apostólica
romana, que vivem na Igreja da Paraíba.
Como é
sabido, nenhuma ação pastoral se dá numa espécie de vazio social. Nossas
atividades eclesiais - queiramos ou não, e disso tenhamos ou não consciência –
se acham impregnadas, direta ou indiretamente, das inquietações das mulheres e
dos homens do nosso lugar, do nosso tempo. Nossa atuação pastoral será tanto
mais fecunda, quanto mais consistente seja, sob a inspiração dos critérios do
Seguimento de Jesus, a nossa percepção dos dramas humanos que enfrentamos, a
começar dos que envolvem os mais pobres, assim acolhendo e fazendo eco à bela
introdução da Constituição Pastoral Gaudium
et Spes, do Concício Valitacno II: “As alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os
que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias
dos discípulos de Cristo.” (GS, n. 1).
1.
Retalhos do nosso mundo
Vivemos
num mundo cada vez mais globalizado, cada vez mais atravessado por uma complexa
e extensa rede de relações a nos desafiar constantemente, seja como cidad@s,
seja como crist@s (leigas, leigos, religiosas, religiosos, diáconos,
presbíteros, bispo), nas mais distintas esferas de nosso dia-a-dia, isto é,
tanto no campo da produção, quanto no da política e da cultura.
Para nós
cidad@s crist@s, o processo de globalização é, em princípio, um alvo desejado e
incessantemente buscado. Tendo o Cristianismo, na perspectiva do Seguimento de
Jesus, uma motivação, uma destinação, em breve, uma vocação de caráter
universal, não se entende o cristão, a cristã que não se sinta provocado,
convocado e comprometido com uma ação globalizada, ainda quando realizada no
âmbito local.
Do Antigo
ao Novo Testamento, passando pela densa e multissecular contribuição de
distintos protagonistas crist@s, ao longo da História, o Movimento de Jesus
protagonizado pelas comunidades cristãs primitivas, ao denso legado da
Patrística; do Concílio Ecumênico Vaticano II às conferências episcopais
latino-americanas de Medellín e Puebla e aos documentos da CNBB, os cristãos,
as cristãs somos incessantemente convocados a construir a globalização da solidariedade e do amor, a partir e junto com os
pobres, os prediletos do Reino de Deus, feitos pela vontade mesma do Senhor da
História seus principais protagonistas.
Sucede
que, sobretudo no decorrer das últimas três décadas, o espectro da globalização
vem assumindo uma feição, não apenas distinta, como também completamente oposta
à perspectiva do Reino de Deus. Em vez de uma globalização da justiça, da
solidariedade e da paz, o que temos assistido é à consolidação de valores
diametralmente antagônicos à grade de valores do Reino de Deus, haja vista, por
exemplo, o papel que vem cumprindo a mídia.
Não só a mídia, diga-se, de passagem, pois essa grade de valores ditada pelo
processo de globalização neoliberal vem, a olhos vistos, atuando sob múltiplas
formas, de tal modo que, não raro, somos nós próprios inclinados a assimilá-los
e reproduzi-los, em nosso dia-a-dia, fazendo ouvidos moucos ao alerta de Paulo
(Rm 12, 2) – “Nolite conformari huic saeculo (“Não se amoldem às estruturas
desse mundo!”), tentados que nos sentimos a pretender alcançar a Ressurreição
sem passar pela Cruz...
Essa
tendência de globalização neoliberal não se restringe, como se sabe, aos
espaços mediáticos. No campo científico-tecnológico, os avanços atestados pelas
recentes conquistas, por um lado, não raro se fazem em prejuízo da Natureza e
por cima de critérios éticos, enquanto, por outro lado, no tocante aos seus
aspectos positivos, não apenas não conseguem estender-se às maiorias
empobrecidas da população, como têm se concentrado em benefício de cada vez
menos pessoas e grupos. Fenômeno que se explica pelo caráter de crescente
monopolização que tem caracterizado toda a cadeia produtiva, seja no campo da
produção científico-tecnológica, seja no âmbito das demais atividades
econômicas, sem esquecer a indústria cultural, todas hegemonizadas pelo setor
financeiro, justamente o mais parasitário.
Como avalista-mor de tal cadeia
monopolista, atuam as grandes potências do Capitalismo – o G7, à frente os
Estados Unidos, hoje mais do que ontem, transformadas em “comitê” dos grandes
conglomerados transnacionais. Haja vista o que vêm fazendo as transnacionais do
petróleo, junto às quais a família Bush tem uma história não desprezível.
De fato, mediante os organismos multilaterais (FMI,
Banco Mundial, OMC, etc.), igualmente sob o controle do G7, as grandes
potências formulam e impõem aos países periféricos, com a cumplicidade de seus
respectivos governantes, políticas econômicas de efeito reconhecidamente
perverso.
Disso tem sido exemplo a imposição da política
impropriamente chamada “Estado Mínimo”, que, associada à política de privatização
do patrimônio público dos Estados nacionais periféricos, tem se convertido em
eficaz estratégia de formação de fundos públicos para assegurar o pagamento do
serviço da dívida e(x)terna, entre outros mecanismos de pilhagem adotados, de
forma velada ou expressa.
Tal contexto implica um novo papel
para os Estados nacionais. Há algum tempo atrás, a despeito de suas conhecidas
limitações, não se questionava a responsabilidade dos Estados nacionais quanto
ao seu dever de formulação, financiamento e implementação de políticas sociais
tidas como essenciais, como educação, saúde, transporte coletivo, segurança
pública, entre outras.
Se antes da era Reagan-Thatcher, os
Estados nacionais periféricos já amargavam imposições do Capital, com o avanço
e enraizamento do paradigma dito neoliberal, as estratégias de sucateamento e
desmonte das políticas sociais, combinadas com a adoção de sofisticados
instrumentos de pilhagem (política de privatização e endividamento,
volatilidade do capital financeiro, remessas de lucro indevidas dos
conglomerados com representação no Brasil para suas respectivas matrizes,
aumento de fraudes quase sempre impunes, entre outros) têm resultado em
crescente redução, por parte dos Estados nacionais, de sua responsabilidade
social e de suas atribuições convencionais.
Graças ao crescente assujeitamento das instâncias
governamentais dos Estados periféricos ao novo desenho do establishment,
esses Estados vêm se transformando em instâncias secundárias de mera
legitimação oficial das decisões tomadas pelos organismos multilaterais
controlados pelo G7 e a serviço dos interesses dos grandes conglomerados
transnacionais, notadamente do seu setor financeiro.
Não bastassem estudos feitos por
analistas de reconhecida notabilidade internacional, a exemplo dos publicados
com freqüência por Le Monde diplomatique, além de vários escritos
produzidos por Ignácio Ramonet, documentos dos próprios órgãos multilaterais, a
exemplo do Relatório PNUD/ONU de 1996, atestam as contradições como a
concentração de riquezas acumuladas por menos de 400 pessoas, que retêm mais de
40% das riquezas mundiais...
2.
A impotência dos partidos de esquerda convencionais frente ao rolo compressor
das forças dominantes.
Nesse cenário de hiperconcentração
de riquezas e de poderes dos grandes conglomerados transnacionais, política e
militarmente sustentados pelos países centrais do Capitalismo, os partidos de
esquerda vêm amargando sucessivas e crescente derrotas, no que diz respeito ao
seu declarado propósito de transformação social. Quando muito, sobra-lhes o
direito de espernear, de se pronunciarem contrários ao modelo imperante, não
tardando a voltar a conformar-se à agenda oficial.
No caso do Brasil, partidos como o
PT, o PCdoB, o PSB, o PDT, mesmo com enormes avanços no plano eleitoral (caso
do PT), não apenas não conseguem fazer avançar suas propostas de mudança, como
tendem a conformar-se aos padrões ditados pela ordem dominante, ora sob o
pretexto de que as mudanças têm que vir lentamente, ora sob o argumento de que,
sendo irreversível o espectro do atual neoliberalismo, não restaria outra opção
senão a de buscar tirar proveito da situação dominante. Com raras exceções,
passariam de partidos de resistência ao status quo à categoria que
Florestan Fernandes, com base em Marx, costumava chamar de “partidos da ordem”.
Por outro lado, a maior parte de
seus militantes que, nas décadas de 1970 e 1980, viviam engajados nos
movimentos e lutas sociais do campo e da cidade, na época de ascenso do PT e da
CUT, hoje restringe sua atuação às instâncias governamentais: gabinetes de
parlamentares, secretarias municipais e estaduais, e agora também nos espaços
ministeriais... São milhares de militantes, mulheres e homens, de reconhecida
qualificação acadêmica e política, que por distintas razões (por sobrevivência,
uns; outros por desejo de ascensão institucional; outros ainda por mudança de
aposta num horizonte utópico, a despeito de suas declarações em contrário...),
se distanciaram das lutas e dos movimentos sociais populares.
Tal redirecionamento político tem
implicado uma multiplicidade de conseqüências práticas (quase todas enormemente
prejudiciais aos interesses das classes populares), tais como: arrefecimento
das lutas, por falta de animadores engajados; maior exposição e vulnerabilidade
a iniciativas de cooptação; mudança de práticas e discursos numa direção de
conciliação com a ordem dominante, entre outras.
Conseqüências também no âmbito intrapartidário:
abandono das práticas democráticas de base; superestimação do peso dos
parlamentares nas decisões do partido; abandono às práticas
de nucleamento; desenfreada concorrência pela auto-reprodução
dos mandatos eleitorais, ficando o partido em segundo (ou terceiro?)
plano...
Se esse vai sendo, doravante, o
papel do partido, pode-se deduzir qual lugar passa a ser o reservado à classe
trabalhadora... A esse propósito, sempre me volta à lembrança um episódio a que
assisti, por ocasião de uma reunião de militantes partidários. Tratava-se de
avaliar o desempenho do PT. Enquanto os dirigentes se empenhavam em
auto-elogios pelos ganhos eleitorais, surge alguém a ponderar que o partido até
poderia ir bem, do ponto de vista dos resultados eleitorais, mas o problema era
saber se o povo também estava bem. Pergunta-chave para quem se pretenda de
esquerda! Não apenas para o plano partidário, aliás. Há de se estendê-la a
instâncias sindicais, eclesiais, associativas, entre outras.
Questão-chave, sim, porque vai
diretamente à raiz do problema. Numa perspectiva de esquerda, não se admite
que, em qualquer dessas instâncias, a luta por reivindicações de uma ou de
algumas categorias se sobreponha a, ou secundarize os interesses do conjunto
das classes populares.
3.
Uma nova sociedade é possível, com o protagonismo articulado de diferentes
sujeitos sociais comprometidos com rumo, métodos e posturas alternativos
Se cada vez mais surgem fatos e
episódios convincentes quanto ao esgotamento do potencial transformador do
modelo corrente de se fazer política, parece inútil persistir-se na mesma
tecla. Há de se encontrar caminhos e pistas conseqüentes com o projeto de
sociedade que se deseja construir. É hora – se já não estamos em atraso – de
ousarmos ensaiar trilhas alternativas, conseqüentes ao tipo de projeto que
desejamos construir.. Busca de alternatividade que implica, entre outras
condições, reduzir cada vez mais nossa aposta em caminhos já percorridos que se
têm mostrado ineficazes e mesmo falaciosos quanto ao rumo que pretendemos
alcançar.
No caso específico do contexto
atual, parece razoável falar-se no surgimento de forças sociais exercendo um
protagonismo de novo tipo, que não esteja condenado a reproduzir a trajetória
das experiências precedentes malogradas.
A quem ouse acompanhar a caminhada
dos movimentos sociais do campo e da cidade, não é surpresa constatar os
estragos que o ideário dito neoliberal, graças também à cooptação de antigos
militantes, tem logrado contra os movimentos sociais populares, em inquietante
refluxo, à exceção de alguns. Salta à vista o enorme retraimento – para não
dizer abandono - de militantes históricos, dos embates protagonizados pelos
movimentos sociais, à medida que aqueles militantes agora se fazem cada vez
mais presentes e atuantes ora na cena parlamentar, ora se reproduzindo
indefinidamente em cargos de direção sindical, ora ainda em assessoria a ONGs
de compromisso duvidoso com o protagonismo dos movimentos sociais...
Também do ponto de vista pedagógico,
vale a pena ter presente um conjunto de sinais dando conta da tendência que vem
prosperando especialmente nos partidos ditos de esquerda, notadamente a partir
dos anos 90, apontando para o esgotamento do seu potencial transformador:
-
o crescente afastamento das lutas e dos movimentos sociais por parte de
expressiva maioria de militantes, o que confirma o viés burocratizante, em
prejuízo do caráter instituinte, até então
predominante;
-
a militância passou a recorrer ao processo eleitoral como foco privilegiado –
por vezes exclusivo – de sua relação com as bases partidárias, pouco a pouco
transformadas de parceiras no cotidiano das lutas políticas em mera alavanca
dos embates eleitorais;
-
em parte, impelidos pelos graves efeitos do desmonte promovido pela
globalização dita neoliberal (desemprego estrutural,
extinção de milhões de postos de trabalho...); e, em parte, pelo desencanto e
resfriamento da aposta no horizonte revolucionário, nada desprezível é o número
dos que trocaram os embates classistas por fratricidas disputas internas por
cargos e posições, seja na máquina sindical, seja nos espaços
parlamentares/governamentais;
-
o maciço investimento do(s) partido(s) no processo eleitoral surtiu efeitos
significativos em pelo menos duas direções:
a) no âmbito estritamente eleitoral: a cada campanha
eleitoral realizada a cada dois anos, a esquerda partidária (PT e seus aliados)
lograva uma expressiva ampliação de seus quadros tanto nas instâncias
parlamentares quanto nos espaços governamentais ligados ao poder executivo
b) no plano ético-político: abandono
de práticas e discursos classistas; distanciamento dos princípios que inspiraram
a fundação do(s) partido(s); abandono dos critérios que orientavam o(s)
partido(s) a serem construídos pela base (a prática da atuação nos núcleos nos
locais de trabalho e moradia); progressiva tendência à centralização do poder
em certos nomes ou instâncias privilegiadas; crescente descompromisso dos
filiados em relação à manutenção do(s) partido(s), passando este(s) a ser
mantido(s) basicamente pelos eleitos, o que, na prática, implica a vigência do
conhecido “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”; afrouxamento dos
critérios de filiação partidária; progressivo agravamento da síndrome do
aliancismo; inobservância dos critérios democráticos que, nos primeiros tempos,
regiam a formação dos comitês eleitorais unificados; desvairada concorrência
interna entre os candidatos, conforme a lei do mais forte ou do mais esperto;
financiamento de fontes no mínimo duvidosas; conchavos celebrados à base de
interesses futuros (do tipo “eu o apóio agora, e você me apóia na próximas
eleições”); descolamento dos candidatos e dos eleitos em relação ao controle
democrático do(s) partido(s); estrelismo e briga pela auto-reprodução do
mandato (com vasta infraestrutura assegurada ao titular do mandato, a serviço
dos interesses individuais dos eleitos, tal como pelo figurino dos partidos “da
ordem”)...
-
crescente deslumbramento pelas instâncias parlamentares/governamentais, que
passam a ser tidas mais como fins em si mesmas do que como instrumento de luta,
o que é atestado, por exemplo, pelo apego ao mecanismo da reeleição permitindo
a uma única pessoa o exercício de sucessivos mandatos;
-
transformação do exercício parlamentar (ou em outros espaços governamentais),
que é uma eventualidade da condição de cidadão, em carreira profissional,
mediante sucessivas reeleições, implicando, na prática, abandono de sua
condição de trabalhador/de trabalhadora;
-
por último, mas não menos relevante, convém sublinhar o enorme impacto político-pedagógico da influência direta ou
indireta exercida por alguns milhares desses militantes/dirigentes sobre
milhões de trabalhadores espalhados por esse País...
Desnecessário lembrar que os sinais
acima mencionados não devem ser atribuídos à totalidade dos
militantes/dirigentes. Há, por certo, nesse(s) partido(s), quem aja diferente.
As costumeiras exceções que não infirmam, porém, a regra.
Se, por um lado, é fato essa
tendência, por outro, não se deve perder de vista os promissores sinais do
protagonismo articulado de distintas forças sociais emergentes, apontando numa
direção alternativa.
Às vezes, nas mesmas instâncias em
que se tem observado sinais da tendência burocratizante, pode ser percebida a presença
de pessoas e pequenos grupos descontentes com aqueles rumos. Tanto a dos
descontentes que se manifestam por meio de discursos irados, por vezes
bombásticos; quanto a d@s que preferem expressar sua ira de maneira mais
discreta nas palavras e mais eloqüente em seus gestos. Eram (e continuam sendo)
pequenos grupos espalhados por distintos espaços sociais, dentro e fora das
instâncias oficiais, dentro e fora dos partidos de esquerda; dentro e fora das
instâncias sindicais; dentro e foram dos espaços eclesiais; dentro e fora dos
movimentos sociais...
Se o rótulo da vinculação institucional já não
constitui o único critério definidor do perfil dos sujeitos emergentes, numa
perspectiva de alternatividade, então que outros critérios e iniciativas passam
a apontar, nessa direção?
4. Traços identitários dos sujeitos emergentes, numa perspectiva de
alternatividade
Se em outras dimensões da vida humana
e social, já não se concebe um esforço identitário pré-definido, acabado, posto
que os Humanos, como seres perfectíveis que são, vivem mergulhados no plano
histórico, no terreno político tampouco é razoável pretender-se uma identidade
pronta. Vale a mesma orientação para a tentativa de um esboço de alguns traços
identitários de uma força emergente que se pretenda comprometida com a
alternatividade, nas mais distintas esferas da vida social.
Para começo do esboço, cumpre ter
sempre presente a direção dos seus passos. Se, de fato, se pretende construir
um projeto de sociedade no campo da alternatividade, isto é, que se contraponha
claramente à sociabilidade capitalista, cada passo (individual ou coletivo)
deve refletir, mais no chão das relações do cotidiano do que no plano da
retórica, atitude de inevitável combate às práticas e à grade de valores da
ordem dominante (individualismo, oportunismo, concentração de poder em mãos de
poucos, concorrência, acomodação ao status
quo, apego desmedido a cargos e funções concentrados em uma única pessoa ou
num pequeno grupo, recusa à autocrítica, etc.) e, ao mesmo tempo, de
compromisso com a construção de relações alternativas, pautadas por valores que
apontem em direção oposta aos da ordem imperante (decisões tomadas pela base,
direção colegiada, alternância de cargos e funções, espírito crítico e
autocrítico, postura de respeitosa autonomia em relação aos dirigentes, recusa
da prática dos métodos combatidos nos inimigos, coerência entre prática e
discurso, fidelidade continuamente testemunhada aos interesses das classes
populares, inclusive em situações de clara infidelidade cometida por quem quer
que seja.
Pelo que ficou acima esboçado, é
possível perceber-se que rumo e procedimentos se acham de tal modo afinados,
que transgredir um implica inobservância do outro. De um lado, merece toda a
atenção o ensinamento da personagem José Dolores, do famoso filme “Queimada” –
“É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber
para onde ir”; por outro, não devemos medir esforço em perceber que o jeito de
caminhar no rumo almejado diz muito da intenção e da postura ético-política do
caminhante.
No que concerne ao rumo em
construção, o horizonte de quem se põe a caminho, numa perspectiva de
alternatividade, não poderia ser outro senão o da classe trabalhadora ou, como
costuma expressar Ricardo Antunes, “os-que-vivem-do-trabalho”, princípio que,
na perspectiva d@s cidad@s que se reconhecem como crist@s, deve coincidir com
os critérios do Reino de Deus (Mt 25, 31-45; Mc 10, 42-45; Lc 4,16-19; Jo 10,
10-16), com os do Seguimento de Jesus, tão bem explicitados na gesta dos Atos
dos Apóstolos..
Contribuem nesta direção todos os protagonistas
(coletivos e individuais) que, ininterruptamente e de modo transparente,
apostem na força transformadora das classes populares, o principal protagonista.
E, ao permanentemente darem prova de sua fidelidade à classe trabalhadora, não
conciliem com, nem sucumbam à prática – hoje moeda corrente – do aliancismo, do
colaboracionaismo ou dos conchavos interclassistas, numa vã tentativa de servir
a dois senhores...
Nos escritos produzidos ao longo de sua vida, Paulo
Freire, sempre que analisava a conjuntura, costumava lembrar ou explicitar uma
verdade freqüentemente esquecida por segmentos que se pretendem de esquerda: a
de que se torna impraticável a quem quer que se pretenda favorável aos
interesses da classe trabalhadoras, não se pronunciar contrário aos interesses
dominantes, implicando uma postura de denúncia e oposição aos interesses dos
setores dominantes.
No âmbito parlamentar, vez por
outra, estamos a ler ou a escutar alegações autojustificativas de mandatários,
em relação a atitudes e votos que contrariam suas declaradas posições de defesa
aos interesses das classes populares. Declarações do tipo;”Eu votei, porque o
partido fechou questão” ou “Embora eu tenho votado contra, eu recebo aquela
verba, porque se não, ela fica para o Estado.” E daí?
No presente momento, alguns
parlamentares do PT estão ameaçados de expulsão, porque se recusam a votar
contra notórios compromissos históricos do Partido. A direção do PT tenta
justificar que há liberdade de opinião, mas, na hora do voto, todos devem
fidelidade à posição do Partido. Posição que estimula atitudes esquizofrênicas,
à medida que induz que as pessoas externem uma opinião logo desmentida pela
prática do voto: falar, podem à vontade, desde que ajam em contrário...
Contradição que pode ser observada, também, em
posições corporativas freqüentes nas lides sindicais com viés burocratizante,
em que, sob o pretexto de se lutar pelos interesses da categoria “x”, “y” ou
“z”, não raro se perdem de vista os mais elementares interesses do conjunto da
classe trabalhadora. Por exemplo, em vez de se fortalecer a luta em defesa do
Sistema Único de Saúde (e de outras políticas públicas), parte-se para a defesa
e adoção de planos de saúde ou similares....
Outro traço que compõe o perfil de
um partido alternativo acena para a formação de um partido-movimento, cujo
maior emblema passa a ser o da figura de um peregrino, que faz do conjunto dos
Humanos sua família, e do Planeta sua pátria, sem que isso implique qualquer
perda de seus traços identitários (de subjetividade, de gênero, de
espacialidade, de etnia, de idade, de cidadania, de condição profissional, de
sua condição de ser cósmico e de sua relação com o Sagrado). Em suma, um
partido-movimento necessariamente anticapitalista e, ao mesmo tempo,
ininterruptamente comprometido com a construção de uma sociabilidade
alternativa, marcada pela justiça social, pela solidariedade, pela radical
democratização do saber, do ter, do poder.
Um partido que seja capaz de romper
as fronteiras intra e inter-partidárias, e de fincar raízes em diferentes
segmentos da sociedade civil (movimentos sociais populares, setores
progressistas de igrejas, etc.). Um partido que se constitua de pessoas e
grupos atuando em qualquer espaço social, desde que comprometidos (mais pelas
práticas do que pelo discurso), a partir dos embates do cotidiano, com o
combate aos valores do Capitalismo, e com a construção permanente e
ininterrupta de novas relações humanas e sociais, de fidelidade à causa
libertadora dos empobrecidos.
Esse esboço de partido instituinte
requer, por certo, um perfil de militantes que corresponda aos desafios e
exigências sócio-históricas, de modo a romper com as práticas e concepções
ainda largamente dominantes. Trata-se, por exemplo, de militantes que
-
primem, no plano subjetivo, pelo seu desenvolvimento integral, buscando
aprimorar, de forma dosada, todas as suas potencialidades de ser cósmico e de
ser humano+;
-
sejam pessoas profundamente amorosas, apaixonadas pelo Povo, não importando que
país ou região habite, e pela nossa Casa Comum, a Mãe-Natureza;
-
sejam capazes de recuperar a primazia da perspectiva classista sobre quaisquer
interesses de segmentos particulares, do âmbito local ao internacional, ou
melhor dito, capazes de experienciar nos embates locais sua dimensão
internacional, ao tempo em que, ao participarem de lutas internacionais, são capazes
de perceber as implicações locais;
-
se refontizem incessantemente da força revolucionária da memória histórica,
recuperando lutas, façanhas e conquistas do passado e respectivos
protagonistas;
-
não abram mão do persistente exercício de crítica e auto-crítica;
-
sua permanente disposição à autocrítica, alimentada pelo contínuo exercício da
mística revolucionária, os ajuda sobremaneira a tornar viva e eficaz, enquanto
intervenção presentificada, a memória histórica, de modo a não engessarem num
passado longínquo e estéril suas referências de luta e de militância;
-
ao apreciarem com carinho a memória e o testemunho exemplar de revolucionários
e revolucionárias de ontem e de hoje, cuidam de evitar transformá-los em
“gurus”, preferindo apostar mais na causa, no projeto, do que em seus
protagonistas, e se a estes também prestam reverência, o fazem na medida em que
encarnam o projeto;
-
constante acompanhamento crítico da realidade social, mediante o recurso a
fontes fidedignas, em função do que tratam de aprimorar suas estratégias de
intervenção;
-
efetiva vigilância no sentido de assegurar condições irrenunciáveis do
protagonismo dos distintos segmentos da sociedade civil, em sua luta de
libertação;
-
no relacionamento com as pessoas e grupos de base, saibam pôr em prática uma
pedagogia da escuta, aprendendo com os outros e buscando também exercer sua
dimensão docente;
-
tenham consciência de que a qualidade de sua aposta na Utopia é constantemente
testada na oficina de tecelagem do Cotidiano, a partir dos gestos minúsculos e
aparentemente invisíveis;
-
sejam pessoas fortemente desinstaladas e desinstaladoras, ao mesmo tempo
inquietas na tomada de iniciativas, e profundamente serenas, nos momentos de
crise e de impasse;
-
estejam conscientes de que navegam sobre águas revoltas, e quase sempre navegam
à contra-corrente, o que implica uma postura ao mesmo tempo firme e serena de
lutadores sociais;
-
mostrem-se efetivamente empenhados no seu processo de formação continuada, nas
distintas dimensões do cotidiano e da vida pessoal e grupal;
-
exercitem, a cada dia, a mística revolucionária, em virtude da qual asseguram a
renovação de seu compromisso ético-político, no horizonte de uma Utopia
libertadora.
5. A contribuição específica d@s crist@s
católic@s
No momento em que nos preparamos
para a realização de nossa próxima Assembléia Pastoral da Arquidiocese da
Paraíba, convém partirmos do chão do cotidiano do nosso Povo, especialmente dos
pobres e sofredores, e, neles inspirados, após bem avaliarmos a caminhada pastoral
de nossa Igreja particular, nos últimos anos, elegermos as prioridades de nossa
ação pastoral para o próximo período.
Quaisquer que sejam as prioridades
pastorais a serem eleitas, elas devem tomar como referência o Seguimento de
Jesus, a Quem nossa Igreja é chamada a testemunhar e renovar constantemente seu
propósito e suas práticas de fidelidade, seguindo a direção apontada pela Constituição
Dogmática Lúmen Gentium, quando
afirma que “assim como o Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e na perseguição,
assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho a fim de comunicar aos homens
os frutos da salvação.” (LG, n. 8).
A partir de nossa breve incursão
analítica pelo atual quadro conjuntural, do qual são emblemáticas as cifras do
recente Relatório do PNUD, órgão da ONU para o desenvolvimento, dando conta de
que os principais gastos efetivados pelas grandes potências foram com produtos
supérfluos (US$ 8 bilhões foram ue pistas evangélicas nos inspiram na definição
de nossas prioridades pastorais?
Considerações sinópticas
O propósito axial das presentes
notas foi enfocar o sentido e traços das manifestações históricas da dialética
instituinte X instituído. Trazer de novo a lume múltiplos aspectos da tensão
existente entre o ímpeto subversivo dos movimentos sociais populares (de ontem
e de hoje) e sua tendência à institucionalização, vale dizer, ao arrefecimento
ou à perda de suas potencialidades transformadoras.
Remetendo, de passagem, a situações
históricas precedentes, cuidamos de pontuar aspectos mais relevantes do atual
contexto sócio-histórico, principalmente no que resulta como implicações
ético-políticas para os protagonistas de mudanças sociais, numa ótica de
esquerda.
Ao reconhecermos a diversidade de
espaços sociais em que se produz tal tensão, optamos por priorizar como locus específico de apreciação os
embates travados no espaço dos partidos considerados de esquerda. Tal incursão
se desenrolou tendo como referência axiológica o que aqui se chamou de
horizonte utópico libertador.
No intuito de apresentar o modus operandi da tendência
burocratizante que se observar dominante em parcela significativa dos
protagonistas partidários considerados de esquerda, cuidamos de exemplificar
situações que sinalizam nessa direção.
Embora reconhecendo tratar-se de
tendência hoje dominante, cuidamos de apontar e caracterizar algumas
iniciativas partidárias que apontam numa direção de alternatividade.
O último aspecto trabalhado
reporta-se a um elenco de características requeridas pelos protagonistas que
apostam na construção de um projeto alternativo, anticapitalista e dotado de
sinais correspondentes a um projeto utópico libertador.
+
(“O ser humano - sustenta Marx, em seus Manuscrtos
Econômico-Filosóficos -“apropria-se de sua omnilateralidade, de modo
integral, portanto como ser humano total” (“Der Mensch eignet sich sein
allseitiges Wesen auf eine allseitige Art an, also als ein totaler Mensch.” (Ökonomisch-philosophische Manuskripte,
III, XXXIX, VI-VII, extraído da página http;//www.mlwerke.de/default.htm).
João Pessoa, 8 de Março de 2001.
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