EM BUSCA DE
UMA SOCIABILIDADE ALTERNATIVA:
A
CONTRIBUIÇÃO DA PEDAGOGIA E DO LEGADO FREIREANOS
Alder Júlio Ferreira
Calado[1]
Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso.
Eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu
brigo para que a justiça social se implante antes da caridade. (Paulo Freire)
Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é
necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós. (Agostinho
Neto)
Um sonho comum nos irmana neste V Colóquio Internacional
Paulo Freire: o de ensaiar passos na direção da construção de uma sociabilidade
alternativa, inspirada em valores de que está prenhe a Pedagogia freireana,
manifestos, não apenas em suas obras, como também em sua trajetória de vida,
como expressão individual de um legado coletivo.
Se é verdade que nos batemos por uma sociabilidade
alternativa, certo igualmente é que nos sentimos historicamente instados a
ensaiar, desde já, traços delineadores do perfil dessa sociabilidade, que
pretendemos alternativa, bem como as condições concretas do seu processo de
construção. Sociabilidade alternativa, sim. Mas, qual? Em relação a quê? Quais
os traços ético-políticos e culturais que devem conformá-la? Que condições e
caminhos nos conduzem nessa direção? Quem são seus protagonistas? Que práticas
alternativas se esperam desses protagonistas? Qual o lugar das relações do
Cotidiano na construção desse processo? Trata-se de uma Utopia ainda
completamente por construir ou podemos assinalar, já no presente, experiências
alternativas que dela se acham grávidas? Em que o legado freireano nos inspira
nesse projeto? Esperamos que questionamentos como esses nos fortaleçam o ânimo
de protagonistas individuais e coletivos, nessa mesma direção.
Partamos de uma constatação: não estamos contentes com o
atual quadro social dominante. Há por certo, em nosso mundo, experiências que
dignificam a condição humana. Não podemos perdê-las de vista. Elas nos
alimentam a esperança, presentificando, de algum modo, nossa Utopia. São,
porém, exceção, bem o sabemos. As sombras ainda prevalecem largamente. As
desigualdades sociais se agigantam. Povos inteiros se vêem impedidos de viver
com decência, enquanto, às suas expensas, poderosos grupos econômicos,
ancorados em superpotências e seus organismos multilaterais, concentram em suas
mãos crescentes parcelas de rendas e de riquezas, graças à vigência de
mecanismos de pilhagem, dos quais se usa e abusa, com ou sem manto legal.
Organicamente associadas a essas gigantescas e crescentes
desigualdades sócioeconômicas, proliferam, nas demais esferas da realidade
social, inquietantes sinais de barbárie a questionarem os fundamentos dos
postulados civilizatórios ocidentais. Tal quadro de desigualdades sociais
projeta-se em outros cenários da realidade social. Não se trata apenas – e já
seria inaceitável! – de considerar as brutais conseqüências na área
sócioeconômica, materializadas no crescimento incessante das massas de
excluídos dos bens e serviços essenciais (concentração de terras, desemprego
estrutural, desalojamento de multidões, falta de saneamento básico, índices
assustadores das doenças da pobreza, degradação da qualidade social do sistema
governamental de ensino, sucateamento ou desmonte dos serviços de saúde, níveis
insuportáveis de violência social, crianças e adolescentes de rua, alto índice
de jovens vítimas fatais da marginalização e da violência social, desrespeito
aos direitos dos idosos, sistema prisional desumano e reconhecidamente seletivo,
crescente degradação das condições ambientais do Planeta...).
A isso também se associam as manifestações de iniqüidade
social dos aparelhos de Estado (colossal distorção dos organismos de
representação político-partidária, ação seletiva dos organismos do poder
judiciário, hipertrofia do executivo, assujeitamento dos Estados nacionais
periféricos a forças exógenas, aparelho repressivo a serviço do status quo), a
política cultural, a política de comunicação, a política de informação
controladas a sete chaves por poderosos conglomerados transnacionais, etc.
Essas e outras áreas refletem e reforçam, de modo entrelaçado, distintas
nuanças da sociabilidade ainda hoje dominante.
Essa sociabilidade que hoje predomina largamente não é
definitivamente a dos nossos sonhos. Não era a sociabilidade dos sonhos de
Paulo Freire e tantas e tantos outros, nos diferentes continentes, em cujo
testemunho de vida buscamos nos pautar.
Então, não sendo essa, qual é mesmo aquela em que
apostamos? Quais os traços que uma sociabilidade alternativa deve apresentar?
No plano econômico, não sendo o império dos poderosos conglomerados econômicos,
em que organização apostamos como alternativa? Como, ainda nesse terreno,
caminhar em direção a processos de distribuição socialmente eqüitativa das
riquezas e das rendas? Como fazer vingar uma cultura da solidariedade, da
partilha, da cooperação, em contraposição aos valores da concentração, da
concorrência exacerbada, do lucro como meta maior? Na esfera política, o que
caracterizaria tal alternatividade? Como proceder a uma efetiva
descentralização do poder, em suas mais distintas expressões, do Estado, das
instituições, inclusive a família, a escola, as igrejas, a mídia, entre outras?
No âmbito dos valores, quais as prioridades a serem invertidas, nos mais
distintos espaços de convivência? Como cuidar bem da individualidade sem
sucumbir ao individualismo? Como recuperar o sentido do coletivo sem ceder ao
coletivismo, que asfixia a dimensão individual? Como fazer prosperar a cultura
da igualdade social que saiba cuidar adequadamente das diferenças? Como fazer
interagir os pólos das relações sociais de Gênero, de modo a respeitar suas
especificidades, sem jamais perder o horizonte da condição humana que os une,
que os sustenta e lhes dá sentido? Como reavaliar nossas relações
inter-étnicas? Como lidar alternativamente com a dimensão da Espacialidade, que
privilegia ocidentais em detrimento de não-ocidentais; cidadãos de megalópoles
em prejuízo de quem mora em pequenas cidades interioranas; habitantes urbanos
em detrimento de quem mora no campo? Como valorizar a condição humana, sem
resvalar em direção a um antropocentrismo, em detrimento de uma amorosa relação
cósmica? Como exercitar a gratuidade nas relações com o Sagrado, como
alternativa à tendência, hoje dominante, de relação de mercado?
Tomar a braços um tal projeto de sociabilidade supõe também
ter presentes seus protagonistas. Quê perfil de protagonistas se faz necessário
para tal empreitada? Que novas práticas deles e delas se esperam? Que condições
devem ser priorizadas, nessa direção?
Ainda campeia amplamente entre nós a cultura
presidencialista, que prefere atribuir a outrem prerrogativas comuns a todos os
cidadãos, a todas as cidadãs. Nesse sentido, o instituto da representatividade
política, legado secular do Ocidente, por ser assumido como dogma, tem
contabilizado incessantes e crescentes páginas sombrias, em nossa história
recente. A Democracia representativa passa, talvez como nunca antes, por
momentos cruciais de descrédito. O que está na origem disso? Qual a parcela de
responsabilidade nesses impasses da parte dos protagonistas, que, descontadas
as campanhas eleitorais, atuam como espectadores? Que novas práticas se
habilitam a superar tal impasse, tantas vezes gerador de escândalos inomináveis?
Que condições devem ser buscadas, nessa direção?
Não vamos nos decepcionar, nessa empreitada, com o legado
freireano. De Paulo Freire e de tantas e tantos outros que lhe são afins. Nesse
processo, vale bem destacar que o legado freireano tem muito a nos oferecer,
sobretudo quando ousamos situar tal desafio no chão das relações do Cotidiano.
Eis, em breve, o roteiro que propomos
a uma reflexão mais ampla, da qual aqui buscamos repercutir alguns aspectos,
começando por ensaiar um olhar mais detido para as formas de sociabilidade hoje
dominante.
Exercitando um olhar crítico-avaliativo da
sociabilidade hoje dominante
O esforço de lançarmos um olhar crítico-avaliativo em
direção à atual conjuntura mundial resulta de nossa incessante busca de compreensão
das relações sociais que configuram o atual quadro sócio-histórico, como
primeiro passo necessário a um efetivo compromisso de mudança.
Vivemos um contexto que, como é sabido, traz as marcas do
processo de Globalização, hegemonizado pelo Capitalismo, em sua fase/face
atual. Contexto, por conseguinte, de extrema complexidade, manifesta, por
exemplo, por um múltiplo quadro de crises, ou dito de outra forma: por uma
multiplicidade de dimensões da mesma crise, cujas dimensões se projetam, ao
mesmo tempo, e de maneira diversa, na sociedade, no Estado, no Governo, na
grade de valores de cada sociedade, nas mais distintas esferas da realidade, a
suscitar um quadro de tantas dúvidas, incertezas e inseguranças. Umas,
saudáveis, enquanto elementos que devem instigar incessantemente o
aprimoramento da condição humana; outras apresentando-se como sintomas de
extrema gravidade.
Cenário de contradições, o nosso mundo também apresenta, a
par de tantos descaminhos, relevantes conquistas e avanços que dignificam a
condição humana, e que não devem ser perdidos de vista.
No plano científico-tecnológico, as conquistas são de
múltipla ordem, nas mais distintas áreas de saberes. À parte algumas
manifestações de infundada euforia, ora a reeditarem antigas práticas do
Cientificismo, de modo a superestimar a ciência pela ciência, a técnica pela
técnica, ou a ciência e a técnica como meros instrumentos a serviço dos
interesses do mercado, entendemos como bem-vindas conquistas relevantes em
tantas áreas, tais como na informática, na biotecnologia, na engenharia
genética, na fibra ótica, nos novos materiais, etc., etc. Igualmente, no âmbito
das relações humanas e sociais, comemoramos avanços pontuais, em distintas
áreas, notadamente naquelas em que novos paradigmas são exercitados, sem que
neguem necessariamente a validez parcial ou não de velhos paradigmas. Trata-se,
a propósito, não de se recorrer ao novo pelo novo, ou de se rejeitar o velho
pelo velho, em função de sedutores critérios ditados por modismos, mas de se
avaliar e reavaliar sua eficácia como ferramenta teórica de enfrentamento
concreto dos desafios atuais, numa perspectiva libertadora.
Seja como for, e feitas as devidas reservas, importa
reiterar que se trata de conquistas relevantes, resultantes do que se tem
chamado de terceira revolução tecnológica. Avanços que reconhecemos como sinal
alvissareiro das potencialidades humanas. Preocupa-nos, porém, que nem sempre
tais conquistas venham sendo devidamente protagonizadas e venham sendo
aplicadas em favor da efetiva melhoria da qualidade de vida do Planeta e da
maioria dos habitantes da Terra. Cabe-nos, sim, empenhar-nos em saber como e
por que tudo isso tem tomado essa direção.
O processo de acumulação de riquezas, especialmente no modo
de produção capitalista, pressupõe, como se sabe, o recurso a mecanismos de
pilhagem, com ou sem manto legal. Impossível que tenha lugar dentro de um
quadro de relações eticamente aceitável. A não ser que se trate da “ética
capitalista”. A despeito das variações históricas e da intensidade e forma dos
mecanismos de acumulação, uma marca lhe é peculiar: apelar para a exploração
das camadas populares.
Na Social Democracia, por ser menor a gula dos
protagonistas, estes até conseguiam, aqui, ali, passar a idéia de respeitar
certos limites éticos. A exploração se fazia, mas por conta do intenso apelo às
políticas compensatórias, passava-se uma idéia de respeito aos direitos dos
trabalhadores. Isso muda, porém, com o advento do chamado Neoliberalismo, mais
intensamente presente a partir dos governos Margareth Thatcher e Ronaldo
Reagan, no final dos anos 70 e começos dos anos 80.
A máscara supostamente humana do Capitalismo caía
definitivamente. E, sobretudo desde então, a que se passa a assistir? De forma
resumida, rememoremos algumas de suas principais características:
• extraordinária
intensificação do processo de globalização (fenômeno antigo, mas recentemente
com ritmo inédito), a afetar as mais distintas esferas da realidade social;
• no
âmbito econômico, tem lugar o processo de re-estruturação produtiva (em moldes
capitalistas, claro), impulsionado pela chamada terceira revolução tecnológica
em curso (na informática, na microtecnologia, na engenharia genética, na
robótica, na fibra ótica, nos novos materiais, etc., etc.);
• a
entrada em cena do segmento financeiro do Capital como hegemônico, o que não
quer dizer sem ligação orgânica com os demais setores componentes da malha do
Capital;
• o
agressivo assédio dos grandes conglomerados transnacionais, a imporem
notadamente aos países periféricos, por meio das grandes potências e de seus
organismos multilaterais, políticas econômicas e sociais de privatização do
patrimônio público, de sucateamento e desmonte dos serviços públicos essenciais
(no caso da educação, por exemplo, vale assinalar que o Banco Mundial chega a
ser apontado como um órgão que atua como verdadeiro ministério da educação dos
países periféricos...);
• a
quase totalidade dos governos dos países periféricos rende-se à imposição,
inclusive procedendo à alteração de sua própria Constituição e leis ordinárias,
a fim de adequálas à nova ordem dominante;
• feito
à moda do Capitalismo em sua atual fase/face, isso tem acarretado fenômenos
como o desemprego estrutural, a hipertrofia da economia informal, precarização
das relações de trabalho, supressão ou drástica redução dos direitos sociais,
privatização de empresas estatais, reordenamento jurídico ao gosto do mercado,
sucateamento ou desmonte dos serviços públicos essenciais, entre outros
desdobramentos;
• adequação
da mídia à nova onda do mercado e sua grade de valores;
• expansionismo
militar, à frente o Governo Bush, mas com o apoio de governos das potências do
G7 e de conglomerados transnacionais;
• discriminação
(expressa ou velada) das vontades dos protagonistas da ONU, manifestada, por
exemplo, pelo privilégio do veto dos membros permanentes do seu Conselho de
Segurança, o que depõe, com toda a evidência, contra qualquer propósito
aceitável de se respeitar o declarado jogo democrático;
• consentimento
objetivo (expresso ou tácito), a qualquer dos protagonistas do Conselho de
Segurança da ONU, da iniciativa de invasão a outro país, qualquer que seja o
motivo alegado (vide a recente invasão do Iraque);
• autorização
seletiva do odioso privilégio de fabricação ou armazenamento de armas de
destruição em massa (não apenas as armas químicas e biológicas): como no caso
das grandes potências e de seus aliados;
• práticas
explícitas de pilhagem, por parte das grandes potências, em favor de poderosos
conglomerados transnacionais, contra os países periféricos, seja mediante a
política de crescente endividamento e de imposição aos Estados nacionais
periféricos de políticas de privatização do seu patrimônio público, seja por
meio do flagrante desrespeito às regras elementares de reciprocidade que devem
reger as relações comerciais entre os povos, seja por meio da “ciranda
financeira” do chamado capital volátil, ou ainda por meio de evasão de divisas
e de “n” mecanismos de sonegação combinados com a escandalosa renúncia fiscal
feita por instâncias governamentais;
• controle
pelas grandes potências dos principais blocos econômicos mundiais, inclusive no
caso da proposta da ALCA;
• abusiva
liberdade de movimento e de lucro extorsivo dos conglomerados transnacionais
(inclusive os financeiros), sem qualquer controle social, do que resulta que o
Capital vai e fica onde quer, enquanto aos excluídos de todo o mundo, inclusive
os trabalhadores de suas próprias ex(?) colônias, são erguidos muros de
apartação e draconianas leis de punição aos que se atrevem transpô-los...
Tantas outras marcas teríamos por
certo a acrescentar. Restinjamo-nos, porém, a essas, tendo bem presente a
expressiva dinâmica do entrelaçamento das diferentes esferas da realidade
social. Ou seja: o que aparece aqui como componente mais direta da esfera de
produção carrega também fortes marcas de concepções, práticas e formas de
exercício do poder. De modo semelhante, o que à primeira vista se manifesta
mais diretamente pertinente à esfera política, traz consideráveis implicações e
intersecções de natureza econômica e cultural... A esse aspecto de dinâmico
inter-relacionamento das diferentes dimensões da realidade humana e social
voltaremos, mais adiante.
Em busca de uma sociabilidade alternativa:
horizonte, caminhos, protagonistas e posturas
Se já nos é tarefa hercúlea traçar as linhas gerais da
conjuntura atual, o quê dizer de uma outra tarefa não menos complexa, mas também
irrenunciável, que é a de situarmos, em grandes linhas, o que estamos
entendendo por uma sociabilidade alternativa à (des)ordem dominante: seus
traços fundamentais, seus protagonistas, seus mecanismos de organização, sua
grade de valores e de apostas?
Com o sentimento de que a ocasião
permite apenas um ligeiro esboço de nossas inquietações, e animados pelo
convite freireano de ousarmos o inédito viável, propomos partilhar com os
participantes deste Colóquio, pelo menos, o que entendemos constituir os pontos
axiais de uma sociedade que, numa perspectiva freireana, se afirme como
alternativa ao modelo de sociabilidade dominante.
Ir para onde?
Começamos com uma observação preliminar. Duas atitudes
extremadas e falaciosas merecem, de partida, nossa vigilância. De um lado, a
pretensão de se ter, de antemão, um modelo acabado de sociabilidade, como se
fora algo concebido e viabilizado fora do plano histórico. O passado recente e
menos recente, de triste memória stalinista, nos sirva de lição... Por outro
lado, há que se atentar, não menos, ao risco muito presente em certa corrente
“pós-moderna”, de se presumir fadada ao fracasso toda tentativa de se desenhar,
ainda que a largos traços, um horizonte alternativo de sociabilidade. Uma
atenção retroper-prospectiva, para além dos marcos da Ocidentalidade (o que não
quer dizer desconsiderá-la), ao imenso legado da Humanidade, com seus limites e
potencialidades, nos ensejará pistas alvissareiras, na direção da
alternatividade que buscamos construir.
Se temos consciência de que o horizonte de sociabilidade
hoje dominante não nos satisfaz, isso é possível graças à nossa percepção e à
experiência concreta de seus frutos. Como “a árvore se conhece pelos frutos”,
chegamos à conclusão de que o atual horizonte de sociabilidade não atende ao
que queremos. Só nos resta ousar ir em busca de outro, ainda que às apalpadelas
e mesmo que isso implique muitos equívocos, muitos achados equivocados.
Perfectíveis, seres inconclusos, aprenderemos também com nossos erros. Ainda não
sabemos bem qual é o horizonte alternativo de sociabilidade, mas já temos
alguns traços dos quais podemos partir, abrindo caminho em busca do inédito
viável. Esse horizonte comporta traços dinamicamente inter-relacionados nos
distintos espaços do viver, que passamos a focar.
- No plano mais pronunciadamente econômico - Há um texto de
Paulo Freire aparentemente pouco trabalhado, cuja publicação pela Brasiliense
data de 1979, intitulado Multinacionais e Trabalhadores no Brasil, em que o
autor trata de levantar e analisar as principais empresas transnacionais
operando também no Brasil. Sua refinada percepção sociológica do alcance
mundial do Capital nos anima, ainda hoje, a ir em busca incessante de um tipo
alternativo de organização social, que, entre outras mudanças, passe por uma
democratização efetiva dos bens de produção, o que implica um amplo processo de
desprivatização das fontes de vida (terra, subsolo, água, rios, florestas,
mares...), bem como das riquezas fundamentais à qualidade de vida do Planeta e
dos humanos, nos mais variados setores da economia. Não importa tanto o nome
que tal desenho de sociabilidade venha a ter. Importa, sim, o conteúdo de suas
relações, efetivamente testadas no chão do cotidiano dos povos, dos grupos e
das pessoas de todo o mundo. Mesmo não importando o nome, em se tratando de uma
das faces do freireano inédito viável, estamos convencidos de que não se
assemelharia a experiências de sociabilidade fundadas em exploração e dominação
de classes, por meio de seu respectivo Estado.
No plano mais marcadamente político – Como vimos
enfatizando, os espaços sociais se acham impregnados de relações que, a
despeito de suas especificidades, ora se apresentando mais em sua dimensão
econômica, ora em seu perfil mais pronunciadamente político, ora tomando uma
feição mais fortemente cultural, se acham mutuamente permeadas. Isso também se
dá nas relações que se observam mais expressamente no campo político ou das
relações de poder, em seu sentido macro e em seu sentido micro.
Também aqui, o espectro dominante nas macro e
micro-relações é caracterizado pelo verticalismo. Nelas dificilmente tem lugar
o cuidado com o caráter de reciprocidadade, a não ser como exceção. E, mesmo
assim, não raro, trata-se de situações restritas a certos aspectos bem
limitados dos diferentes espaços sociais, assumindo por vezes uma feição de
mero verniz, sugerindo claramente um apelo a medidas maquiadoras, de cunho
assistencialista.
Em sua Pedagogia do Oprimido, Freire concluía seu ensaio
apostando no que ele chamou de síntese cultural, que ele situa como uma das
características de sua teoria da ação dialógica, e em que denunciava como ação
antidialógica “a intenção de perpetuar na estrutura as situações que favorecem
a seus agentes.” (p.137).
Nesse sentido, seriam inconcebíveis tanto a convivência
tranqüila com mecanismos hoje dominantes, tais como a concentração em mãos de
algumas centenas de grandes conglomerados econômicos, com seus paraísos fiscais
e tantos outros mecanismos de pilhagem, a maior parte das riquezas
coletivamente produzidas, como o recurso a propostas de alteração superficial,
de modo a manter o cerne da estrutura dominante, como alertava Freire, ao
afirmar que “o que pretende a ação cultural antidialógica é mitificar o mundo
destas contradições, a fim de obstaculizar o evitar, da melhor maneira
possível, a transformação radical da realidade.” (PO, p. 237).
A ONU, por exemplo, responde efetivamente aos desafios da
atualidade? São mesmo democráticas suas instâncias? Quem decide, na ONU,
efetivamente? Como atua o seu Conselho de Segurança, em especial os membros
permanentes desse Conselho? A prerrogativa do veto é também democrática ou um
privilégio que contradiz frontalmente os postulados democráticos?
Convém, a propósito, sublinhar que as manifestações desse
verticalismo dominante encontram terreno fértil também nas micro-relações.
Freire rejeita as medidas superficiais, não importando em que dimensão elas
ocorram, seja nos mecanismos estatais, seja nas relações de trabalho,
político-partidárias, sindicais, acadêmicas, pastorais, no âmbito das relações
de família, etc.
Do fundo dessa rejeição emerge, cristalina, sua concepção
de vida humana, expressa em seu existir, como ele, inspirado numa perspectiva
existencialista libertadora, sublinha claramente em Educação como Prática da
Liberdade, que o existir é mais do que o viver (cf. EPL, p. 40), é a referência
maior dos Humanos. Em Freire, o existir corresponde a um processo relacional,
mediado pela ação dialógica, tendo como horizonte a Liberdade, à qual os
Humanos são ontologicamente vocacionados. Supõe, por conseguinte, condições
concretas para que isso se dê. Supõe uma sociabilidade que assegure os
requisitos materiais e imateriais de tal processo.
O que se percebe, na atual sociabilidade dominante, é que
povos inteiros se acham impedidos de viver com decência, razão pela qual se
torna imperativo desconstruir essa estrutura de morte, removendo suas raízes, e
plantando relações de reciprocidade entre os Humanos e o Planeta, e dos Humanos
entre si.
Ainda no âmbito mais explícito do poder, não se trata –
vale reiterar – de se restringir as relações de poder à esfera do Estado, por
mais vigência e atualidade que tal dimensão também implique. As reflexões sobre
o poder vêm se complexificando, ou mais precisamente, vêm buscando tomar mais a
sério a natureza complexa e o amplo potencial com que se faz presente nas
relações humanas e sociais, seja no âmbito das macro, seja no plano das
micro-relações e seus entrelaçamentos. Tem igualmente avançado o esforço de
percebê-lo para além de suas negatividades. Não obstante tais avanços,
entristece-nos constatar que predominam largamente suas negatividades,
especialmente no que diz respeito às relações Sociedade-Estado-Governo.
No cenário internacional, ainda pontificam amplamente as
relações de dominação, manifestas de múltiplas formas, tais como na imposição
de políticas econômicas pelas grandes potências e seus organismos multilaterais
contra os interesses da maioria da população dos países periféricos. Planos e
programas se impõem, mesmo contra a ordem constitucional vigente, por meio de
pressões sobre as instâncias governamentais e parlamentares dos países
periféricos para que amoldem suas leis, a partir mesmo da Constituição, às
novas leis de mercado. Por força de tais procedimentos, há pesquisas e estudos
sérios concluindo que o Banco Mundial chega a fazer as vezes de ministério de
educação para não poucos desses países periféricos. Procedimentos do quais têm
resultado políticas que afrontam a soberania nacional, não sem a conivência das
instâncias governamentais e parlamentares, combinadas com outras políticas de
supressão ou “flexibilização” de direitos sociais conquistados a duras penas,
seguidas de outras, de desmonte ou de
progressiva fragilização dos serviços públicos essenciais. No caso da sociedade
brasileira, haja vista as implicações sociais do famigerado mecanismo do
“superávit primário” (mantido, aliás, num nível além do exigido pelo FMI...) e
da soma de recursos destinados ao pagamento da chamada dívida pública...
No âmbito cultural, notadamente no
plano dos valores – Aqui enfocamos mais expressamente situações e práticas cuja
sustentação se inspira, direta ou indiretamente, em determinada grade de
valores, especialmente numa perspectiva de alternatividade. Trazemos, pois, à
nossa reflexão situações, fatos, acontecimentos, práticas do Cotidiano, a
impregnarem de sentido as manifestações de subjetividade, as relações sociais
de Gênero, de Classe, de Etnia, de Idade, de Espacialidade, as relações com a
Natureza e com o Sagrado.
Por quais caminhos?
No chão das relações do Cotidiano, o processo de tecelagem
dos fios do poder continua, em geral, mal resolvido. Nas relações sociais de
Gênero, a despeito de avanços significativos, graças principalmente ao
protagonismo (ainda quase exclusivo) do pólo feminino, há muito por avançar,
inclusive na costura crítico-propositiva de posições, não raro, a antagonizar
segmentos internos ao próprio pólo feminino. No horizonte da Pedagogia
freireana, há pistas que não devem ser descartadas, a esse respeito. Uma delas
tem a ver com o dinâmico entrelaçamento das relações humanas e sociais. Sem
desconsiderar a especificidade das relações (Classe, Gênero, Etnia, Idade,
Espacialidade, Sagrado...), uma compreensão mais completa de cada uma dessas
especificidades remete necessariamente à compreensão de suas interfaces com as
demais. Nesse sentido, parece improvável um adequado entendimento dos desafios
das relações específicas de Gênero, sem qualquer atenção às inter-infuências
exercidas sobre e sofridas pelas demais.
Um exemplo ilustrativo desse dinâmico entrelaçamento dos
espaços sociais, a partir das relações de poder, pode ser observado em relação
ao habitual trato dado às relações de Espacialidade, no cotidiano acadêmico.
Tomemos, de passagem, apenas quatro casos: nossas relações com as sociedades
latino-americanas e do Caribe; as citações bibliográficas habituais, a
composição de bancas examinadoras de teses e o critério definidor do caráter
nacional dos periódicos científicos.
Da mídia à Academia, é flagrante a diferença de
relacionamento das instâncias da sociedade brasileira em relação à Europa e aos
Estados Unidos, em comparação ao relacionamento efetivo com os vizinhos da
América Latina e do Caribe, sem mencionar o distanciamento de nossas relações
com as gentes da África, da Ásia e da Oceania. Isso já foi pior, =e verdade,
mas ainda está longe de corresponder ao desejável.
Um exame cuidadoso das citações bibliográficas de teses acadêmicas,
sem que se abra mão do indispensável critério de excelência ou de competência
técnica, pode revelar a incidência e a freqüência privilegiadas de autores e
autoras europeus em relação a nãoeuropeus; autores e autoras das regiões Sul e
Sudeste do Brasil em relação a autores e autoras do Norte-Nordeste. De modo
semelhante, em relação à composição de bancas examinadoras. A reciprocidade
fica a desejar, para se dizer o mínimo. No caso de periódicos, observa-se a
facilidade com que se atribui um caráter “nacional” a periódicos editados nas
regiões centrais do país, enquanto se reserva o caráter “regional” às demais.
Exceções existem, que não infirmam a regra. Os exemplos poderiam se estender
até à tendência que prospera, nesses tempos de globalização neoliberal, de
progressiva privatização dos espaços públicos, inclusive não raro protagonizada
por segmentos que se declaram contra tal tendência, mas, no chão do cotidiano,
agem nessa direção, sob o pretexto que se trataria de um processo irreversível.
Neste caso, esgotada toda esperança num modelo alternativo, a tendência é a
acomodação à ordem dominante, até porque nós só lutamos por aquilo em que
apostamos.
Na dimensão cultural, mais expressamente voltada para os
valores, vale sublinhar a eficácia da mídia, em especial da televisão,
exercendo uma influência poderosíssima sobre enormes parcelas da população,
inclusive sobre segmentos que se julgam críticos. A conseqüência mais
impactante é a larga promoção da ideologia do pensamento único, a expressão mais
antagônica de uma multiculturalidade, na perspectiva freireana, na medida em
que, sob um pretenso manto de pós-modernidade, labora pesadamente em direção de
uma homogeneização dos padrões de comportamento coletivo, nas diferentes
expressões artístico-culturais quanto à visão de mundo, de ser humano e de
sociedade, tendo o mercado como a referência ou o balizamento supremo das ações
dos Humanos.
E, dessa forma, faz-se aberta apologia de valores tais como
o individualismo (em detrimento das relações comunitárias e de uma atitude
respeitosa às diferenças individuais); a concorrência exacerbada (em prejuízo
da promoção da cooperação); o culto ao chefe ou à hierarquização das relações
humanas (em detrimento do exercício coletivo de tomada de decisões); o deslumbramento
pela verossimilhança (em substituição à disposição de incessante busca da
verdade), aposta exclusiva em resultados (em desconsideração ao processo como
um todo, em seu planejamento, em seu percurso, no empenho e desempenho de seus
protagonistas, em sua avaliação), na ênfase excessiva na imediatez (sem
considerar os ritmos específicos que o viver e o conviver apresentam), a
superestimação do que se convencionou chamar de prática discursiva (em prejuízo
de se tomar a prática como critério decisivo da verdade)...
Esses valores constituem, além do mais, um clima propício
ao afastamento ou à perda de procedimentos éticos fundamentais a uma
sociabilidade alternativa. Nesse sentido, os riscos permanecem os mesmos para
representantes da direita ou para militantes considerados de esquerda. Os
dolorosos episódios – ainda em curso - atinentes ao espectro de parcelas
significativas da esquerda brasileira constituem um fato emblemático.
Ainda recentemente (cf. “Sob o impacto da crise” no site
alainet.org), tivemos a oportunidade de nos deter sobre os fatos mais recentes
que têm impactado e indignado a sociedade brasileira, bem como tantas e tantas
que se reconhecem no mesmo campo político. O sentimento de indignação é tanto
maior quando nos remetemos aos novos protagonistas da crise: setores
significativos da esquerda brasileira.
No referido texto, buscamos refletir sobre as condições que
propiciaram atitudes tão eticamente condenáveis. Dentre tais condições,
sublinhamos: a perda do horizonte utópico, a progressiva burocratização das
relações partidárias, o progressivo afastamento das classes populares, a avidez
do poder pelo poder, a profissionalização da militância, o abusivo recurso à
história passada sem correspondência com o momento presente, o progressivo nivelamento
às práticas condenadas em outros partidos, o negligenciamento do processo
formativo continuado de militantes da base e dos dirigentes, a perda do senso
de autocrítica, o recurso a práticas assistencialistas, fundadas nas políticas
compensatórias, o apelo à cultura do endividamento partidário, a centralização
das decisões em mãos de um pequeno número de dirigentes, em breve: a perda da
mística revolucionária.
Uma proposta alternativa de
sociabilidade não se conquista, como se sabe, por um mero golpe de vontade de
meia dúzia de iluminados. Isto não quer dizer que a vontade de alcançá-lo não
tenha também seu lugar. É uma componente necessária, mas certamente
insuficiente. Há de se articular a um leque de outros elementos e condições.
Mais do que o querer individual, trata-se de um querer coletivo, marcado, não
pelo espontaneísmo, mas pela consciente espontaneidade dos protagonistas
aderentes, o que implica articular o querer ao sentir, ao pensar e ao agir,
individualmente e em mutirão, dentro de uma estratégia de organização dos
distintos grupos de protagonistas.
Um tal projeto alternativo requer protagonistas
qualificados
Parece útil que iniciemos este item, lembrando que,
diferentemente de caminhos desastrados, inspirados numa concepção e numa
prática stalinistas, de triste memória, mas infelizmente ainda em vigor,
devemos sustentar a convicção de que a superação desse contexto sombrio ou será
obra nossa, isto é, obra dos deserdados da Terra e seus aliados, ou não virá.
Este é certamente um desafio de monta a ser enfrentado
ininterruptamente, por protagonistas individuais e coletivos, a curto, médio e
a longo prazos; seja nas micro, seja nas macro-relações que se entrecruzam e
germinam nas múltiplas experiências do dia-adia, vão tomando corpo e se
desenhando como uma macro-experiência de sociabilidade alternativa, em marcha.
Trata-se de uma empreitada que requer uma aposta
irrenunciável no processo de formação continuada de seus protagonistas.
Formação omnilateral, exercitada ininterruptamente nas diferentes dimensões do
desenvolvimento humano, de modo a tomar em conta, a partir do chão das relações
do Cotidiano, diferentes limites e potencialidades dos Humanos, sob o ponto de
vista das relações culturais, de Trabalho, de Gênero, de Espacialidade, de
Etnia, de Idade ou Geração, as relações com a Natureza, as relações com o
Sagrado... Formação que, passando também pela Escola, vai muito além dela, até
porque acompanha o dia-a-dia de seus protagonistas, ao longo do curso de sua
vida.
Que práticas e valores deles e neles se esperam, que se
mostrem grávidos de alternatividade à grade de valores hoje dominante? Ousamos
aqui esboçar alguns desses valores e dessas práticas. Podemos começar por uma
atenção qualitativa ao que se convencionou chamar de “sinais dos tempos”. O
nosso dia-a-dia, nos mais distintos espaços de que participamos – da Pólis à
Oikía - se mostra pródigo em sinais. Inclusive daqueles pouco ou nada
perceptíveis pelos nossos olhos, pelos nossos ouvidos, pelo nosso coração, já
tão domesticados e habituados a verem, a ouvirem e a sentirem o convencional, o
que outros querem que percebamos, razão por que passam, com espantosa
freqüência, ao largo de nossa percepção. Sinais novos aparecem, mas a eles não
nos antenamos. Acomodados ao curso dos rios de superfície, pouco ligamos ao que
se passa nas correntezas subterrâneas. Ou, se percebemos, temos medo de chegar
perto. E assim, vamos nos contentando com o instituído, e fazendo dele a nossa
referência maior, quando não única.
Ora, se apostamos para valer na construção de uma
sociabilidade alternativa, vamos ter que deixar para trás nossas falsas
seguranças, e nos aventurar por caminhos ainda não percorridos, que apontem um
horizonte alternativo ao que aí está. Para tanto a freireana curiosidade epistemologia
há de nos impulsionar nessa direção.
À contracorrente da ideologia do pensamento único, que se
empenha em apagar a memória histórica dos deserdados da Terra, somos
historicamente instados a fazer memória de lutas e conquistas protagonizadas
pelos movimentos sociais populares, ao longo da História, e por figuras humanas
que se deixaram incendiar por causas que dignificam a condição humana. Figuras
coletivas e individuais cuja trajetória de luta e de honradez nos inspira
forças para retomarmos o horizonte da Utopia da construção de uma sociedade
justa e solidária. E exercitar uma memória que nos conduza para além (o que não
quer dizer excluir) das fronteiras da Ocidentalidade, propiciando a retomada do
diálogo com outros povos dos quatro cantos do mundo.
Sempre que se tentou essa via de forma respeitosa, numa
perspectiva freireana de multiculturalidade, há registros de ganhos. Aqui cito
apenas o encontro de uma expedição científica russa, comandada por Vladimir
Arseniev, nas primeiras décadas do século XX, em suas incursões pela taiga e
pelas montanhas siberianas, nos confins com a China, com o mongol Dersu Uzalá,
este habitante da floresta, em profunda harmonia com a Natureza, sobre quem o
ocidental Arseniev afirmaria que “ele e a natureza eram apenas um, a tal ponto
que seu ser experimentava fisicamente toda mudança de tempo que estava para
acontecer.” (p. 81); E mais: impregnado de preconceito etnocêntrico, o mesmo
Arseniev sente-se no dever se curvar ante o altruísta demonstrado por Dersu
Uzalá, ao recolher materiais e comida que fossem úteis aos futuros hóspedes –
humanos e não-humanos - daquela choupana em plena floresta, onde haviam
repousado. O saldo desse encontro pode ser traduzido pelas palavras de
Arseviev, a propósito de Dersu Uzalá: “Tudo o que me era incompreensível
parecia-lhe simples e claro.” Dersu Uzalá era um ser antenado aos sinais que a
Mãe-Natureza lhe proporcionava, à qual procurava também responder com
reciprocidade.
O efetivo exercício de uma multiculturalidade, na ótica
freireana, há de transpor o nível da mera discursividade, ainda que bem tecida.
Há de se embrenhar pelos caminhos da “prática prática”. Isso requer um contínuo
alargamento de nossa “tenda cultural”, ainda eu isso implique riscos de perda
de certos elementos identitários, como no caso do depoimento prestado pela
autora estadunidense Marlo Morgan, em sua aventura de ir ao encontro de uma
tribo australiana. Sem desconsiderar o sentido e a importância de deslocamentos
geográficos intercontinentais, como atitude apontando na direção de “estender a
tenda cultural”, inquieta-nos, sobremaneira, buscarmos atender ao desafio de
estender nossa “tenda cultural” aos espaços culturalmente tão apartados que
existem em nosso próprio território. Também aqui desponta firme a inspiração de
Paulo Freire, que não abria mão da proximidade com as classes populares, no
Brasil, na África e por onde andou. Nisso também se mostrava exemplar esse
tecelão da Utopia, esse andarilho que não se cansava de mirar na densidade da
condição de do peregrino, que, saindo do conforto de sua “casa”, ia ao encontro
de outras paisagens, de outros protagonistas com quem partilhava o seu existir,
aprendendo com eles e também partilhando suas experiências, seus achados.
Foi assim que, em suas andanças por terras africanas,
aprendia com Amílcar Cabral tanto quanto das pessoas simples do povo. Tudo se
lhe tornava inspiração e aprendizado, numa perspectiva libertadora. Com, e de
Amílcar Cabral, Paulo Freire buscou “Aprender na vida, aprender nos livros,
aprender com a experiência dos outros. Aprender sempre.” E mais: aprendeu a
“Sermos cada vez mais capazes de pensar muito os nossos problemas para podermos
agir bem, e agir muito, muito, para podermos pensar melhor.”
Aprendeu a apostar e fazer uso do potencial transformador
dos “pequenos” gestos do Cotidiano, convencido de que os micro-espaços se acham
semanticamente carregados de macro-sentidos, e vice-versa. Nesse sentido, a
simples maneira de me portar numa fila à espera da vez, o modo de me portar ao
trânsito ou de estacionar; o modo de me portar na poltrona de um ônibus,
assenhoreando-me de poltrona alheia; a forma como faço uso dos espaços públicos
(mantendo e promovendo seu caráter público ou deles me locupletando; a recusa
ou aceitação de ofertas vantajosas, ao arrepio de direitos alheios – esses e
tantos outros espaços moleculares do Cotidiano constituem um notável mostruário
da direção para a qual sinalizam nossas verdadeiras apostas de sociabilidade.
Mais do que declarações de intenção ou recurso à titulação
ou outros expedientes curriculares, importa ter presente o sentido embutido em
nossas práticas moleculares. Importa, sim, presentificar, ainda que de forma
molecular ou embrionária, legado e sonhos de decência, buscando, em cada gesto,
impregnar do Divino a condição humana. Nesse sentido, vale também acompanhar
Agostinho Neto em sua conhecida afirmação de que "Não basta que seja pura
e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de
nós".
Quem ousa trilhar por esses caminhos, sempre atento a
preferir, em situações de impasse, a causa abraçada aos laços de sangue e
amizade, com igual coerência em relação aos meios, aos caminhos e à postura
correspondentes à mesma causa. (“Amicus Plato, magis amica veritas”).
Empenhar-nos nessa direção implica um renovado esforço,
coletivo e individual, de instituir a reciprocidade como critério decisivo da
qualidade de nossas relações multiculturais. O que equivale à exigência de colocar-nos
constantemente no lugar do outro, no lugar dos povos como nos propomos tecer
relações multiculturais. Objetivo difícil para os padrões ocidentais,
acostumado ao exercício da condição docente. Dificilmente um acadêmico europeu
ou norte-americano se dispõe a aprender efetivamente com africanos, com
asiáticos, com latino-americanos, com os povos nativos da Oceania.
Dificilmente missionários ocidentais se dispõem a ser
evangelizados por outros povos. Dificilmente lhes ocorre a perguntar-se: “Quem
educa o Educador?” Mas, isso vale também para não-europeus. Não raro, somos nós
próprios, os críticos dos outros, que nos flagramos em situações semelhantes, a
desrespeitar práticas que reclamamos dos outros. Que tal ousarmos dar um passo
à gente nessa caminhada, começando pelos gestos moleculares?
Quer disso tenhamos ou não consciência – e urge que
tenhamos! - todos os nossos gestos e ações visíveis ou menos visíveis,
praticados seja à luz dos holofotes, seja na mais escura das noites, estão
sempre grávidos de omnilateralidade. No chão do Cotidiano, elas se constituem
complexas redes, tecidas de incontáveis fios de variadíssimo matiz, na
tecelagem da vida.
Essa dimensão omnilateral de que se acham prenhes os nossos
gestos e atitudes do dia-adia, pode ser expressa por uma ampla diversidade de
situações do cotidiano. O simples ato de lavrar a terra transcende de muito um
mero movimento mecânico. Tanto pode responder a um imperativo de sobrevivência
(dimensão biológica), como expressar um gesto de diálogo com a Mãe-Natureza
(dimensão cósmica/ecológica). Tanto pode ensejar a memória dos antepassados
(dimensão antropológica), como pode expressar a adesão individual a um projeto
coletivo de produção (dimensão econômico-política), ou até mesmo inspirar, em
virtude da etimologia latina do verbo cavar ou por força da canção “Cio da
terra”, uma imagem de Eros.
Nesse infindável exercício de tecelagem do cotidiano, numa
perspectiva freireana, podemos reportar-nos, ainda, por exemplo, ao
deslumbrante campo da Educação de Pessoas Jovens e Adultas, espaço de tantos
achados e descobertas por parte dos seus protagonistas. Reportemo-nos, de
passagem, ao fascinante aprendizado da leitura e da escrita, esse vasto e denso
universo de relações em aberto que letrandos e educadores são chamados a
protagonizar. Ah! se pudéssemos aqui rememorar tantas ocasiões privilegiadas,
em que a muitos dos presentes foi dado testemunhar, com voz embargada, de
lágrimas nos olhos - de alegria, de tristeza, de espanto ou de perplexidade
ante o “inédito viável” -, tantos achados e descobertas fascinantes nos
primeiros escritos de seus letrandos e letrandas...
Também aqui, não nos cansamos de reiterar que, por mais
familiarizados que nos sintamos com a conhecida afirmação freireana, de que “a
leitura do mundo precede a leitura da palavra”, não conseguimos conter o nosso
espanto ante tais e tantos ensinamentos protagonizados por nossos letrandos.
Tomara que, seguindo essa mesma trajetória, isto nos encoraje a todos a não
apenas ler e escrever textos, mas também nos disponha a ousarmos igualmente uma
re-escrita alternativa do mundo presente, fazendo eco à Utopia freireana, alvo
maior, neste Colóquio, de nossas apostas.
[1]
Sociólogo, Educador-Popular. Trabalha como docente-pesquisador na FAFICA, em
Caruaru – PE. Assessora Movimentos Sociais Populares e Pastorais Sociais, no
Nordeste. É membro do Centro Paulo Freire. Escreveu, entre outros, Paolo Freire, forjador de utopías.
Sevilla: Educación Cooperarativa Kikirikí, 2004.
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