TRAÇOS DA MÃE ÁFRICA
em busca de nossas raízes (IV)
Alder Júlio Ferreira Calado
Seguimos em busca de elementos
identitários de nossa Brasil-Africanidade. Em artigos precedentes, estivemos
percorrendo diferentes trilhas nessa busca, instigados por questões do tipo: Que
terra é esta? Quais as principais marcas de sua geografia e de sua Gente? (I). Que
traços relevantes de sua história merecem ser aqui sublinhados? Onde e como
vive sua população? (II). Como entender sua vasta diversidade cultural (étnica,
lingüística, religiosa) (III)? Nem é preciso dizer que mal conseguimos aflorar
aspectos superficiais dessas questões. Vamos ter que voltar muitas vezes a
apreciá-las, inclusive sob outros ângulos.
Essas
e tantas outras: Como se processou a tragédia da colonização, inclusive nos
dias de hoje? Que valores foram por nós historicamente incorporados, e que têm
a ver com nossa herança da Mãe-África? Como se situa, hoje, a África no cenário
internacional, nesses tempos de globocolonização?
O que pensam as principais lideranças africanas, seus escritores e escritoras?
Como andam nossas relações com os diferentes países africanos? Nossas
curiosidades parecem não ter fim. Mas, vamos fazendo o que nos está ao alcance,
claro.
Tomemos como alvo, por exemplo, a
questão dos valores herdados. Primeiro o tipo de relação tecida com a
Mãe-Natureza. O sentimento que se experimenta é de profunda comunhão, é de amorosa
pertença. Nós somo parte da Mãe-Natureza. Dela vimos e a ela retornamos, pela
força do Sagrado que também nela se e por ela se manifesta. Não apenas em nós
humanos. Vale, a esse propósito, observar que também aí nossas raízes africanas
estão muito afinadas com as nossas raízes indígenas (Ver o depoimento do
Cacique Chicão Xukuru, na Serra do Ororubá (Cimbres/Pesqueira - PE), um ano
antes de seu assassinato), no qual destacava bem essa amorosidade, essa relação
de gratuidade com a Mãe-Natureza.
Relação que se manifesta de múltiplas formas. Numa
situação de escassez de água ou de alimentos, não surpreende que os humanos, a
despeito de sua sede ou de sua fome, se contentem com o absolutamente
necessário à sobrevivência, assegurando aos demais animais a sua porção, sem
precisar tomar tal atitude como uma virtude, mas como um dever alegremente
cumprido. Uma relação de dominação não permitiria tal atitude. Nada na Natureza
tem sentido ser tomado como objeto de propriedade ou de comércio. Observa-se o
uso comum do que vem da Mãe-Natureza. Tudo é de todos. Todos se alimentam em
condições de igualdade. Não faz sentido uns comerem e outros passarem forme. Ninguém
pode ficar de fora. Nem os animais.
Não é o mesmo sob a ótica ocidental, já que, neste
caso, alguns poucos humanos se arrogam o privilégio de “dominadores” e
“proprietários” da Natureza, achando-se no direito de dela usar e abusar, não
importando o que suceda à maioria de seus semelhantes, menos ainda aos animais,
aos vegetais, ao solo, ao sub-solo, ao mar... Provas disso é que não nos
faltam...
Outro traço identitário de nossa Africanidade tem a
ver com o lugar privilegiado que ocupa o coletivo sobre o individual, sem
prejuízo deste. Aqui família é tomada, antes de tudo, como o conjunto da
comunidade tribal. Toda a comunidade se sente como pai e mãe do conjunto das
crianças. Estas - diferentemente de nossa herança ocidental, centrada nos laços
de sangue - não se sentem abandonadas, nem mesmo quando os pais partem. Há um
forte senso de corresponsabilidade na repartição das tarefas do dia-a-dia, seja
nas atividades de coleta e da produção do sustento, seja nos cuidados dos diferentes
tipos de trabalho e de convivência, seja nos momentos de resistência aos
ataques inimigos, seja em tempos de festa e celebração, seja nas relações com o
Sagrado.
Enquanto isso, a tendência historiográfica dominante
continua no seu empenho de “folclorizar” nossa herança cultural africana, à
medida que se cultivam um olhar limitado e reducionista de práticas culturais
afrobrasileiras: a capoeira, a culinária, vocábulos de origem africana,
expressões religiosas, trajes... Não há como negar que tudo isso também faça
parte do nosso patrimônio cultural, herdado da Mãe-África.João Pessoa, 23 de Março de 2001.
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