segunda-feira, 19 de março de 2018

ALVO PERFEITO DAS FORÇAS NECRÓFILAS: notas sobre o caso Marielle

ALVO PERFEITO DAS FORÇAS NECRÓFILAS: notas sobre o caso Marielle

Alder Júlio Ferreira Calado

Próspera e desenfreada, é a cultura de morte, entre nós, acentuando-se nos últimos anos. Há uma conjuntura atípica que só faz engrossar esse caldo necrófilo. Os sinais deste processo de desumanização e desnaturação (termo aqui empregado, no sentido de crescente perda de sintonia com a Mãe-Natureza) despontam cada vez mais às escâncaras. As estatísticas de assassinatos (dos quais os feminicídios figuram como dos mais expressivos). Constata-se uma tendência crescente, na mídia convencional e nas redes sociais, do uso de um tempo excessivo para a divulgação de crimes de todo tipo, das mais variadas formas de violência, a fazerem parte do nosso dia-a-dia, até à banalização, à "naturalização"... Não bastasse que tais fatos circulem, de modo a tomarem parte considerável dos noticiários e telejornais, eis que passam a estar presentes, de forma atabalhoada e abusiva, em relevantes espaços institucionais. No caso da Câmara, por exemplo, constata-se a tenaz atuação de blocos estigmatizados, a exemplo do chamado "Bloco da bala", com abordagens esdrúxulas acerca da violência, não raro com argumentos alinhados a uma clara justificativa de se pretender combater a violência desenfreada, por meio de mais violência, por exemplo: "garantindo-se mais armas para os cidadãos se defenderem dos bandidos"... Há, em breve, uma perigosa síndrome necrófila, em expansão pelo País.

Nas breves linhas que seguem, buscamos, primeiro, destacar alguns traços de uma cultura necrófila, em perigosa expansão, no Brasil. Em seguida, sublinhamos, neste contexto, o caso da recém-assassinada Vereadora Marielle Franco (e do Motorista Anderson Gomes) como alvo perfeito dessas forças necrófilas, em expansão. Por fim, ousamos esboçar algumas pistas, acenando para um combate, para uma resistência  propositiva.

Emblemáticos sinais  de uma cultura necrófila, em expansão

Vêm despontando, a toda evidência, sucessivas marcas de uma cultura de morte, no Brasil. Disto dão prova, não apenas os fatos percebidos como de maior gravidade, divulgados pela imprensa convencional, mas também - e aqui sublinho ainda com maior força, pelos profundos estragos menos visibilizados - "pequenos" fatos e ocorrências do dia-a-dia, facilmente assimilados e rapidamente caídos no esquecimento do público, em geral. Refiro-me a inúmeras cenas do cotidiano de "pequenas" violências, de que vivemos cercados, em ambiente familiar, em ambientes de trabalho, em insuspeitos ambientes religiosos, pouco divulgados na mídia convencional e nas redes sociais, tal a tendência a um estúpido processo de "naturalização". Trata-se de ocorrências inscritas nos mais diversos campos de convivência cotidiana, prendendo-se,ora às relações sociais de gênero, ora às relações étnicas, ora às relações e trabalho, ora às relações lúdicas (brincadeiras de péssimo gosto, relativas a preconceitos, discriminações, violências simbólicas e físicas, agressão à Mãe-Natureza, etc., etc.). Vou ilustrar tais ocorrências com um único exemplo, ocorrido, neste último final de semana, numa praia situada entre João Pessoa e Cabedelo. Refiro-me à notícia veiculada num dos canais de televisão, dando conta de ter sido encontrada morta mais uma tartaruga. E, embora quase cego, pude enxergar a tartaruga assassinada pela nossa crueldade. Mergulhados num oceano de informações (falsas e verdadeiras), já não temos o direito de ignorar que lançar material plástico nas águas do mar, por exemplo, vai provocar sérios danos à fauna marinha. E, no entanto, seguimos insensíveis a isto. Pior: pretendendo-nos guardiães da vida. Em vão, nos colocamos em defesa em solidariedade de tantas vítimas desta síndrome necrófila, se mantivermos uma atitude insensível aos crimes socioambientais e outros tantos equivocadamente percebidos como “pequenos”: a omissão, a cumplicidade, ou mesmo a participação em crimes dessa natureza, nos colocam também na linha de responsabilidade pelas grandes tragédias, como no caso da execução da vereadora Marielle. Não dá mais para fazermos uma separação, uma dicotomia entre “pequenos” e grandes crimes. Se eu sou corrupto, nas pequenas coisas, já não tenho o direito de me insurgir contra os grandes corruptos, a não ser que me empenhe, arrependido e com firme propósito, num processo ininterrupto de autocrítica. Somente a partir desta atitude retomam legitimidade e força éticas minhas denúncias contra a corrupção e tantas outras formas de violência “pequenas” e grandes.




O caso Marielle como alvo predileto das forças necrófilas

Um rápido olhar do perfil de Marielle Franco já nos permite dar-nos conta de tratar-se de alguém reunindo um amplo leque de predicados alvejados pelas forças necrófilas, em expansão em nosso País. Comecemos pelo fato de Marielle ser uma mulher. As estatísticas de feminicídio se apresentam estupidamente escandalosas: mata-se (também) pelo simples fato de ser mulher, e de afirmar-se como tal. A condição feminina, num obstante uma série de conquistas recentes e menos recentes, continua penalizada, sob vários aspectos. São as mulheres trabalhadoras que percebem menos do que seus colegas trabalhadores, mesmo fazendo a mesma tarefa. São as mulheres, as mais atingidas pelo desemprego. Embora maioria, elas são minoria e, às vezes, exceção, na ocupação de cargos e encargos nas grandes instituições (empresas, igrejas…). São as mulheres que, às vezes sozinha assumem os encargos de sua casa, a despeito de sua tríplice jornada de trabalho… Marielle é uma dessas mulheres!

Sendo mulher, Marielle era também uma afrodescendente, uma afrobrasileira, seu último compromisso, aliás, cumpriu entre mulheres negras. A mesmas que também figuram nas estatísticas oficiais, marcadas pelas mesmas ou semelhantes Mazelas que afetam as mulheres, sendo que em grau ainda maior, por serem negras.

Marielle experienciava uma relação homoafetiva, de longa duração, sempre contando com apoio e solidariedade de sua filha, de sua família, e de seus amigos e amigas.

Por último, mas não menos importante, Marielle foi também estigmatizada pela sua condição de classe: era pobre, vivia na favela e integrava uma força de esquerda… Juntando as peças do seu perfil, tem-se um retrato completo de alguém com um perfil perfeito perseguido pelas forças de morte: Mulher - Negra - Homoafetiva - Pobre - Favelada - de Esquerda…

Ousando passos prenhes de uma cultura biófila

Um primeiro passo, nesta direção, parte da compreensão de que a execução de Marielle não afeta somente esta mulher, mas comporta todo um segmento majoritário da sociedade brasileira. É uma afronta a toda a sociedade que luta por justiça e dignidade. Mais: tem a ver com a própria condição humana, razão porque se trata de um crime de lesa-humanidade. Partindo deste reconhecimento, tratamos de unir forças com todo um leque de organizações de nossa sociedade e de outras no sentido de fortalecermos caminhos eficazes em busca de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, em harmonia com a Mãe-Natureza, sempre partindo de gestos e iniciativas moleculares, certos de que a sociedade que buscamos construir tem que estar claramente expressa nos mais pequenos gestos, passos e caminhos, em busca deste horizonte.


João pessoa, 19 de Março de 2018.

Nenhum comentário:

Postar um comentário