Alder Júlio Ferreira Calado[1]*
Nossa
primeira inquietação consiste em situar o Povo Negro, em toda a sua
rica diversidade, no espectro do conjunto geral dos povos que constituem
a Humanidade, em comunhão com o Planeta e com o Universo.
O
Povo Negro não quer afirmar-se em detrimento de, ou na indiferença em
relação a outros povos-irmãos. Cioso de sua identidade (sempre dentro da
ampla diversidade, e em permanente construção), sente-se, em primeiro
lugar, como parceiro dos outros povos e da Mãe-Natureza. O que é bom
para a Humanidade e o que é bom para o Planeta e o Universo também é bom
para o Povo Negro. O Povo Negro faz também suas as alegrias, as
angústias, as lutas, as conquistas e as esperanças da Humanidade e do
Planeta, principalmente hoje, quando talvez mais do que nunca antes,
nossa Mãe-Terra geme em dores de parto (a tragédia no Japão é apenas um
desses sinais que se vêm multiplicando...).
Ao
mergulhar em suas características específicas, não o move qualquer
pretensão de ser melhor nem pior do que ninguém. Exercita suas
características próprias e sua notável diversidade, afirmando o
princípio da igualdade social de todos os povos e a dignidade de todos
os humanos e de todos os seres partícipes da comunidade dos viventes.
É com tal sentimento prévio, que exercita seu olhar interior, a contemplar suas especificides.
Por
quê, como, a favor de quê e contra quê luta o Povos Negro, no mundo e
no Brasil? Como busca articular suas lutas, em relação a tantas outras
lutas protagonizadas pelos oprimidos de todo o mundo, inclusive no
Brasil? No caso da sociedade brasileira da atualidade, que desafios vem
enfrentando? E, no espectro dos movimentos e das organizações
afrobrasileiras, como se situa a ABIBIMIMAN, expressão da ARCA,
cuja caminhada, em breve, estará alcançando um quarto de século? Eis um
roteiro de questões que nos propomos trabalhar, no quadro e nos limites
de um artigo compondo o presente livro. E buscamos fazê-lo em três
tópicos: partindo do atual cenário internacional; como o Povo Negro
afrobrasileiro vem buscando protagonizar suas lutas? Qual tem sido a
contribuição específica de ABIBIMAN, nesse contexto?
Partindo de um quadro panorâmico do atual cenário internacional
Se,
por um lado, nunca deixamos de ter um cenário internacional de
relevante efervescência – em uns lugares e tempos mais do que em outros
-, por outro lado, sabemos que tal quadro vem tomando ares mais
intensos, de alguns anos para cá, graças, como se sabe, à notável
intensificação do processo de globalização capitalista, a afetar
drasticamente toda a cadeia produtiva, os processos organizativos do
trabalho, bem como a reconfiguração dos Estados nacionais, além da grade
hegemônica de valores.
Enfrentamos
uma nova configuração sócio-econômico-política e cultural, acarretando
numerosos desafios, inclusive por conta de sucessivas crises do próprio
Capitalismo, especialmente nesses últimos anos. Múltiplos e compexos
desafios, a começar pelos de caráter mais diretamente econômico:
reestruturação produtiva, novos processos de organização do trabalho, a
acarretar desemprego estrutural, crescente precarização das relações de
trabalo, concentração de riquezas, de terras e de rendas. No plano mais
expressamente político: um forte reordenamento das funções sociais dos
Estados nacionais, de modo a viabilizar as políticas econômicas ditadas
aos Estados nacionais – em especial os periféricos - pelos grandes
conglomerados transnacionais, em todas os setores – econômico, político,
cultural. No caso deste, a atuação se dá de modo mais intenso pela via
midiática, expressão viva das forças imperantes.
Nos
espaços mais ampliados de realização do Fórum Social Mundial, temos
tido ocasião de deparar-nos com relatos, ao mesmo tempo trágicos, em um
sentido, e promissores, em relação, por exemplo, às iniciativas de
resistências mais recentes, acarretando uma onda de ebulição em que nos
encontramos, no cenário mundial da atualidade, diante das lutas
crescentes dos povos contra o modelo capitalista de produção, de gestão e
de consumo, nas várias esferas da realidade. Ressoam ainda bem vivos
aos nossos ouvidos os clamores das mobilizações anti-globalização
neoliberal nos Estados Unidos, na Itália e outros países europeus, na
América Latina e em outras partes. E ainda com força maior, mais
recentemente nos países do Norte da África e no Oriente Médio.
A
generalizada insatisfação contra o Capitalismo, ao longo do mundo,
deve-se tanto às variadas e cada vez mais freqüentes agressões ao Meio
Ambiente, como às crescentes violações aos direitos mais elementares do
povo dos pobres, em escala mundial. E isto não se dá apenas num setor
isolado ou em alguns deles. Tais violações estendem-se, com efeito, a
todas as esferas da realidade: da economia à política; da cultura ao
âmbito das religiões. Trata-se de um profundo comprometimento de um
sistema como um todo, de modo a afetar a lógica mesma de organização das
sociedades, capitaneadas pelos grandes conglomerados mundiais, a agirem
na mineração, na construção de mega-usinas hidrelétricas, na exploração
e comercialização do petróleo, nas grandes empresas transnacionais de
mineração, no agronegócio, na indústria de armamentos, nos paraísos
fiscais, na indústria de drogas, na indústria de armamentos
sofisticados, na indústria farmacêutica, na lógica que preside à
indústria automobilística, nas políticas de privatização da saúde e de
outros setores estratégicos, na degradação dos serviços públicos
essenciais, em escala mundial, no controle das fontes de vida, na
concentração de terras para fins lucrativos de poucos, nas políticas de
comunicação controladas por grandes empresas midiáticas, etc., etc.
O
Povo Negro, até pelo fato de se constituir em maiorias ou expressivos
contingentes nessas sociedades, a par dos demais povos da Terra, não se
conforma com esse modelo secular de organização, de gestão e de consumo
das sociedades humanas, alicerçado nos privilégios de pequenas minorias,
em prejuízo direto e indireto de massacradas maiorias, tornadas mero
alvo de lucro, mercadorias. Maiorias destituídas, “a manu militari”, de
suas organizações de produção, de seus direitos políticos, de suas
formas autóctones de gestão, de suas manifestações culturais nativas. O
Povo Negro se acha cansado de uma longa dominação colonial e
pós-colonial. Quer voltar a ser sujeito de sua própria história. Os mais
recentes acontecimentos em parte da Mãe-África acenam nessa direção. Um
número crescente de manifestações populares, circunscritas por enquanto
ao Norte da África (Tunísia, Argélia, Egito...) tem acenado para a
necessidade e urgência de se buscar um outro rumo para os povos da
África, bem como para outros povos (como os do Oriente Médio). Ensaiam
um primeiro passo. Movidos pela indignação cívica, exacerbada por
décadas de repressão e exploração de uma “cleptocracia” (entendida como o
império de um pequeno grupo que vive de ´pilhagem ou de extorquir a
população). Mas, sabemos que seus objetivos vão muito além dessa
explosão de revolta, à medida que investirem em processos de organização
de suas bases e de formação alternativa a esse estado de barbárie.
Por
todo o Planeta, registram-se sinais cada vez mais convincentes, de que
os povos se organizam contra as perversões multifacetadas de que têm
sido vítimas por parte do modelo capitalista. Há cerca de dois anos, o
sistema voltou a apresentar sinais de exaustão, desde o coração do
império. Segmentos expressivos daquela sociedade – inclusive com uma
significativa população formada pelo Povo Negro - vêm
manifestando, de várias maneiras, seu protesto contra as formas de
exploração, de dominação e de marginalização infligidas pelo
Capitalismo, de que seguem sendo vítimas os humanos e o Planeta.
À
medida que enormes parcelas da população estadunidense se vêem metidas
num processo de crescente empobrecimento, outros povos vão se sentindo
motivados a buscarem outra forma de organização de seu processo de
produção, circulação e consumo, bem como de gestão de seus bens
culturais.
Exaure-se
todo o sistema imperante, inclusive as instâncias que lhe davam
sustentatação, a começar pela ONU e demais organismos multilaterais. A
esse respeito, têm surgido vozes proféticas, a exemplo da recente
proposta feita por Miguel d´Escoto e Leonardo Boff de uma profunda
reestruturação de um organismo internacional representativo e de
credibilidade, aos olhos dos 192 países do mundo, que faça cessar os
privilégios das grandes potências, na tomada de decisões graves, em
escala mundial.
De
fato, está em jogo o destino dos povos. Já não lhes interessam os
velhos instrumentos convencionais de de produção, de gestão, de
organização, de consumo e até de avaliação. São contestáveis até os
parâmetros de avaliação econômica, baseados em instrumentos tais como
Produto Interno Bruto, Renda “per cápita”, Risco-país, Superávit
Primário e similares. Todos funcionais à lógica do Mercado, propensos a
uma avaliação economicista, de olhos voltados exclusivamente para o
crescimento econômico favorável aos grandes conglomerados transnacionais
e às grandes potèncias. Já não se trata de contestar partes isoladas do
sistema, mas é refutado o modelo como um todo: de suas estruturas de
produção aos mecanismos de organização política; da lógica de seu
desastrado comércio a seus padrões de consumo; de sua grade de valores
às suas relações com a natureza e com o Sagrado. Trata-se, em breve,
para os povos da Terra, de pôr fim definitivamente ao império da
mercantilização das relações humanas entre si, e destas com a natureza e
com o Sagrado.
Desafio
sem precedente, sob certo ponto de vista, e a ser enfrentado a curto,
médio e longo prazos. E a ser enfrentado de modo divers do já
experimentado, no passado, quando se apostava em “humanizar” o
Capitalismo, em torná-lo menos cruel, por meio de correções pontuais, de
reformas tópicas (Social-Democracia, Estado do Bem-Estar Social e
outras tentativas do gênero).
Cada
vez mais e melhor se percebe que já não é mais razoável pretender-se
“melhorar” o Capitalismo. Importa, sim, dar fim ao mesmo, seja em sua
dimensão econômica, seja no plano de suas relações políticas, seja ainda
no terreno cultural e de sua grade de valores.
Na
área econômica, por exemplo, já não se trata de pretender-se reduzir
progressivamente a gula dos grandes conglomerados transnacionais, por
meio de taxações especiais ou de transferência simbólica de suas
riquezas. Trata-se, agora, de exercitar com ele a única relação
humanizadora e ecológica possível: combatê-lo e desmantelá-lo em seus
fundamentos. Por certo, isto não é tarefa fácil, nem tampouco de curto
prazo. Nem se tem receita para tanto. Simplesmente – e já é muito! –
parte-se de uma certeza: sabemos que tal sistema é, por definição,
predatório dos humanos e do Planeta. Podemos não saber exatamente – nem
achamos que haja – “a” alternativa, mas estamos imbuídos da convição de
que “É melhor saber para onde ir, sem saber cmo, do que saber como e não
saber para onde ir.”
No
campo político, a luta se trava de forma orgânica. Também aqui, não se
tem receita. Tem-se, sim, algumas pistas. Uma delas: já não vale a pena
apostar-se, como em outras conjunturas passadas, na via parlamentar ou
nos espaços governamentais. Se estes sempre constituíram instrumentos
orgânicos do Estado – no caso, do Estado capitalista -, nas últimas
décadas, isto se tem dado como nunca antes. Os Estados nacionais –
enfraquecidos em seu poder de formulação de políticas sociais de tipo
social-democrata, nas décadas mais recentes vêm se rendendo, cada vez
mais expressamente, aos ditames dos grandes conglomerados
transnacionais, seja no âmbito das finanças, no terreno das grandes
empreiteiras, no mundo do agronegócio, da metalurgia, da mineração, das
mega-usinas, dos laboratórios farmacêuticos, etc., etc. As forças
sociais que, tradicionalmente se têm valido da desgastada tática
(ou estratégia?) do “entrismo” (tentativa de se apropriar, pela via dos
instrumentos convencionais, dos aparelhos de Estado) e, por isso,
teimam em usá-los como espaços alternativos aos interesses das classes
populares, têm sofrido reiterados reveses, sem contar que boa parte de
seus “representantes”, não apenas não logram conquistas significativas
(a não ser para seus projetos pessoais ou de pequenos grupos), como acabam cooptados...
Com
efeito, já não mais adianta nutrir expectativas de amenizar a
ferocidade do Mercado e dos seu Estado, mas de atingi-lo pelas
entranhas. Mesmo não sabendo qual é “o” caminho, sabemos que há
pistas.Uma delas: não compactuar com a lógica do sistema já é um
primeiro passo consistente. Urge, como costuma insistir o Prof. Ivandro
da Costa Sales, “pular fora da lógica capitalista”. Isto implica
redefinir nosso horizonte de sociedade, nossos caminhos e nossas
posturas, começando por gestos minúsculos, moleculares, mas prenhes de
uma convicção fundamental: é, sim, possível, ensaiar passos concretos –
em âmbito pessoal como no plano societal – de alternatividade.
Como o Povo Afrobrasileiro vem conseguindo protagonizar suas lutas, nesse quadro atual?
É
sabido que a população negra do Brasil constitui um dos maiores
contingentes da população negra mundial, superando o contingente
populacional de quase todos os países africanos, tomados
individualmente. Este fato não se dá sem marcas e conseqüências
relevantes, tanto do ponto de vista de sua evolução histórica, quanto do
ponto de vista de sua diversidade cultural e de formas de organização.
Um
rápido olhar em direção ao perfil do Povo Negro no Brasil permite
perceber uma enorme variedade de rostos, com suas marcas comuns e, ao
mesmo tempo, com seus traços singulares. Se, de um lado, estamos diante
de uma maioria marcada por situações tais como: os mais pobres, ou mais
precisamente, os mais empbrecidos da população brasileira; o segmento
mais afetado pela criminalização de classe, de gênero, de etnia e de
outros preconceitos sócio-culturais; pelo déficit endêmico (ou até
ausência) de bens e serviços públicos essenciais (moradia, educação,
saúde, transporte coletivo, etc.), temos, por outro lado, no próprio
interior do Povo Negro brasileiro, uma espantosa diversidade de perfis,
envolvendo questões de gênero, de idade, de escolaridade, de opções
religiosas, de iniciativas culturais, de opções políticas, etc.
Ainda
quanto ao que concerne a características comuns (pelo menos para uma
enorme maioria do Povo Negro brasileiro), convém destacar duas delas: as
diferentes discriminações de que é vítima e o fato de ser constante
alvo de criminalização. Com relação às múltiplas discriminações, importa
sublinhar as seguintes:
* discriminações de classe:
dentre os segmentos mais afetados pela pobreza resultante do processo
de exploração capitalista, os Negros constituem a maioria; do grande
número de trabalhadores e trabalhadoras desempregados, os
afrobrasileiros são maioria; assim também no que se refere ao
sub-emprego, aos mais baixos salários, às mais precárias condições de
trabalho e moradia; aos menores índices de escolaridade; ao pior acesso
aos serviços públicos básicos; às mais precárias condições de transporte
urbano e rural; aos piores índices de acesso a cargos mais relevantes
nas empresas, nas Forças Armadas, nas Igrejas, no Parlamento, no
Judiciário, no Executivo...
* alvo mais freqüente de criminalização: uma enorme parcela a compor a população carcerária também é formada de Afrobrasileiros, em especial de seu segmento jovem.
Para
além desses traços comuns, convém ter igualmente presentes traços
singulares do Povo Negro brasileiro. Traços que vêm se forjando
historicamente, de um lado, pela evolução de seu protagonismo, dentro da
diversidade já mencionada, e, por outro, em função de diferentes
conjunturas. Registra-se aí uma dinâmica interação das várias nuanças e
singularidades do Povo Negro brasileiro com diferentes condicionantes
conjunturais. Inclusive hoje, cumpre tomar em conta tal interação.
Graças a esta, é que, no interior do mesmo Povo Negro brasileiro, podem
ser observadas facetas diversificadas:
-
segmentos afinados com a maioria dos valores dominantes e segmentos
(minoritários) que se mostram críticos à grade de valores dominante;
- segmentos do Povo Negro brasileiro fortemente afinado
-
parcelas politicamente simpáticas ao modo de gestão governamental e
parcelas (minoritárias) que se manifestam arredias, indiferentes ou até
mesmo em oposição ao modelo dominante;
-
contingentes significativos do Povo Negro brasileiro afinados com as
práticas religiosas cristãs, no interior de diferentes igrejas, e
contingentes que tendem a afirmar-se pela sua identidade afro-religiosa,
e ainda outra parcela que se mantém relativamente indiferente a credos;
-
uma parte considerável do Povo Negro brasileiro mostra-se com tendência
a uma integração orgânica com os não-Negros, enquanto outra parte
(minoritária) tende a preservar sua identidade afrobrasileira;
-
no interior do segmento que se empenha na fidelidade à sua identidade
afrobrasileira, há os que, em complementaridade a essa busca, se mostram
abertos à interação com outros segmentos não-Negros, e há ainda uma
parcela cujo zelo identitário tende a fechar-se em si mesmo, sinalizando
algum traço de auto-suficiência (do que pode ser sinal o uso de
símbolos com dizeres tais como “100% Negro”).
São
apenas algumas das nuanças resultantes de um secular processo de
interação observável entre o empenho do Povo Negro brasileiro em manter
vivas suas singularidades étnicas e certa assimilação ou, pelo menos,
certa acomodação aos padrões culturais dominantes.
Diante
de alguns elementos em busca de um esboço de perfil do Povo Negro
brasileiro, torna-se mais compreensível as também diversificadas
posições tomadas pelos Afrobrasileiros e Afrobrasileiras, ao calor das
sucessivas conjunturas sócio-hiestóricas, inclusive no presente.
Posições majoritárias, sim, unânimes, não: é o que se tem observado, nas
diferentes conjunturas, inclusive na atual. E isto vai das
manifestações religiosas às opções político-partidárias; das posições
diante dos conflitos econômicos,sociais e culturais, presentetes, por
exemplo, em suas distintas posições frente às políticas públicas,
notadamente nas políticas governamentais específicas. Um caso
paradigmático dessa diversidade incide no debate e na avaliação da
política de cotas afirmativas.
E
aqui dificilmente têm êxito avaliações com tom de excludência, do tipo
“Tal posição é a certa.” Se em situação alguma, ninguém é dono da
verdade, tampouco diante de casos tão complexos como este. Quem concorda
com e luta pelas cotas tem seus argumentos a serem considerados:
-
diante de uma opressão secular da qual os Negros foram – e continuam
sendo - as principais vítimas, não dá mais para esperar que, primeiro,
se mude todo o modelo, para só então assegurar-se aos Negros seus
direitos negados, como no caso da educação;
- longo é o processo de nossa libertação: por que não começar por pequenos passos?
-
o acesso dos Afrobrasileiros à universidade, ainda que por meio não
convencional, vai abrindo caminho à incorporação de contingentes
marginalizados, recobrando sua auto-estima e incentivando seu potencial.
Só para mencionar três dos argumentos freqüentes ouvidos.
Por outro lado, também não parece razoável fazer ouvidos moucos ao contraditório, a argumentos do tipo:
-
A opção pela política de cotas promove uma integração orgânica dos
Negros a uma sociedade profundamente desigual, na qual a política de
cotas cumpre um papel apenas lenitivo, o que acaba por legitimá-la
objetivamente;
-
a política de cotas favorece uma parcela minúscula do Povo Negro, sem
alcançar nem combater as raizes mais fundas do modelo de desigualdade
social imperante
-
assim como as políticas afirmativas, em geral, a política de cotas
corre o risco de contribuir para a desmobilização das classes populares
em busca de seus direitos plenos, à medida que passa a idéia de uma
medida progressiva (feita em etapas), destinada a assegurar a setores
tradicionalmente marginalizados da população acesso a direitos
secularmente negados a tais setores sociais.
Como
se pode perceber, não parece razoável negar-se a entender os argumentos
colocados por distintas partes do Povo Negro, conforme sua posição
ético-política. Nesse sentido, parecem legítimos todos esses argumentos,
se se toma em consideração o lugar social de onde partem, bem como suas
respectivas visões de mundo e de sociedade.
De que modo ABIBIMAN, como expressão da ARCA, vem buscando contribuir com a causa do Povo Negro, em nossa região?
Todo
esse esforço de compreensão dos distintos perfis do Povo Negro
brasileiro, bem como de seus respectivos movimentos e organizações de
base é feito por meio de uma ampla pluralidade de protagonistas, de
espaços sociais, de meios e de formas de atuação. Nesse amplo espectro
de movimentos e entidades organizativas do Povo Negro brasileiro,
inclui-se a iniciativa da Associação do Resgate da Cultura Afro, bem
como de seu respectivo periódico, ABIBIMAN. Aqui nos restringimos a
essas duas últimas iniciativas, notadamente ao jornal ABIBIMAN.
Ainda
na década de 90, na esteira do esforço organizativo e de resistência às
diferentes marcas de exploração, de opressão e de marginalização
expressas pelo Neoliberalismo, um grupo de militantes da causa negra,
liderado por Luiz Eloy Andrade, juntamente com o Prof. Francisco
Galindo, o Prof. Francisco Romildo e outros colaboradores e
colaboradoras, toma a iniciativa de fundar uma organização em defesa da
causa dos Afrobrasileiros e Afrobrasileiras – a ARCA: Associação de Resgate da Cultura Afro.
Como
indica o próprio título da Associação, os ebjetivos perseguidos, desde
então, não poderiam ser outros senão o de buscar recuperar a memória e o
legado da cultura do Povo Negro, por meio da sensibilização,
organização. formação e mobilização da sociedade, em especial dos filhos
e das filhas do Povo Negro.
Daí
resultaram várias atividades e iniciativas fecundas, boa parte das
quais registradas nas páginas de ABIBIMAN, periódico que tornou mais
conhecido o trabalho da ARCA e de seus
protagonistas. De lá para cá, quantos eventos organizados, quer nas
escolas públicas, quer nas faculdades da região, mas igualmente nas
praças e nas ruas, bem como nas comunidades rurais da região.
Destaquemos
aqui o papel de ABIBIMAN que, mais tarde, veio a contar com uma pagina
própria na internet. O grande papel cumprido por ABIBIMAN foi o de
divulgar, junto a amplos setores da população, a posição
crítico-transformadora da ARCA e dos seus
protagonistas frente a sucessivos desafios sócio-históricos e
político-culturais que, direta ou indiretamente, envolviam o Povo Negro,
interpelando-o e chamando-o a assumir seu protagonismo.
Uma
leve consulta às páginas de ABIBIMAN permite deparar-nos com uma gama
de temas, questões, problemas, fatos, situações de que tratam seus
colaboradores e colaboradoras: notícias, textos sobre o dia-a-dia do
Povo Negro, políticas sociais, análise de conjuntura, memória do Povo
Negro, biografias de figuras paradigmáticas do Povo Negro, canções,
artes, fotografias, medicina alternativa, religiões de matriz africana,
beleza negra, história da África, entre outros.
Um
desses pontos recorrentes no referido periódico tem a ver com o esforço
de recuperação da memória histórica do Povo Negro, em especial em
Pernambuco. Esforço socialmente relevante, à medida que pode despertar
em seus leitores e leitoras o desejo de pesquisar diversas fontes
atinentes ao período da escravidão, no Brasil, no Nordeste e,
especificamente, em Pernambuco, e nas quais não raro se encontram
registros de grande impacto investigativo, quanto a preencher lacunas
acerca de situações concretas ligadas a diferentes comunidades
quilombolas, espalhadas pela região ou pelo Estado.
Outro
ponto a destacar: o esforço de socializar elementos da história dos
povos africanos, bem como traços singualares daquele continente. Além de
suscitar curiosidades diversas, tal iniciativa também pode servir de
incentivo e de conteúdo complementar aos estudos da África, recentemente
incorporados aos componentes curriculares oficiais, em especial das
escolas públicas.
Há
tantos outros elementos merecedores de análise ou de comentários,
resultantes da “performance” de ABIBIMAN, nessas décadas mais recentes.
Teremos ocasião, de outra feita, de voltar ao assunto. Por enquanto,
busquemos contentar-nos com esses poucos destaques, como um aperitivo ao
aprofundamento de nossa curiosidade epistemológica.
Considerações sinópticas
Vêm
de longe as lutas do Povo Negro pela sua libertação, no Brasil e em
outros países. Datam desde o início do processo de colonização de terras
americanas e brasileiras pelos europeus. De lá para cá, séculos se
passaram. E ontem como hoje, a cada forma de dominação, a cada tipo de
exploração, a cada modo de marginalização dos Afrobrasileiros – mulheres
e homens – dos mesmos tem brotado um esforço incessante de resistência,
sob os mais distintos aspectos.
Buscar
compreender tal trajetória requer um esforço de alcançar suas raízes
históricas, as condições de sua formação enquanto Povo. Implica traçar
seus diferentes perfis, e situá-los adequadamente no cenário
sócio-histórico atual. Foi o que tentamos fazer, inicialmente, partindo
da convicção de que o Povo Negro sente-se, antes de tudo, como parte
integrante do conjunto de povos da Terra, a eles irmanados e com eles
comprometidos no processo de libertação das distintas formas de
opressão: de classe, de gênero, de etnia, de geração, etc.
Ainda
neste primeiro tópico, percebemos que, seja em relação ao Povo Negro,
seja em relação às maiorias oprimidas no mundo inteiro, têm surtido
pouco efeito as lutas pontuais, quando não adequadamente articuladas em
vista da superação do atual modelo de produção, de organização e de
consumo de tipo capitalista (ou de qualquer forma de organização baseada
em classes sociais e seu Estado e respectivos aparelhos).
Em
seguida, direcionamos nosso olhar às especificidades dos problemas e
desafios mais impactantes da atualidade do Povo Negro brasileiro.
Buscamos caracterizar a composição dos perfis dos Afrobrasileiros e
Afrobrasileiras. Um perfil complexo e fortemente diversificado, quanto
às relações de classe, de gênero, de etnia, de geração, de
religiosidade, etc. Diversidade estreitamente ligada à sua trajetória
histórica multissecular, bem como às opções históricas de seus
protagonistas.
Diversidade
que se apresenta, ao mesmo tempo, como uma virtude e como um desafio,
quando se trata de desenhar o porvir desse Povo no quadro do presente e
do futuro da sociedade brasileira.
Finalmente,
tratamos de reconhecer uma extensa gama de entidades e organizações
pelas quais se distribui o Povo Negro brasileiro, em busca de
organização, de mobilização frente às distintas formas de opressão.
Dentro dessa extensa gama de organizações de base do Povo Negro
brasileiro, inclui-se a Associação de Resgate da Cultura Afro (ARCA), da qual tem sido porta-voz privilegiado seu periódico ABIBIMAN, por meio do qual a ARCA vem divulgando suas atividades formativas e informativas, em âmbito regional.
João Pessoa, 17 de março de 2011
* Sociólogo.
Como educador popular, participa de grupos de pesquisa, na região, e
acompanha a caminhada dos movimentos populares e pastorais sociais, no
Nordeste, desde meados dos anos 60. Mais recentemente, vem acompanhando a
caminhada da Assembléia Popular/PB. Dentre outros escritos, é autor de Direitos Humanos X Capital. João Pessoa: Idéia, 2002.
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