TRAÇOS DA MÃE-ÁFRICA:
em busca de nossas raízes
(XIX)
Alder Júlio Ferreira Calado
Já
estava a escrever acerca da participação africana na Copa do Mundo (e, por
tabela, acerca daquele contexto tecido, também aí, por critérios
eurocêntricos). Decidi reportar este tema para o próximo número de ABIBIMAN.
Em troca, senti-me impelido a priorizar e partilhar, neste número, uma rápida
notícia sobre a extraordinária figura do Escritor angolano José Luandino
Vieira. Fui movido por uma razão muito especial, mais adiante explicitada.
Nascido em Lagoa do
Furadouro (Portugal), em 4 de maio de 1935, José Luandino Vieira, em tenra
idade (aos três anos), em companhia dos pais foi morar em Angola. Lá viveu sua
infância e sua juventude, freqüentando a escola fundamental e o liceu. Assume
Angola - sua terra e sua Gente - como sua pátria. Ao ponto de inscrevê-la no
próprio nome (Luanda/Luandino). Chamava-se José Mateus Vieira. Embora já de si
significativo, aquele gesto patriótico iria bem além do nome. Pela causa da
libertação de Angola esteve sempre lutando, razão pela qual experimentou por
mais de uma vez a prisão da temida polícia política da metrópole portuguesa,
pelas suas famigeradas práticas repressivas às manifestações de libertação das
colônias, protagonizadas por movimentos como o MPLA (Movimento pela Libertação
de Angola), chegando a ser condenado a 14 anos de prisão, dos quais cumpriu uma
boa parte.
O vasto tempo nas prisões
políticas (inclusive em Cabo Verde, também colônia lusa, àquela época) não lhe
foi de todo inútil. Lá é que Luandino escreveria algumas de suas obras, sempre
inspirado pelo, e refletindo o contexto e a linguagem das crianças dos
“musseques”, os bairros pobres da região.
Luandino tem se destacado no
cenário nacional e internacional pela pujança e criatividade de sua obra
(poesia, contos, romance...), por meio da qual busca recuperar relevantes
elementos identitários de sua Gente, inclusive recorrendo à incorporação de
expressões lingüísticas do universo vocabular dos “musseques” e do “Kimbundu” (um
dos onze grupos lingüísticos existentes em Angola e respectivos dialetos -
cerca de 90), pela atenção dada à memória oral.
Um escritor apaixonado pela
sua terra, pela sua Gente, nas pegadas de poetas angolanos da estirpe de
Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Antônio Jacinto, entre outros que, por meio de
sua obra, trataram de contribuir com a recuperação dos valores mais fundos de
sua Gente, contribuindo, inclusive, para o seu processo de identidade.
Em suas obras variadas, José
Luandino costuma valer-se de recursos também didáticos. Seja em Luuanda,(1982),
seja num de seus contos ("Estória da Galinha e do Ovo"),
busca utilizar situações e imagens familiares de seu Povo. Neste último conto,
por exemplo, busca despertar o senso crítico e de resistência política, ao
insinuar, como ensinamento do conto, que em vez das disputas internas
fratricidas pelo “ovo”, vale mais ficar de olho no inimigo que cobiça a
“galinha”...
José Luandino Vieira acaba
de ser escolhido para receber o Prêmio Camões, destinado a homenagear os
melhores escritores do universo literário dos países lusófonos.
Desde
1989, tal premiação vem ocorrendo. Alguns escritores brasileiros, a exemplo de
Jorge Amado, já foram homegeados, inclusive a Escritora Lygia Fagundes Telles,
da Academia Brasileira de Letras. Das cerca de 13 edições (até aqui), apenas
três africanos receberam a homenagem, da qual também faz parte o recebimento de
um prêmio no valor de cem mil Euros. Pois bem, o mais extraordinário desse
Escritor é o seu caráter ético: simplesmente recusou o dito prêmio. Quem duvida
de que em suas “razões pessoais” se inscreva sua atitude ética de indignação
contra as profundas marcas deixadas pela colonização e de compromisso com a
causa de libertação do seu Povo, que dinheiro algum é capaz de pagar?
Especialmente
num quadro conjuntural como o presente, em que cresce espantosamente a gula de
propinas, soa impactante uma postura ética dessa natureza. Alegra-nos perceber
que, nessas correntezas subterrâneas, muita água boa anda rolando. Para quem
tem olhos para ver, ouvidos para escutar e coração para sentir pulsar o novo, o
alternativo...
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