segunda-feira, 5 de março de 2018

TRAÇOS DA MÃE-ÁFRICA: em busca de nossas raízes (XIX)

TRAÇOS DA MÃE-ÁFRICA:
em busca de nossas raízes (XIX)

Alder Júlio Ferreira Calado

            Já estava a escrever acerca da participação africana na Copa do Mundo (e, por tabela, acerca daquele contexto tecido, também aí, por critérios eurocêntricos). Decidi reportar este tema para o próximo número de ABIBIMAN. Em troca, senti-me impelido a priorizar e partilhar, neste número, uma rápida notícia sobre a extraordinária figura do Escritor angolano José Luandino Vieira. Fui movido por uma razão muito especial, mais adiante explicitada.
Nascido em Lagoa do Furadouro (Portugal), em 4 de maio de 1935, José Luandino Vieira, em tenra idade (aos três anos), em companhia dos pais foi morar em Angola. Lá viveu sua infância e sua juventude, freqüentando a escola fundamental e o liceu. Assume Angola - sua terra e sua Gente - como sua pátria. Ao ponto de inscrevê-la no próprio nome (Luanda/Luandino). Chamava-se José Mateus Vieira. Embora já de si significativo, aquele gesto patriótico iria bem além do nome. Pela causa da libertação de Angola esteve sempre lutando, razão pela qual experimentou por mais de uma vez a prisão da temida polícia política da metrópole portuguesa, pelas suas famigeradas práticas repressivas às manifestações de libertação das colônias, protagonizadas por movimentos como o MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), chegando a ser condenado a 14 anos de prisão, dos quais cumpriu uma boa parte.
O vasto tempo nas prisões políticas (inclusive em Cabo Verde, também colônia lusa, àquela época) não lhe foi de todo inútil. Lá é que Luandino escreveria algumas de suas obras, sempre inspirado pelo, e refletindo o contexto e a linguagem das crianças dos “musseques”, os bairros pobres da região.
Luandino tem se destacado no cenário nacional e internacional pela pujança e criatividade de sua obra (poesia, contos, romance...), por meio da qual busca recuperar relevantes elementos identitários de sua Gente, inclusive recorrendo à incorporação de expressões lingüísticas do universo vocabular dos “musseques” e do “Kimbundu” (um dos onze grupos lingüísticos existentes em Angola e respectivos dialetos - cerca de 90), pela atenção dada à memória oral.
Um escritor apaixonado pela sua terra, pela sua Gente, nas pegadas de poetas angolanos da estirpe de Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Antônio Jacinto, entre outros que, por meio de sua obra, trataram de contribuir com a recuperação dos valores mais fundos de sua Gente, contribuindo, inclusive, para o seu processo de identidade.
Em suas obras variadas, José Luandino costuma valer-se de recursos também didáticos. Seja em Luuanda,(1982), seja num de seus contos ("Estória da Galinha e do Ovo"), busca utilizar situações e imagens familiares de seu Povo. Neste último conto, por exemplo, busca despertar o senso crítico e de resistência política, ao insinuar, como ensinamento do conto, que em vez das disputas internas fratricidas pelo “ovo”, vale mais ficar de olho no inimigo que cobiça a “galinha”...
José Luandino Vieira acaba de ser escolhido para receber o Prêmio Camões, destinado a homenagear os melhores escritores do universo literário dos países lusófonos.
            Desde 1989, tal premiação vem ocorrendo. Alguns escritores brasileiros, a exemplo de Jorge Amado, já foram homegeados, inclusive a Escritora Lygia Fagundes Telles, da Academia Brasileira de Letras. Das cerca de 13 edições (até aqui), apenas três africanos receberam a homenagem, da qual também faz parte o recebimento de um prêmio no valor de cem mil Euros. Pois bem, o mais extraordinário desse Escritor é o seu caráter ético: simplesmente recusou o dito prêmio. Quem duvida de que em suas “razões pessoais” se inscreva sua atitude ética de indignação contra as profundas marcas deixadas pela colonização e de compromisso com a causa de libertação do seu Povo, que dinheiro algum é capaz de pagar?
            Especialmente num quadro conjuntural como o presente, em que cresce espantosamente a gula de propinas, soa impactante uma postura ética dessa natureza. Alegra-nos perceber que, nessas correntezas subterrâneas, muita água boa anda rolando. Para quem tem olhos para ver, ouvidos para escutar e coração para sentir pulsar o novo, o alternativo...






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