Intuições a partir do filme/documentário “De la servitude moderne”, de Jean-François Brient, com montagem de Victor Léon Fuentes
Desde 2009, vem circulando na internet (via “youtube”), correndo inteiramente por fora do circuito midiático comercial, um filme/documentário produzido por Jean-François Brient (França), com montagem de Victor Léon Fuentes (Colômbia), e cuja difusão só depende de nossa boa vontade e empenho de seres humanos e cidadãos e cidadãs. O filme é precedido de um livro (que contém DVD), escrito pelo mesmo Brient, em 2007.
O objetivo do filme/documentário é de avivar nossa memória e ajudar a nos despertar, inclusive por meio da autovigilância, quanto às manifestações atrozes da barbárie capitalista = que o documentário chama, a justo título, de “sistema totalitário mercantil” -, tal como hoje se vem apresentando.
Trata-se de um patético grito de alerta aos sobreviventes desse sistema. Uma vigorosa denúncia profética e, por isso mesmo, incômoda aos ouvidos e aos olhos de quem prefere manter-se seguro em sua jaula. Cuida o filme de decompor, em sua anatomia e em sua fisiologia, todo esse sistema totalitário mercantil, de modo a permitir a(o) espectador(a) percorrer criticamente os mais distintos cenários desse sistema, seja em sua esfera econômica, seja em seu terreno político, seja em suas múltiplas manifestações culturais.
Permite, com efeito, perceber com detalhes as podres entranhas do modo de produção vigente, à medida que lança luz sobre, por exemplo, a rotina dos Trabalhadores e das Trabalhadoras nos porões da barbárie, constantemente afetados por processos desumanos de organização do trabalho, em que seus agentes são tratados como máquinas de gerar lucro, nas piores condições.
O filme/documentário exibe igualmente cenários terrificantes de agressão à natureza, tratada exclusivamente como fonte de lucro, e lucro rápido e copioso… Mostra as formas de pilhagem dos recursos naturais. Desmascara a lógica capitalista dos cuidados médicos, pela via dos procedimentos convencionais da medicina mercantil. Põe o dedo na radical iniqüidade das relações patrão-empregado. Denuncia as formas de exploração dos grandes conglomerados transnacionais, apoiados nas grandes potências e nos aparelhos de Estado, sob a roupagem das democracias formais. Põe a nu a grade de valores usada e abusada pelo sistema totalitário mercantil, para manter e ampliar as condições de alienação dos seus súditos. Faz, em breve, uma radiografia desse sistema, bem como de seus protagonistas e de suas vítimas.
Diferentemente da escravidão da Idade Antiga ou da servidão medieval, ou das revoltas características das primeiras revoluções industriais, “A servidão moderna é uma servidão voluntária e consentida”. Servidão expressa pelo conformismo e pela passividade das vítimas, assujeitadas que se acham à ditadura das mercadorias que adquirem cada vez mais e na exata proporção de sua alienação, implicando a abdicação de sua identidade, de sua autonomia, alienando-se de seu ser, em proveito do império do consumismo, da desigualdade social crescente e da incessante degradação do Planeta. Preferem resignar-se à dança macabra do sistema a lutar pela sua identidade, o que implicaria esboçar diante do sistema a única atitude digna do ser humano: a do combate à alienação, à exploração e à pilhagem do Planeta e dos humanos.
À medida que se submetem às regras do jogo, tornando-se seus consumidores incondicionais (ver, por exemplo, os estragos feitos por uma emissão como a do famigerado “Big Brother Brazil”, com sua enorme parcela de espectadores e colaboradores interativos…), e assim sacralizando suas regras, as vítimas só fazem consolidar o caráter sórdido de seu mundo, um “mundo insosso e inodoro”. Aos obedientes súditos do sistema totalitário mercantil, só lhes resta contentar-se com ser sua imagem e semelhança.
Sob a égide de tal lógica, o mundo vai se transformando numa enorme rede viária, a serviço da circulação e do consumo de mercadorias.
Que condições teriam concorrido à produção de um quadro desses? O documentário começa sublinhando que “primeiro foi preciso retirar dos membros dessa classe toda consciência de sua exploração e de sua alienação.” Esta é uma face dessas condições. Requer ser percebida em interação dinâmica com outras tantas, seja do ponto de vista econômico, seja em sua malha política, seja quanto ao seu espectro cultural. Vou buscar desdobrar um pouco nuanças desses aspectos, no tópico a seguir.
Algumas intuições inspiradas no filme/documentário
Ainda que não tenha sido propósito do autor do documentário, explicitar uma proposta detalhada, alternativa à barbárie capitalista vigente, não se deve ignorar que o mesmo documetnário evoca, de modo implícito, já na formulação das denúncias, elementos de alternatividade. Pelo menos a quem se disponha a perceber…
Trato, por conseguinte, de enunciar o que, inspirado nessa profusão de denúncias ao sistema totalitário mercantil, o que percebo como elementos subjacentes de alternatividade a essa ordem tão bem dissecada pelo documentário. Tento fomular, a seguir, em três rápidos tópicos, atinentes às esfera da produção, da política e da cultura. Antes, porém, convém ressaltar, com toda a força, que, para muito além de uma tentativa pontual, a partir de cada esfera tomada isoladamente, qualquer proposta de superação dessa ordem exige tomá-la como um todo, e não apenas por qualquer uma de suas partes integrantes.
1. Na esfera da produção
Por mais evidente que se apresente a necessidade de superar-se o atual modo de produção dominante, é indispensável, igualmente, articular-se ao combate incessante ao modo de produção, o combate ao modo de consumo.
Em vão se afirmaria um combate à estrutura de produção vigente, protagonizada pelos grandes conglomerados transnacionais, dissociado do combate ao modo de consumo, em grande parte, já introjetado e reproduzido por nós, seja no campo dos bens produzidos, seja na área dos serviços oferecidos. Vejamos alguns exemplos bem concretos.
– Com que autoridade, vamos travar um combate convincente contra a lógica perversa da construção de projetos faraônicos de energia ou de canalização de água (Belo Monte, Transposição, usinas nucleares…), se nos mostramos, em nosso cotidiano, ávidos e abusivos consumidores de água e energia elétrica? Basta ver nossa insensibilidade e nossa atitude vorazmente consumista, em casa, nas salas “aclimatadas”, mesmo quando bem podemos estudar e trabalhar em espaços que dispensem o consumo de energia. Hoje, mesmo em espaços públicos (universidades, inclusive), sindicatos, até em certos movimentos sociais…), alguns dos quais oferecendo agradável ambiente natural, observa-se crescente tendência a recorrer-se a salas e ambientes “climatizados”… Algo semelhante também se passa, quanto à nossa atitude em relação ao uso da água e aos cuidados (ou descuidos?) em relação a tantos e abusivos vazamentos de água… Nâo se trata de pretender reduzir nosso combate estrutural contra a fonte maior desse mal, mas, de entender, que uma forma de combate se acha umbilicalmente ligada à outra.
E quanto à nossa atitude rotineira em relação ao recurso abusivo a automóveis? Como vamos ter postura convincente de combate contra a lógica de Mercado, se não exercemos qualquer vigilância interna quanto à nossa parcela de responsabiliade como usuários contumazes de automóveis – para uso tantas vezes individual?
Também no tocante à nossa postura em relação aos serviços públicos essenciais: como iremos ser convincentes em nossos propósitos de defesa do PÚBLICO, por exemplo, nos serviços de educação e de saúde, se pouco ou nada sentimos na pele os efeitos de sermos usuários de escolas públicas e do SUS?
2. No terreno político
Nos freqüentes espaços de análises de conjuntura de que
participamos, estamos cansados de lembrar quem são nossos parceiros, quem são nossos aliados e quem são nossos adversários. Quanto a estes, por exemplo, não cessamos de enfatizar a lista encabeçada pelas multinacionais, pelas grandes potências e seus organismos multilaterais. Uma das contradições mais impactantes de nossos tempos tem sido constatar, por um lado, nossa consciência do caráter auxiliar do Estado aos interesses dos grandes grupos, e, por outro, seguirmos apostando o melhor de nós na sustentação político-partidária convencional do Parlamento e dos agentes do Estado, em vez de ousarmos priorizar formas alternativas a esse modo de gestão da sociedade. Até nos declaramos comprometidos com isso, mas nossa agenda diária não traduz isto, em matéria de nossas prioridades concretas…
participamos, estamos cansados de lembrar quem são nossos parceiros, quem são nossos aliados e quem são nossos adversários. Quanto a estes, por exemplo, não cessamos de enfatizar a lista encabeçada pelas multinacionais, pelas grandes potências e seus organismos multilaterais. Uma das contradições mais impactantes de nossos tempos tem sido constatar, por um lado, nossa consciência do caráter auxiliar do Estado aos interesses dos grandes grupos, e, por outro, seguirmos apostando o melhor de nós na sustentação político-partidária convencional do Parlamento e dos agentes do Estado, em vez de ousarmos priorizar formas alternativas a esse modo de gestão da sociedade. Até nos declaramos comprometidos com isso, mas nossa agenda diária não traduz isto, em matéria de nossas prioridades concretas…
3. No âmbito cultural – Percebendo claramente ou não; tomando consciência crítica
maior ou menor das tramas ideológicas disseminadas pelo sistema dominante, não é difícil constatarmos a reiterada incidência de contradições em que nos flagramos, no dia-a-dia de nossas atividades. Não raro, fazendo uso de um discurso afiado contra as astúcias do sistema, eis que, não raro, nos flagramos a reproduzir práticas que dizemos combater. E isto se dá, sobretudo, nos espaços minúsculos, pouco ou nada visíveis, tais cmo;
– ceder à crescente tendência de absorvermos, como necessidades efetivas, “necessidades” suscitadas pela lógica do sistema: abuso de nossa cota individual de consumo de energia; abuso do automóvel; ceder à onda do endividamento a qualquer preço; ceder à tendência de dispensar os serviços públicos, preferindo apelar para os serviços privados;
– adaptação/acomodação à medicina mercantil e seus sedutores planos de saúde;
– contribuição passiva (pelo fortalecimento objetivo) dos índices de audiência de emissões lastimáveis (não apenas o BBB…);
– contribuição objetiva, em escala maior ou menor, com distintas situações de privatização dos espaços públicos de trabalho (desrespeito a horários, relaxamento da assiduidade, utilização indevida dos recursos das repartições de trabalho; utilização indevida do tempo, dos espaços, de pessoal e de recursos públicos, etc.).
– dependência dos produtos sofisticados, em detrimento da valorização de produtos populares, inclusive nas feiras e mercados públicos;
– dependência de produtos sabidamente prejudiciais à saúde (não apenas do tipo “coca-cola”, além de se contribuir efetivamente com os lucros de grandes grupos transnacionais;
– não uso ou mau uso dos bens e serviços públicos (educação, saúde, transporte público);
– descumprimento de regras elementares da saudável convivência (impedir ou dificultar a outros usuários acesso à poltrona de um coletivo, dificultar a circulação dos passageiros ao interno do coletivo, especialmente, nas horas de pico; ocupar com o automóvel lugares de transeuntes;
– insensibilidade em relação à coleta apropriada do lixo…
Cada um, cada uma pode multiplicar “ad infinitum” os casos de descumprimento, no dia-a-dia de nossa convivência…
Nesses e noutros exemplos mencionados, a partir das questões suscitadas pelo referido documentário, é possível aperceber-nos das implicações concretas que incidem tanto no plano coletivo, quanto no âmbito individual, com relação ao desafio enorme de extrojetar, dia a dia, valores desse sistema totalitário mercantil, em suas mais distintas manifestações. Anima-nos, ao mesmo tempo, saber que, nas “correntezas subterrâneas”, já contamos com um bom número de pessoas e de grupos que tratam de testemunhar – inclusive em escala molecular – que é possível, sim, emitir sinais convincentes de práticas e concepções alternativas à ordem imperante…
João Pessoa, abril de 2011
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