Dia 31 de dezembro de 2010, Jornal da Band. Ao terminar um bloco de notícias, e já entrando no intervalo, em que apareciam garis a desejarem felicidades no novo ano, sem perceber que estava sendo gravado, o apresentador da Band (em exercício no horário das 19h30), Boris Casoy comenta diante de seus colegas: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto de sua vassoura” (Boris Casoy, cf. site disponível aqui).
Hoje, dia 1º, aparece o mesmo Boris Casoy, a apresentar de público suas desculpas pela frase “infeliz” e ofensiava aos garis…
Não é a primeira vez – e, provavelmente, não será a última… – em que figurões desta nossa inconsistente república são flagrados com declarações bombásticas, que esperavam estarem sendo feitas em “off”, e, de repente, constatam tardiamente terem sido captadas publicamente.
Um dos casos similares de grande repercussão deu-se com o ex-ministro, Rubens Ricupero, também flagrado em conversa descontraída com o jornalista da Globo, Carlos Monforte, enquanto aguardavam sinal verde para o início de uma entrevista, ocasião em que uma intrigante conversa escapou ao controle de ambos (depois transcrita integralmente pela Folha de São Paulo em setembro de 1994, da qual se destaca a rumorosa declaração do então ministro, de que “Eu não tenho escrúpulos: o que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde.” Referia-se a medidas a tomar na oportunidade que lhe conviesse, conforme seus interesses de classe, em plena disputa eleitoral, em que FHC e Lula representavam os projetos em disputa, naquela ocasião…
Trechos dessa emblemática conversa podem ser ouvidos, com comentários, aliás, do próprio Boris Casoy, clicando aqui.
Que ensinamentos é possível extrair dessas cenas deploráveis? Ainda sob o desagradável impacto da notícia, tratarei aqui de destacar apenas dois.
Uma primeira lição que recolho tem a ver, menos com as respectivas personagens em evidência, e bem mais com as forças que as mesmas representam. Com efeito, ainda que cada qual tenha expresso seu pensamento, não dá para negar que, mais do que falar por si, eles são, antes, porta-vozes das forças que encarnam.
Isto ainda nos remete a uma considerável sucessão de cenas semelhantes, protagonizadas por figuras das elites brasileiras, ao longo de séculos. E, com incidência até mais forte no plano histórico. Um primeiro aspecto a ser destacado de tais cenas, tem a ver com o lugar por elas atribuído ao trabalho manual.
É como se dissessem a si mesmas: “Serviços braçais não dignificam a condição humana”… Triste lição! Tão grave é esse tipo de avaliação, que nela reside um fator de peso relevante das raízes mais fundas das desigualdades sociais características das sociedades de classes: a dicotomização estabelecida entre trabalho manual e trabalho intelectual.
Sempre que se pense uma sociedade de privilégios, em que a uns poucos se reserve a tarefa de mandar, enquanto aos demais cumpre apenas obedecer, tem lugar assegurado esse tipo de lógica e de prática. Daí resultam fatos monstruosos de desumanização, não apenas dos “de baixo”, proibidos que se sentem de desenvolverem suas potencialidades humanas, mas também dos “de cima”, à medida que se tornam prisioneiros de seus próprios privilégios. Isto gera necessariamente uma esquizofrenia generalizada, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista coletivo.
Ao conceber-se que a uns apenas é dado pensar e determinar, enquanto a todos os demais incumbe a tarefa de executar ordens; uns apenas lidam com a inteligência, enquanto outros lidam só com os braços, assim se vai desfigurando a condição humana, cuja realização implica necessariamente um contínuo esforço de fazer confluir o sentir, o pensar, o querer, o agir, sob pena de nos tornarmos pessoas ou coletividades que sentem uma coisa, pensam uma segunda, querem uma terceira e fazem uma quarta…
Numa sociedade que respeite o Planeta e a condição humana, torna-se inconcebível a um ser humano trabalhar apenas com o cérebro ou apenas com os braços.
Todos precisamos tanto de produzir cultura (com o corpo e com a alma) quanto de cuidar do nosso lixo. Precisamos, todos, tanto de saborear bons pratos quanto de aprender a fazê-los. De apreciar vestir uma roupa asseada quanto de lavá-la e passar a ferro. De nos deslumbrarmos com a limpeza de nossa casa ou do nosso ambiente, quanto de fazermos, nós mesmos, essa limpeza.
Somos, todos, ao mesmo tempo lixeiros e produtores de cultura, ou não nos humanizamos. Numa sociedade assim organizada, quem se atreveria a zombar de um profissional?
Estaria zombando de si mesmo…
Um outro ensinamento que recolho desse tipo de práticas manifestas nos exemplos acima aludidos, diz respeito às profundas raízes de nossa herança colonialista. As elites brasileiras – não sei se tanto quanto ou mais do que outras – têm se reproduzido com um horror estupendo a tudo que tenha a ver com trabalho manual. Pior: além de exigir que seus serviços sujos sejam feitos por outros, não têm cessado de devotar a esses mesmos um ódio intrigante.
Vem-me à memória o exemplo da personagem Justo Veríssimo, criação de Chico Anísio. Esse é um lado da herança. Há, infelizmente, a prática recíproca, agora da parte dos “de baixo”: basta ver a enorme dificuldade de nos tratarmos como seres iguais, situação bem atestada, por exemplo, pela exuberância de pronomes de tratamento do nosso idioma…
Situação que tende a se manter indefinidamente – ou até a se ampliar! -, caso esperemos mudança de atitude a partir dos “de cima”. Sabemos que toda situação de poder é uma relação social. Ninguém mandaria, se não houvesse quem se negue a obedecer. Seria inútil.
É dos “de baixo” que se deve buscar a iniciativa de mudança, começando pelas micro-relações.
Ocorre que dificilmente isto se dá espontaneamente. Tão fundas são essas raízes de dominação e de subserviência, que tais práticas hegemônicas foram e continuam sendo incorporadas e reproduzidas no dia-a-dia.
Lutar por mudança também nesse plano implica um longo e incessante processo de formação, que nos permita desconstruir a lógica dominante, por meio da construção de práticas e valores alternativos, antagônicos aos hegemônicos.
Felizmente, já podemos constatar sementes de alternatividade, especialmente nas “correntezas subterrâneas” – experiências de sociabilidade protagonizadas por segmentos de certos movimentos sociais, movimentos comunitários, enfim alguns setores da sociedade ou mesmo figuras humanas que não cessam de ensaiar práticas e valores de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária, culturalmente diversa (interculturalidade).
Vale dizer: uma sociabilidade alternativa, não apenas ao Capitalismo, como também a toda sociedade de classes.
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