quarta-feira, 22 de junho de 2016

No comércio da fé, Jesus não passa de um produto vendido à prestação (Raimundo Nonato e Nonato Costa)

Os Poetas e Repentistas são, não raro – e este é bem um caso elucidativo! – uma espécie de radares privilegiados ou uma antena com alto potencial perceptivo. Captam com rara felicidade os sinais que circulam pelo espaço social. Com sentidos aguçados, não tardam em captar sinais de contradição espalhados em nossa realidade social, econômica, polpitica, cultural, religiosa.  Desta faixa de um seus CDs, houve por bem selecionar três das estrofes encimadas pelo mote instigante: “No comércio da fé Jesus não passa / De um produto vendido à prestação”.
Mesmo sabendo que não se trata de um fenômeno novo – a exploração religiosa, como se sabe, remonta a séculos em nossa conturbada história -, não há negar que o acelerado processo de globalização também se traduz por meio de valores religiosos. A chamada “teologia da prosperidade”, tão ao gosto das recentes expressões neopentecostais (alguns preferem chamar “pós-pentecostais”) constitui um exemplo paradigmático. Situação agravada em conjunturas de crise sócio-econômica, ocasião em que se fazem mais fortes e mais freqüentes os apelos à divindade, no sentido de socorrer milagrosamente desempregados, endividados, enfermos graves, lares desintegrados. Quase tudo passa do terreno das possiblidades humanas para o campo da segurança exclusive em Deus. Transfere-se para Deus tudo o que, antes, era da alçada dos homens.
Nesse contexto, a tendência dominante é de abusar do recurso aos milagres e às magias, “em nome de Deus”. Bateu desemprego na família? Vamos apelar a Deus, trazendo a Carteira de Trabalho para ser abençoada, e fazer tornar a situação de emprego. O mesmo se estende a outros desafios.
Não se restringe a apelar para Deus, mas também cuida de extrair vantagens. Abusa-se da recomendação ao pagamento de dízimo, de ofertas generosas, como condição explícita ou implícita de reação de Deus aos apelos formulados pela vítimas, com a mediação de pastores e padres…
Eis o clima propício para a ocorrência do relato poético dos Repentistas:
Os pastores e padres são isentos
De despesas com carro, casa e feira
Os fiéis são quem tira da carteira
As despesas e os gastos dos aumentos
Para Deus tem até 0800
Custa quatro reais a ligação
Eles chamam isso tudo louvação
Mas eu chamo isso tudo de trapaça
No comérico da fé Jesus não passa
De um produto vendido à prestação
(…)
Sei que a Bíblia em CD está gravaada
E que Cid Morieira as cifras soma
A Capala Cistina lá em Roma
Quem quer ver são dez dólares a entrada
21
Hoje, toda cidade é explorada
Por novena, por missa e e procissão
Vendem até o rosário de oração
Crucifixo, água benta, blusa e tassa
No comércio da fé, Jesus não passa
De um produto vendido à prestação
(,,,)
Sei que a seita dos Mórmãos quantifica
Quem dá mais é quem consta do arquivo
A Presbítera tem cunho lucrativo
Renascer muito atrás também não fica
A Igreja Católica é a mais rica
Mas as outras igrejas também são
Não aceitam fazer a divisão
Essa hipótese a Igreja não abraça
No comércio da fé, Jesus não passa
De um produto vendido à prestação
(Do CD recolhendo os melhores momentos do I Grande Encontro de Poetas e Repentistas do Nordeste, realizado em João Pessoa, em abril e maio de 1999)
Inscritas igualmente no padrão clássico das décimas, as estrofes seguem as características comuns de um “martelo agalopado”: estrofes de dez linhas, cada verso contendo dez sílabas, acentuadas na terceira, na sexta e na décima. Mesmo padrão de rima (ABBAACCDDC).

Convém destacar a criatividade do mote, quanto à força dos argumentos e ao seu caráter didático, ao alcance das pessoas comuns. Há de se destacar, ainda, a imaginação dos autores, quando se trata de fazer analogias criativas entre as práticas religiosas dominantes e o espírito de mercado que as impregna.

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