sexta-feira, 8 de junho de 2018

A TEOLOGIA DA ENXADA COMO AÇÃO DO ESPÍTO NO POVO DE DEUS PELOS CAMINHOS DA HISTÓRIA: considerações a partir do livro de José Comblin. O Tempo da Ação. Ensaio sobre o Espírito e a história. Petrópolis: Vozes, 1982.


A TEOLOGIA DA ENXADA COMO AÇÃO DO ESPÍTO NO POVO DE DEUS PELOS CAMINHOS DA HISTÓRIA: considerações a partir do livro de José Comblin. O Tempo da Ação. Ensaio sobre o Espírito e a história. Petrópolis: Vozes, 1982.

Alder Júlio Ferreira Calado

            A Teologia da Enxada completa seus quarenta anos. De 9 a 12 de outubro de 2009, uma parte considerável de seus protagonistas – os de ontem e os de hoje – estiveram a confraternizar-se, em Serra Redonda – PB, num encontro marcante de celebração, de rememoração, de avaliação e de um esforço prospectivo. Seus protagonistas compõem uma família diversificada = a Associação de Missionários e Missionárias do Campo, o Centro de Formação Missionária/Fundação Dom José Maria Pires, a Fraternidade do Discípulo Amado, a Associação da Árvore, as  Missionárias do Meio Popular, Associação dos Missionários e Missionárias do Nordeste, a Associação das Escolas Missionárias, mantendo uma relação orgânica com outros grupos e expressões da Igreja dos Pobres, como as CEBs, as PCIs, o CEBI, o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste, as Pastorais Sociais, num amplo espectro no qual reconhecemos traços vigorosos do rosto da “Igreja na Base”.
            Em se tratando de uma expressão mais nordestina da Teologia da Libertação e experiência formativa de enraizamento cristão no meio dos pobres, a Teologia da Enxada tem muito a comemorar, ao tempo em que trata de exercitar um olhar avaliativo, e prospectivo, em busca de responder aos novos desafios da conjuntura social e eclesial, na perspectiva do Seguimento de Jesus.
            Momento propício para refletir distintos aspectos dessa caminhada. Nas linhas que seguem, ensaiamos focar um desses tantos pontos: o referencial teológico que melhor fundamenta e inspira a experiência da Teologia da Enxada. Em três momentos tratamos de organizar as presentes notas: 1) um sucinto quadro mnemônico dos fundamentos da Teologia da Enxada; 2) a redescoberta da missão do Espírito Santo no mundo; e 3) novos desafios na caminhada da Teologia da Enxada.

1. Rememorando alguns traços históricos da Teologia da Enxada

            A despeito da clara prevalência, no Concílio Vaticano II, de um perfil entre moderado e conservador do episcopado participante, foi amplamente reconhecida a atuação de um grupo de bispos – entre os quais Dom Helder Câmara é considerada como uma de suas referências – que desempenhou um papel significativo, no empenho da ação profética da Igreja no mundo. Esse grupo, que reuniu algumas dezenas de bispos de diferentes continentes, ficou conhecido como o do “Pacto das Catacumbas”. Mas, foi, sobretudo, no contexto da Conferência de Medellín, na mesma esteira da caminhada das CEBs, da Teologia da Libertação, foi sendo tecida, pela ação do Espírito, a Teologia da Enxada, no final dos anos 60, a partir de dois núcleos iniciantes – um em Salgado de São Félix – PB – e outro em Tacaimbó – PE.
            Já de início, os protagonistas dos primeiros núcleos da Teologia da Enxada, em boa parte compostos de jovens seminaristas, descontentes com o tipo de formação recebida, compartilhavam o sentimento da necessidade de buscar uma formação alternativa, à altura dos desafios dos novos tempos. Em grande parte, de origem rural, sentiam o fosso entre uma formação com demasiado acento na apreensão intelectual de temas e problemas que tinham pouco a ver com os desafios do cotidiano do povo, especialmente os pobres das periferias urbanas e do mundo rural.
            Sob o impulso daquele abençoado contexto inspirado pelas prioridades de Medellín, a opção pelos pobres sendo a primeira, ousaram ensaiar, com a orientação e acompanhamento de formadores como o Pe. José Comblin, um caminho formativo diferente, a começar pela opção de fazê-la junto com os pobres, e vivendo como pobres.
            Aspectos do tipo de formação dessa ousada experiência acham-se registrados no livro organizado pelo Pe. José Comblin, intitulado Teologia da Enxada. Uma experiência da Igreja no Nordeste. publicado pela Vozes, em 1977. Dizem respeito aos propósitos formativos da experiência, inicialmente voltada à  formação de jovens do meio rural, vocacionados ao presbitério. Experiência que se realizaria, em inícios dos anos 80, no Seminário Rural, inicialmente instalado numa pequena área chamada Avarzeado, no município de Pilões – PB, em 1981, pouco tempo depois (1982/3) transferido para Serra Redonda, com o firme apoio de Dom José Maria Pires, então arcebispo da Paraíba.
            Após passarem por vários dias de reflexão, no exercício do discernimento, acompanhados por uma Equipe de Formadores, e por uma criteriosa avaliação, em que se buscava ajudá-los num primeiro discernimento entre o caráter daquela proposta e o que sentiam aqueles jovens, em processo de admissão ao Seminário Rural, foi assim que por lá passariam dezenas de jovens do meio rural de vários Estados do Nordeste e até de fora do Nordeste. Aí passavam dois anos, numa experiência formativa que incluía, além dos estudos teológicos e da realidade social, o cultivo da lavoura e a criação de pequenos animais, como meio de contribuir para sua própria sustentação, bem como as atividades litúrgicas e atividades pastorais, junto às comunidades vizinhas. Nos dois anos seguintes, sempre contando com a participação de uma equipe de formadores, passavam em comunidades rurais, a estudarem, a trabalharem e a acompanharem as atividades das respectivas comunidades, numa atitude de aprendizado, vendo, ouvindo, sentindo e registrando diferentes aspectos de suas experiências. A formação se completava nos dois anos seguintes, quando assumiam o compromisso de irem ajudar a fundar novas comunidades, noutras regiões, sempre acompanhados pela Equipe de Formação.
            Essa fecunda experiência de formação de jovens do meio rural vocacionados ao presbiterado, que tinha contado com a aprovação do Papa Paulo VI, foi negativamente avaliada no pontificado do Papa João Paulo II, e desaprovada como insuficiente em sua proposta curricular... A partir daí, a experiência é mantida, mas na perspectiva de formação missionária para jovens do meio rural. E assim evoluiu, com a participação de várias dezenas de jovens.
            Experiência que se mostrava aberta e sensível aos sinais dos tempos, o que implicou a necessidade de se adaptar aos vários perfis e carismas de seus formandos. Nascem, assim, várias ramificações da mesma experiência: inicialmente, com a iniciativa de criar associações com caráter autônomo, tal como a Associação de Missionários e Missionárias do Campo, a Associação da Árvore. Uns, sentindo-se mais vocacionados a uma vida contemplativa (Fraternidade do Discípulo Amado, passam a viver uma experiência monástica de novo tipo, bem sintonizados com as necessidades, as aspirações, as lutas, as dores, as alegrias e as esperanças do povo dos pobres, passando a viver no Sítio Catita, em Colônia Leopoldina – AL;
            Outros continuaram vivendo no Centro de Formação Missionária, constituindo a Fraternidade São Marcos, dedicando-se à formação de jovens do meio popular rural e urbanos, em cursos oferecidos em vários formatos, conforme o perfil dos jovens formandos, vindos de experiência de animação de grupos de jovens, das pastorais sociais, de atuação sindical, de militância em movimentos sociais, ONGs, partidos políticos populares, ora em formato de finais de semana, ora em quinzenas semestrais, para os quais eram e continuam sendo oferecidos cursos versando sobre temáticas várias: formação de educadores populares, cuidados do meio ambiente, cultura de paz, comunidades quilombolas, entre outros.
            Outros sentiam-se chamados a uma vida itinerante, a peregrinarem pelo Nordeste, em consonância, aliás, com o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste. Convém, ainda, lembrar mais uma experiência dessa mesma “família”: a fundação da experiência formativa específica às jovens do meio rural. Eis que, em 1986/7. Mogeiro passou a ser a sede da formação dessas moças do meio rural, as Missionárias do Meio Popular. Outra experência fecunda, também na área da formação, foi a fundação das Escolas Missionárias, no final dos anos 90, espalhadas por vários Estados: Bahia, Piauí, Paraíba, Tocantins, Pernambuco.
            Convém, ainda, ter presente que várias outras experiências daí nasceram ou guardam consideráveis vínculos de afinidade, a exemplo da fecunda experiência de formação protagonizada pelo DEPA – Departamento de Pastoral e Assessoria, animada por uma Equipe de Formadores, da qual faziam parte: Pe. Humberto Plummen, o atual bispo anglicano Dom Sebastião Armando Soares, Pe. René Guerre, os Professores Eduardo Hoornaert, Ivone Gebara, Luiz Carlos Araújo, Marcelo Agusto Veloso, entre outros.
            A partir desse sucinto relato de elementos relativos à Teologia da Enxada, tratamos de focar o que entendemos como os fundamentos axiais da proposta formativa dessa experiência. Fundamentos que brotam de um entendimento novo da missão do Espírito Santo no mundo. Tema em relação ao qual a obra do Pe. José Comblin, especialmente a de caráter pneumatolótico, vem dando, pelo menos desde 1978, uma profunda contribuição. Nossa questão, agora, é: em que vem se inspirando a fecunda experiência da Teologia da Enxada? Que importância ela atribui à ação do Espírito Santo na História do Povo de Deus, ontem como hoje?

2. A ação do Espírito Santo sobre o Povo de Deus pelos caminhos da História

            Do vasto leque de temas trabalhados por José Comblin, em seu frutuoso percurso existencial e densa produção teológica, a ação do Espírito Santo no mundo, na história e na construção do Povo de Deus destaca-se sobremaneira. Mais do que uma simples inquietação circunstancial, esse tema nele se tem constituído um alentado projeto de incessantes buscas. Desse projeto, iniciado sobretudo a partir de seu livro O Espírito no Mundo (Petrópolis: Vozes, 1978), e ao qual dá seqüência com a publicação de uma meia dúzia de livros[1], este do qual ora nos ocupamos constitui um de reconhecida relevância e repercussão, dentro e fora da Igreja Católica latino-americana.
            Já tivemos ocasião de nos deter em outros textos de Comblin, a exemplo de O Espírito no Mundo e de O Povo de Deus. Agora, houvemos por bem, e em conseqüência dos estudos sobre a obra de Comblin, que vêm sendo objeto de trabalho de um pequeno Grupo, debruçar-nos sobre o presente, nos termos anunciados no título dessas notas.
            Iniciamos pela forma como vem estruturado o livro, aqui apresentando um quadro  panorâmico da obra, para, em seguida, propor um passeio mais detido pelos capítulos da mesma. Não por acaso, o mais volumoso dos estudos pneumatológicos publicados por José Comblin. Em quase quatrocentas páginas, cuja introdução toma dez por cento, ele distribui em nove densos capítulos sua fecunda incursão, iniciando pela explicitação e precisão dos conceitos com que trabalha, ao longo do texto, inquietação a que dedica os dois primeiros capítulos, destacando os sentidos da ação na história e na construção do povo de Deus.
            O terceiro capítulo é dedicado a uma apreciação crítica das relações entre o Cristianismo e o Helenismo. A marcante penetração deste nas manifestações do Cristianismo e suas profundas implicações, de modo a destacar suas negatividades. O desafio a Cristandade é alvo de análise do quarto capítulo, onde historiciza as relações características vivenciadas pelos cristãos nesse período, destacando as terríveis implicações, sem deixar de reconhecer aspectos positivos.
            “A Reforma em questão” é como intitula o quinto capítulo, em que cuida de situar historicamente a proposta da Reforma, em suas positividades e em suas inconsistências.O sexto capítulo trata do “choque da modernidade”. Nele, o autor aborda criticamente o impacto da “civilização do trabalho” e a posição da Igreja Católica e do Cristianismo, seja quanto a uma rígida oposição, seja quanto a uma aproximação. O estudo se estende até o pós-Vaticano II.
            O sétimo capítulo ocupa-se de analisar “a era das revoluções”, destacando seu contexto histórico, suas relações com o Cristianismo. Aborda, também, o sentido da ação revolucionária, bem como os aspectos positivos e negativos dos processos revolucionários. Por fim, o autor situa um impactante quadro de desafios conjunturais (oitavo capítulo), em relação a que importa exercitar o discernimento (nono capítulo), para se captar o sentido da ação inspirada pelo Espírito.
            Tendo fornecido um leve quadro sinótico do livro, buscamos, em seguida, resumir e destacar aspectos pontuais de cada capítulo, começando pela própria

Apresentação e introdução do livro

            Já na apresentação do livro, cuida o autor de explicitar o caráter de sua produção. Reconhecendo a vastidão do alvo de suas inquietações externadas no presente livro, prefere propô-lo em termos em que expressa profunda modéstia: propõe seu livro em termos de um ensaio, de uma hipótese, de uma sugestão, não obstante tratar-se de um texto com 389 paginas, fruto de uma pesquisa de longo fôlego, amparando-se em fontes e autores de reconhecida contribuição. Trata, igualmente, de assinalar o lugar social e o contexto sócio-histórico a partir dos quais propõe sua reflexão. Esta brota de um lugar e de um contexto bem concretos: o caminhar da Igreja Católica na América Latina da primeira metade dos anos de 1980. Daí é que despontam as interrogações partilhadas no livro.
            Começa a introdução com uma afirmação lapidar e emblemática: “Deus é ação. Nosso Deus é um que age: que liberta, constrói, transforma.” E, com propósito de contextualização sócio-histórica, parte, em seguida, para uma constatação tocante, inclusive pela sua refinada sensibilidade ecológica, já então (vale lembrar o livro foi publicado em 1982)> recorda que em cem anos, a população do mundo passa de um para seis bilhões, o que implicou a emergência dos seres humanos, da sociedade humana, como o maior desafio a ser enfrentado pela ação, pelas profundas implicações que tem representado essa enorme expansão da presença humana no Planeta (cf. p. 13).
            Por conta de tal desafio sócio-histórico, a Igreja é instada a passar de uma ação voltada para si mesma, para abrir-se, solidária, aos desafios do mundo, da história, de toda a sociedade, de promover o bem de todos os homens, cristãos e não-cristãos. É instada a contribuir efetivamente com o processo de libertação do homem todo e de todos os seres humanos (cf., por ex., a encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI, de 1967).
            Na esteira do anúncio da ação libertadora de Deus no mundo e na história, o livro indica os fundamentos e inspirações mais fortes dessa abordagem da ação do Espírito. Um desses elementos é a Teologia da Libertação, na medida em que nasce e se afirma, pela força do Espírito, como uma proposta de reflexão e ação dos cristãos na América Latina, no fecundo contexto sócio-históricos de Medellín (1968) e de Puebla (1979). Uma proposta de reflexão teológica, então ainda apenas anunciada, em suas bases e traços gerais mais fortes: o espírito profético de denúncia das profundas desigualdades sociais, o compromisso com a causa libertadora dos pobres e oprimidos, tomando estes como sujeitos de seu processo libertador, o exercício de uma consciência mais forte da Igreja Povo de Deus, abertura ao exercício de um ecumenismo de base, entre outras características que, em seguida, seriam tomadas como alvo de uma alentadora proposta de produção teológica, como a expressa pelo Projeto “Teologia e Libertação”, do qual resultaram importantes contribuições, em diferentes domínios, desse novo modo de fazer Teologia (a Teologia da Libertação), da qual o autor é uma das principais referências.
            No seio da Teologia da Libertação, vai se produzindo uma fecunda gestação de formulações inovadoras, a exemplo da Cristologia. No caso do presente livro, o propósito explícito do autor é de contribuir num domínio específico e organicamete articulado a outros: o campo pneumetológico, o da ação do Espírito Santo no mundo. Neste caso, tratava-se de continuar a contribuir, pois desde a década precedente, já iniciara sua contribuição (O Espírito no Mundo é de 1978). Espírito e libertação – eis o terreno mais impactante de sua contribuição, desde então.
            Tal é o alcance da contribuição do autor, enquanto um dos formuladores da própria Teologia da Libertação, que, mesmo reconhecendo que a TdL achava-se então ainda como um anúncio, precisando de consolidar-se em diferentes esferas, propõe-se contribuir na esfera da ação do Espírito Santo no mundo, tendo o Espírito como uma das mãos com as quais Deus age no mundo, na história e entre os homens (a outra é Jesus). Já àquela altura, sentia-se à vontade para tecer um comentário crítico na tendência de então de se fazer Cristologia, a partir de uma perspectiva eclesiológica ocidental. Sua avaliação, a esse respeito, revela-se bastante crítica: “Até o momento pode-se dizer que as teologias da libertação têm seguido os caminhos traçados pela teologia ocidental. É notório que ignoram as teologias do Oriente. Buscam uma cristologia, mas o mais das vezes se fundamentam, antes de tudo, numa eclesiologia. O fato se torna mais grave, visto que querem ser teologias da práxis, e se abordamos o cristianismo pelo ângulo da práxis, aquele que de imediato encontramos é o Espírito.” (p. 22).
            A teologia ocidental parece não haver encontrado em suas sínteses o lugar certo da Terceira Pessoa da Trindade. Até que se invoca sua presença, lembra o autor, mas quando se trata de pedir-Lhe que confirme as decisões já tomadas, sem um esforço concreto de escutar o quê o Espírito tem a nos dizer. Uma forma inconsciente de se tentar privatizar o entendimento da missão do Espírito Santo?
            Essa incompreensão ou entendimento insuficiente da missão específica do Espírito Santo na História tem implicado equívocos diversos. Um deles: a tendência a um certo cristomonismo, à medida que se acha completamente acabada mensagem cristã, após a ascensão de Jesus e a partida dos apóstolos. Tudo que se tinha a dizer, já teria sido dito. Agora, nossa missão é só repetir. É aí que se escanteia a missão específica do Espírito Santo, o enviado do Ressuscitado, que continua agindo sobre o Povo de Deus, inspirando-o em suas buscas, em suas lutas de transformação, na perspectiva do Reino de Deus.
            Devem-se a tal incompreensão da especificidade da missão do Espírito Santo sucessivos equívocos: o de julgar-se a Igreja como a continuadora do próprio Cristo, portadora dos seus poderes divinos, em vez de pensar-se estabelecida sob Seu poder. Mais: com tal compreensão, a Igreja julga ser função sua apenas conservar, repetir e difundir as verdades reveladas como sendo toda a Revelação; o equívoco de, ao definir-se como divina e humana, atribuir uma divisão rígida entre essas duas dimensões, de tal modo que, em virtude de seu lado divino, retém para si automaticamente qualidades que somente a Deus deviam ser aplicadas, e, em relação à sua dimensão humana, só retém as fragilidades, os pecados, as fraquezas, sem admitir também as potencialidades, as virtudes como também fazendo parte da dimensão humana, graças à atuação do Espírito na humanidade, na história; o equívoco de trabalhar apenas a unidade/uniformidade, fazendo uma leitura negativa da diversidade/multiplicidade, enquanto, em verdade, uma melhor compreensão da missão do Espírito Santo, a ajudaria a ver positividades e e negatividades tanto na unidade quanto na diversidade. Diferentemente do entendimento hegemônico na teologia ocidental, de que a unidade é divina, enquanto a diversidade é coisa humana, Comblin pondera que “a unidade como a multiplicidade, a uniformidade como a diversidade, são divinas e humanas, ao mesmo tempo. O Cristo é princípio de unidade, mas o Espírito é princípio de multiplicidade. Se existem formas de diversidade que constituem fraquezas devidas à fragilidade humana, existem também formas de unidade que são devidas à mesma fraqueza humana.” (p. 26). E conclui: “A volta ao Espírito restaura a plenitude das dimensões divinas e humanas da salvação.” (ib.).
            A partir dessa compreensão, o autor prossegue sua instigante reflexão, sempre bem fundamentado biblicamente. Assim, cuida de bem articular e distinguir as atribuições de Cristo e do Espírito Santo. Entre as Pessoas da Trindade, há uma unidade tocante, como há uma diversidade de funções. É o que acontece também em relação a Jesus e ao Espírito: suas atribuições comportam uma notável unidade bem como uma diversidade notável, sendo que esta é muito pouco observada na teologia ocidental. Donde o cuidado do autor, de acentuar tal distinção, sem prejuízo da unidade entre as Pessoas Trindade. “Para nos levar ao Cristo não outro caminho senão o Espírito.” (p. 30). E o Espírito dispõe para cada um, para cada uma, uma multiplicidade de caminhos cuja unidade é assegurada pelo próprio Espírito.
            Nessa mesma linha, Comblin aborda a missão do Espírito, nas diferentes situações humanas, inclusive quanto ao esforço de conhecer que comporta armadilhas, à medida que pretendemos conhecer a Deus, a partir de nossos esquemas próprios, de nossos métodos, o que implica apenas ter-se uma idéia de Deus. Só pelo Espírito chegamos ao verdadeiro conhecimento de Deus, pondo em prática seus ensinamentos, e não apenas limitanndo-nos a conhecimento intelectual. O mesmo se dá em relação à Igreja, à conversão – como expressão da ação do Espírito no meio do Seu Povo.

Elementos do estado dos estudos atuais sobre o Espírito Santo na História

            O primeiro capítulo, assim como o segundo, constituem um espaço destinado a explicitar o sentido que a obra confere aos três conceitos-chave que a permeiam: “Ação”, “História” e “Espírito”. O autor começa pelo sentido dado à “Ação”, focando principalmente a dimensão pública, antes que a ação no cotidiano, seguindo o critério bíblico e da tradição oral da mensagem cristã. Enquanto a maior parte da obra cuida de focar, de modo contextualizado, como se deu a ação do Espírito através da História, o primeiro explicita as relações entre ação, história e Espírito Santo, ao tempo em que, o segundo capítulo cuidará de situar o estado atual dos estudos bíblicos contemporâneos sobre o Espírito e sua ação na História. (cf. (cf. pp. 45-46).
            Com relação especificamente ao primeiro capítulo (pp. 45-75), o autor o distribui em duas partes: trata inicialmente da relação entre a ação e o Espírito (pp. 46-66); em seguida, enfoca a relação entre História e Espírito (pp.66-75). Os destaques da primeira parte incidem sobre o lugar de Jesus como Ação do Pai; o Espírito como continuação do Ressuscitado como Ação no mundo; o conteúdo e o valor dessa ação e a relação entre Messias e ação, enquanto na segunda parte deste capítulo (História e Espírito), reflete sobre o sentido de duas opções frente a esse movimento do Espírito na História: a de acomodar-nos à situação histórica ou a do compromisso com a transformação.
            Na leitura da Teologia contemporânea, Deus age no mundo por meio do seu Povo, razão por que a nossa ação tem origem divina, sendo a Bíblia um ponto de refência relevante, desde que seja interpretado à luz do Novo Testamento.
            Retomando as grandes linhas do primeiro capítulo,  primeiro destaque do capítulo incide sobre a missão de Jesus, o enviado do Pai para agir no mundo, ungido pelo Pai, desde sua concepção e desde seu batismo, para ser ação no mundo, na História. O livro enfatiza a ação de Jesus, em sua diversidade. Jesus aparece nos relatos bíblicos como Ação: anuncia, denuncia, cura, proclama, faz o bem por onde passa. Jesus é a Ação do Pai, pela força do Espírito. E, como Ação, tem como alvo maior, que atua como unidade de sua ação, a formação do Povo de Deus, pelos caminhos da História.
            À medida que esse Povo vai compreendendo sua vocação, passa a entrar para o Seguimento de Jesus, não tanto para imitá-lo, para copiá-lo, mas para reinventar sua ação, nos desafios do presente, eis por que, afirma o autor: “Toda verdadeira ação humana, toda história humana, todas as nossas ações encontram sua imagem perfeita, sua inspiração, nessa ação de Jesus. Toda a história, no sentido mais humano e profundo, apenas revive ou sai em busca da ação de Cristo para revivê-la. Mas para revivê-la será preciso reinventá-la. Nada há para ser copiado. Tudo foi dito, mas nada ainda foi dito. Tudo foi mostrado, mas tudo está por descobrir. Pela missão do Espírito, a humanidade reinventa a ação de Cristo, a seu modo, múltiplo e diverso, em todos os cantos do espaço e do tempo, e isso forma uma grande ação, uma única história.” (pp. 50-51).
            Eis por que Deus é ação, e das três Pessoas da Trindade é a Terceira que melhor a quem incumbe revelar esse atributo divino. Insiste o autor em reconhecer a dificuldade de se ter claro tal atributo de Deus, a partir dos profundos limites do vocábulo “Espírito”, em relação ao qual se passa uma idéia de algo contraposto a matéria, a corpo, na esteira do dualismo das filosofias gregas. Vocábulo a tal ponto limitado, de modo que o autor se sente obrigado a estar sempre lembrando que “Espírito ´quer dizer força ou ação. Dizer que Deus é Espírito é dizer que Deus é ação, energia, movimento.” (p. 51).
            E o Espírito age em nós, Seu Povo, pelos caminhos da História. A ação do Espírito não se deixa controlar por instituições. Nem por aquelas que, a exemplo das igrejas, pretendem ter o monopólio do Espírito. O Espírito age no Povo de Deus, e, em especial, se manifesta nos pobres, nos fracos. É aí que Sua força age de modo todo especial. Agir implica uma vasta multiplicidade de operações, protagonizadas pelas pessoas. São inumeráveis as ações. Mas, é agindo na direção da libertação que o ser humano vai se libertando. Cada ação conta para uma conquista mais ampla. Enquanto luta, o ser humano vai se pondo no processo de libertação.
            Nem toda ação provém do Espírito Santo. Somente aquelas que promovem e conduzem á liberdade, à libertação de todas as formas de escravidão. Somente aquela ação portadora de sementes de efetiva mudança. Mudança do mundo, mudança do ser humano. E mudança para melhor. Em breve, é toda ação que implique um processo de conversão pessoal e social. De cada uma, de cada um e do conjunto do Povo de Deus.
            Processo que requer incessante exercício de discernimento, condição a que o autor dedica parte do último capítulo deste livro, mas já adianta alguns de seus elementos. Discernimento tem a ver com o exercício de nossa capacidade perceptiva, de nossa atenção aos sinais dos tempos, ao que o Espírito tem a nos dizer e nos estimular a fazer. Implica também uma avaliação crítica das relações das forças em embate: as que lutam por mudanças efetivas e as que representam obstáculos a essas mudanças. Implica um ato criador, pelo qual são buscadas pistas concretas de ação transformadora. No limite, uma tal busca pode implicar o martírio, o ato cristão definido pelo autor como o mais completo, cuja referência maior é o próprio Jesus. (cf. pp. 57-58). Mais adiante, assim se exprime o autor, a propósito do valor da ação: “Cada uma das ações, desde o martírio até os mais humildes serviços quotidianos, é uma antecipação da libertação final e se projeta nessa tela de fundo.” (p. 61).
            No movimento de libertação dos pobres, sobretudo – mas não apenas – no universo judeu-cristão, as ações dos oprimidos têm comportado uma considerável motivação de caráter messiânico, à medida que, ao se darem conta dos mecanismos de sua opressão, põem-se a resistir contra a ordem imperante, e a ousar ensaiar caminhos alternativos. Não apenas as experiência messiânicas de natureza religiosa, como também as de cunho laico. A proposta de Jesus ia além de uma empreitada estritamente messiânica, ainda que não tenha sido entendida por seus discípulos. Acenava para um protagonismo maior dos próprios oprimidos, em vez de apostarem demais na força transformadora da ação exclusiva do Messias.
            De todos os modos, é em função da transformação da História que age o Espírito Santo no meio do Seu povo.
           













































A Bíblia e a História

- “o advento do Cristo entra realmente no mundo pela missão do Espírito. Afinal, a história de que fala a Bíblia é a da reconquista do mundo pelo Espírito de Deus.” (p.77, 3º par.)

- No relato bíblico, a ação do Espírito é a ação presente e libertadora dos homens. (p. 78, início)

- “O futuro só pode ser verdadeiramente preparado por um presente plenamente vivido.” (...) “A história bíblica conta o presente em todas as suas dimensões. Conta o passado para ajudar a compreender o presente e situá-lo.” (p. 78, 3º par.)

- “Uma ação é toda a expressão em que um homem se entrega e retoma toda a vida, doada em um instante, para vivê-la intensamente.”p. 78, últ. par.)

- 1. A BÍBLIA E A HISTÓRIA
O problema do sentido
- A tradição eclesiástica de tendência helenística, com enorme acento sobre a dimensão intelectual confronta-se com a realidade do Terceiro Mundo, daí resultando um outro sentido de História. (cf. p. 79)

- Como herança da teologia tradicional, a leitura que se faz da Bíblia é confinada ao indivíduo separado de suas condições geográf., históricas e sociais. (cf. p. 80)

- A recente redescoberta do sentido da ação, por meio da leitura bíblica, após a II Guerra Mundial, tem propiciado a libertação da teologia. Redescoberta que tem implicado a superação de uma leitura individualista da ação do Espírito, em favor de uma compreensão transformadora do mundo e da História (cf. p. 80, 3º par.)
- Durante séculos, predominou uma leitura ingêncua da Bíblia, uma leitura literal. Com a modernidade, e sobretudo a partir do século XIX, passou-se da leitura literal a um outro modo de interpretação que recorria às ciências humanas, o método histórico-crítico. Mas, aí também, se pratica um equívoco: o de confiar ao historiador a tarefa de interpretar “a” verdade, esquecendo-se de que também o historiador reconstitui a história a partir do presente e do seu contexto: “Não existe uma história que não seja do presente.” (p. 81)
- “Todas as nossas abordagens do sentido do autor são condicionadas por nossa teologia anterior, e esta, pela situação histórica.” (p. 82, 2º par.)
- “existe apenas um sentido da Bíblia, que é aquele que o Espírito lhe quis dar. Esse sentido só pode ser percebido pouco a pouco e de maneira sempre inacabada pela convergência, harmonia e condicionamento recíproco de todas as abordagens.” (p. 82, 5º par.)
- “Afinal, de que fala a Bíblia? De um povo que alcança a libertação tornando-se povo.”(p. 84, 2º par)
- “A Bíblia é o único livro de um povo sempre vencido, o único livro de pobres sempre em protesto contra os poderosos.” (“a Bíblia não é somente um livro de um povo oprimido, mas também o livro das promessas”)(p. 86, 2º e 3º par.)
- “Para a Bíblia o futuro não é a continuidade do passado, mas, sim, a realização das promessas.” (...) “e, portanto, da esperança.” (p. 88),

- “Estatisticamente, os pobres devem sempre ser vencidos. Mas há o fator humano. Há a novidade: há a força da esperança que faz com que os melhores cálculos dos fortes se revelem errôneos” (p. 89).

- “A ação verdadeiramente histórica não é aquela que resulta da implantação de um sistema de poder, mas aquela que ousa desafiar todos os sistemas de poder para ultrapassá-los.” (p. 89, 3º par.)

- Na segunda parte do 2º cap. (“Jesus e a História”, p. 89), o autor começa assinalando que tanto a cristologia tradicional quanto a moderna ignoram, por razões diferentes, o sentido da ação de Jesus e o seu alcance histórico. (cf. p. 89).

- A cristologia tradicional – inclusive a medieval – compreende o lugar de Jesus de modo pontual, como o marco em torno do qual giram o antes e o depois, sem qualquer preocupação de contextualização histórica. O que implicou uma compreensão problemática da morte de Jesus, com algo decidido sem tomar em conta o contexto histórico concreto. .

- Da p. 89 a 95, o autor faz uma incursão crítica pelas principais correntes de cristologia: a abordagem tradicional (influenciada pela história sagrada e pela abordagem de Hist. da Igreja do tipo de Eusébio de Cesaréia), a medieval (centrada na teologia da morte de Jesus, desconectada do contexto hsitórico) e a abordagem moderna, que recorre com euforia às ciências históricas (método hist.-crítico), que confere ao historiador o arbítrio de interpretar o sentido da pessoa de Jesus. O autor opta pelo caminho da ação cristã, tal como protagonizada pelo Povo de Deus, na atualidade, posto que nele age o Espírito, o único que revela Jesus.

- No caso da cristologia moderna, tudo vai se subordinar ao método histórico-crítico, ou seja à interpretação científica, que também não dá conta do sentido da ação de Jesus e do seu alcance histórico. É obra do Espírito Santo. (cf. pp. 91-93)

- Para se fazer justiça à humanidade de Jesus (também verdadeiro Homem), é preciso compreender sua morte no contexto de sua existência histórica: “a morte de Jesus faz parte de sua vida e tem um sentido na história.” (p. 93)

- A vida de Jesus apresenta uma unidade: Ele vive em função do Seu Povo; sua missão é refazer Seu Povo. Não há personagem bíblica que tenha radicalizado tanto tal função. (cf. p. 96ss)

- É sobretudo como Messias que a ação de Jesus se completa: é o Messias esperado (o Salvador); é o Messias de hoje: o que age pelo Seu Espírito na História, já; Jesus também já era reocnhecido como Messias em sua vida terrestre (p. 97)
- A cruz enfrentada por Jesus projeta-se na história. Dá o exemplo do assassinato de Dom Oscar Romero (20 de março de 1980), no momento em que Comblin redigia este capítulo (cf. p. 99, último parágrafo).

- No item 3 (O Cristianismo e a História), lê-se que a ação de Jesus projeta-se na história. Ele não disse toda a sua ação, no período de sua existência terrestre. Deixou aos discípulos e discípulas de todos os tempos o encargo de testemunhá-lo (p. 100).

- O enfoque paulino rememora a ação libertadora de Jesus: a libertação do Povo, não apenas individual como pretendem vários teólogos. Com base em Rm e Gl, enfatiza a compreensão paulina de “carne” (poder, riqueza, sexo, prestígio, tudo o de que os homens se gloriam). Enfatiza o tema da liberdade em Paulo: quais os frutos produzidos por uma vida em liberdade (p. 101-105)

- “Se o dom da profecia predomina sobre o dom das línguas, se o dom da caridade é o maior de todos, é porque se trata de dons que levam à ação e formam a história do povo de Deus.” (p. 106)

- “A novidade joânica não é a oposição das duas cidades, mas o que se passa antes do julgamento final” (p. 106). Ou seja: é a ação cristã na história, seja pelo martírio, seja pela reunião do Povo de Deus. (cf. pp. 108-109)






































CAPÍTULO 3: “O Espírito diante do helenismo” (pp. 112-153)

Pontos a destacar

- Cumprindo sua missão, o Espírito Santo entra na história humana em curso, num tempo e num lugar determinados. O tempo é de um período em que várias civilizações se apresentavam como universais, mas caminhando paralelamente sem que umas conhecessem as outras, pelo que negavam sua proposta pretensamente universal, já que, de fato, eram civilizações particulares; o lugar: uma dessas civilizações: a civilização helenística ou greco-romana. (p. 112)

- Principal desafio encontrado pelo Espírito: tratava-se de uma inserção num lento e longo processo, que duraria séculos, em que a oficialização por Constantino do Cristianismo como a religião do Império foi apenas o começo, e um processo que se estenderia até meados do século XX (pp. 112-113)

- O cap. 3 propõe-se refletir sobre como o Espírito julgou e reagiu à cultura helenística; como o povo de Deus nele encontra brechas para o projeto libertador; na diversidade das reações frete ao helenismo como encontrar os sinais do Espírito; terá havido aí espaço para a evangelização, ou, ao contrário, uma absorção pelos cristãos dos valores helenísticos. (p. 113)

- O exame dessas e outras questões é feito com base em alguns critérios: a leitura da Magistério da Igreja (que não se dá de forma uniforme); a Bíblia (em que pese a dificuldade de se apelar ao Evangelho para dirimir situações históricas particulares) e a atitude inspirada em Gamaliel, de deixar ao tempo o encargo de saber qual foi mesmo o resultado. (p. 113).
A partir daí, passa o autor a distribuir em três tópicos o capítulo: 1) as relações explícitas entre Cristianismo e a civilização helenística (pp. 114-130); 2) exercício de discernimento sobre as positividades dessa relação (pp. 131-143) e 3) discernimento sobre as negatividades da mesma relação. (pp. 143-153).

- O primeiro ponto destacado nesse capítulo é quanto à relevância do tema da cultura greco-latina, reconhecido por sucessivos escritores e correntes, inclusive contemporâneos, tais como Maritain e Mounier. (p. 114).

- A proposta helenística não esgota a ação do Espírito no mundo, é apenas parte de sua atuação, até porque a proposta de Jesus não corresponde plenamente a nunhuma corrente ou modelo cultural, além do que o Espírito também se faz presente em outras culturas (cf. p. 115).

-
- Tal é a relevância da incidência da civilização helenística na história do Cristianismo, que por vezes fica difícil separar este daquela. Marca atestada por vários elementos: a estrutura da organização eclesiástica, sua teologia, a formação do clero, seu modo de pensar, etc., não importando o fato de que a civilização greco-romana se apresenta fundamentalmente como uma civilização feita por e para as elites. (p. 116).

- Nun contexto em que a sociedade industrial desponta como atração de interlocução com o Cristianismo, importa compreender o significado de uma nova proposta que começa a surgir, a partir do Terceiro Mundo. (p. 117)

- Daqui para frente, em que pese a infuência da cultura grega, esta não será mais a interlocutora privilegiada para os cristãos, devendo-se lembrar, a esse propóstio, que nos primeiros séculos houve uma recusa completa de interlocução com a cultura grega, globalmente avaliada como um pecado. Prova disso foi a recusa da teologia e da ortodoxia, defendidas no concílio de Nicéia. (pp. 118-119)

- “A filosofia grega tornava impensável a novidade da história da salvação; não tinha meio algum de pensar em Deus intervindo na história para libertar o seu povo.” (p. 120)

- Embora alguma restrição seja feita ao comportamento de completa recusa do povo dos pobres e dos monges em relação à filosofia, o forte dessas comunidades era a simplicidade, donde a desconfiança diante dos livros e dos intelectuais, a exemplo do que mais tarde Francisco também testemunhou. (p. 120)

- Na Igreja do Oriente, embora menos intensa do que no Ocidente, foi também notável a influência da civilização greco-romana, inclusive entre as principais figuras dos Padre da Igreja. Estes recusaram radicalmente as formulações greco-romanas, ainda que inconscientemente se deixaram impregnar de valores da cultura combatida; “faltou-lhes tomar consciência da medida de sua contradição, aceitando sub-repticiamente muitos de seus elementos.” (p. 121)

- Houve por parte dos pobres e dos monges uma radical recusa daquela cultura de elite; “Os pobres rejeitam a cultura aristocrática.” (p. 121)

- Até à alta Idade Média, a influência da cultura grega ainda não se deu tão fortemente. Sua influência mais forte se dá sobretudo a partir dos sucessivos movimentos de renascença: o dos séculos XII e XIII; o dos séculos XV e XVI e com o Humanismo clássico do século XVII. (p. 121-122).

- Na primeira renascença, despontaram vários movimentos de rejeição à teologia de influência greco-latina: os cistercienses e os franciscanos radicais são exemplos. Mesmo assim, no século XIII, vem a síntese teológica sob a influência da filosofia grega. Tomás de  Aquino trata de cristianizar Aristóteles. (p. 122). Os humanistas também vão apresentar sua disposição de exercitar interlocução com a cultura greco-latina: Erasmo, Thomas Morus, Melanchton...

- Tal foi a capacidade de penetração da cultura helenística no Cristianismo, que os próprios Padres da Igreja (Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, João Crisóstomo e outros), em que psese certa resistência, terminaram assimilando vários traços dessa cultura, ainda que de modo inconsciente. E, por meio deles, a própria Igreja bizantina, sendo refratária a essa e a outras culturas, por ser justamente conservadora e fiel aos Padres da Igreja, também não pôde escapar (inconscientemente) à mesma influência cultural. (p. 121)

- Dado o fraco desenvolvimento da cultura greco-latina durante a alta Idade Média, somente a partir do primeiro movimento de renascenças(o dos séculos XII e XIII; o dos séculos XV e XVI e o do Humanismo clássico do século XVII), resulta forte a influência helenística (pp. 121-122); 
-
- A infiltração da civiliz. Helenística deu-se, não apenas entre os monges do séc. IV, mas também nos bizantinos conservadores (p. 121)

- A partir do século XII, foi intensa a reação à cultura, protagonizada por vários movimentos populares, entre os quais os Franciscanos Radicais, influenciados por Francisco de Assis que se opunha aos livros (bastava o Evangelho), por conta da enorme tendência a justificar atitudes distantes do Evangelho.

- Houve uma retomada da infiltração helenística durante os movimentos de renascença (os dos séc. XII e XIII, os dos séc. XV e XVII e o do humanismo clássico do séc. XVII (122)

- A esse propósito foi vigorosa a resistência dos movimentos pauperísticos, inclusive dos radicais franciscanos. Francisco recomendava não recorrer aos livros. (122)

- O espírito da contra-reforma gera uma espécie de cruzada anti-erasmiana, sobretudo na Espanha e na Itália, de modo a prejudicar inclusive o desenvolv. científico (123)

Em que resultou o projeto de cristiianizar o helenismo? (pp. 124-129)

- Não por acaso, a partir da contra-reforma, cultivou-se um modelo de padre cuja refer~encia maior era a figura do Pe. Cura d´Ars (cuja teologia era baseada na Bíblia, na vida dos santos e nos escritos dos místicos, e dizia não ser capaz de entender a teologia (124)

- Tal o embevecimento de figuras como Orígenes e Tomás de Aquino, pelo helenismo, que cometiam uma interpretação que representava muito mais do os filósofos gregos queriam dizer (125)

- Tomás de Aquino é provavelmente o único exemplo de síntese entre uma filosofia pagã e a mensagem cristã, em todo o Cristianismo, o que consistia em submeter tudo à razão, desconsiderando os desígnios de Deus  (p. 126)

- É lamentável que não se tenha seguido a atitude conciliadora de Erasmo e outros, para evitar profundas divisões sectárias entre católicos e protestantes, forçando esses grandes humanistas a se envolverem em polêmicas intermináveis, o que lhes tolheu a oportunidade de elaborar uma síntese, como a de Tomás, de modo a atualizar a reflexão diante dos novos desafios (p. 127)

- Tal a aposta de Tomás de Aquino na filosofia aritotélica, que se lhe poderia perguntar se, assim agindo, não correria o risco de desconsiderar tudo o que o filósofo grego ignorava (p. 126).

- “A cultura helenística é uma cultura de elites, feita pela elites para a elites. Para falar de maneira mais precisa, a cultura greco-romana era uma cultura feita para ociosos, para pessoas que não precisava trabalhar.“(p. 127).

- Uma das conseqüências mais fortes desse processo de cristianização da cultura helenística tem-se traduzido pela estreita aliança das elites eclesiásticas com o poder, através de séculos. Seguindo o exemplo dos filósofos gregos, transformavam-se conselheiros de todos os príncipes (p. 128)

Penetração do helenismo no Cristianismo (pp. 129-138)

- A penetração do helenismo no Cristianismo se deu por obra dos próprios teólogos, e não pela ação direta dos filósofos. E deu-se em sucessivas vagas. A primeira foi por meio dos capadócios (no Oriente) e Agostinho (no Ocidente), nos séc. IV e V. (p. 129)

- Nos séculos V e VI, tal penetração teve continuidade, mediante a autenticação feita pelos concílios dos conceitos elaborados pelos Padres da Igreja, de notável carga cultural helenística. (p. 129)

- A segunda grande onda surge com o Tomismo que assume uma forte influência na teologia, em sucessivas épocas, desde e para além da Idade Média, sempre autenticada por diferentes concílios (Florença, Trento...), alcançando até o Vaticano II (p. 130).

- Nesse processo de penetração, encontram-se positividades e negatividades, analisadas pelo autor, recorrendo ao discernimento do Espírito Santo, por meio de milhões de pessoas e centenas de movimentos, ao longo de vinte séculos (p. 131)

- Sem desconsiderar suas negatividades, há de se reconhecer na cultura greco-romana valores universais positivos, a exemplo do cuidado com a razão e com a dignidade do indivíduo, atributos relevantes no enfrentamento do irracionalismo e da submissão a forças cegas naturais e sobrenaturais (p. 132)

- A penetração do helenismo no Cristianismo se deu a partir de Constantino, pelo recurso à religião da razão, que favoreceu as classes dirigentes, por meio do cultivo do monoteísmo político (um só senhor....) (p. 133)

- A religião racional está convencida de que a paz social só pode ser assegurada pela religião. A religião é o cimento de todo Estado civilizado. (p. 134)

- Pelo fato de o Evangelho ser lido pela ótica da religião racional (fazendo duas leituras; uma racional e outra cristã, p. 135), fez-se profunda a penetração do helenismo no Cristianismo, inclusive impregnando as bases populares, urbanas e rurais, até os dias de hoje, quando dá sinais de ruína por conta da mudança de época que se começa a viver. (pp. 134-135)

-  No racionalismo cristão, a fé é sobretudo um ato de razão. O Espírito aí também esteve presente, especialmente num tempo em que a humanidade vivia aterrorizada pelo medo e pelas marcas do irracionalismo, que imperava por meio de todo tipo de medo das forças não conhecidas e que dominavam e amedrontavam. Embora a religião racional não tenha cristianizado a Europa, ajudou a enfrentar as ameças do irracionalismo e da dominão por terríveis forças religiosas que tornavam reféns os homens. (p. 135 e 136)

- Apesar do seu excessivo otimismo (confiante na força da ordem, do progresso e da bondade, sendo incapaz de reconhecer o mal, entregando-se mais à contemplação do que à ação), a religião racional contribuiu positivamente para evitar os excessos da culpabilidade. A religião racional oferece a razão contra o império da barbárie e das forças descontroladas dos instintos. (pp. 137 e 138)

Como tal penetração incide na teologia (p. 138)

- A religião racional, no campo da teologia, chega à convição de que se pode conhecer toda a complexidade do mundo por meio apenas da razão humana, e que a filosofia pode ser um instrumento para a ação, especialmente a ação política (p. 138)

- Sob a inspiração da religião racional, a teologia manteve-se conservadora, especialmente no campo político. Também, no campo científico, seu raciocínio dedutivo mostrou-se eficaz para perceber o já conhecido, mas não ajudou a incursionar pelo novo, como o faria a pesquisa científica vindoura. A teologia tradicional manteve-se distante do povo, aristoc´rática, elitista, mas preservou um aspecto do Evangelho (o dom da razão) (pp. 140-141)

Aspectos negativos da penetração helenística (p. 143)

- O cristianismo evangélico opôs resistência à cultura helenística, por várias razões:
- o deus dos filósofos gregos é o deus do cosmos, e não o deus na história dos homens, o libertador do seu povo. Embora seja o ser humano o centro do cosmo, contendo-o em si, qual microcosmo, o cosmologismo difere do Evangelho que acentua as diferenças entre o ser hujmano e o universo (pp. 143-144);

- Sob a influência do cosmologismo, a classe intelectual da igreja comporta-se tal como o “partido da ordem”, na media em que entende a ação só como pura preservação da ordem vigente, não como ação de Deus na história, aberta também à transformação. (cf. p. 144)

- A recusa eclesiástica à modernidade não se deu por conta das fontes do Cristianismo ou da vida simples do povo cristão, mas por conta da teologia penetrada pela ideologia do cosmogonismo. (p. 145)

- Outra marca forte da teologia tradicional tem a ver com sua impregnação do idealismo helenístico, que não vem por certo da Bíblia nem do Evangelho, até porque estes não pactuam com o dualismo, buscam a formação integral do homem integral, não apenas da alma (p. 146)

- O idealismo produziu, não apenas o isolamento do espírito (dimensão excessivamente exaltada), mas também o desprezo ao trabalho manual. A conseqüência foi o abandono da cultura do trabalho (“Ora et labora”) da tradição beneditina e franciscana, para a entrega de monges e do clero às atividades estritamente “espirituais” (p. 147)

- O traço mais forte deixado pelo legado do helenismo foi o esquecimento ou má compreensão do lugar do Espírito Santo na história. Inclusive na Patrística, houve um entendimento inscuficiente da missão do Espírito Santo, enquanto superexaltou-se a expansão do Verbo, fazendo confusão entre as missões específicas do Filho e do Espírito Santo. (p. 148)

 - “Por causa disso a afirmação do Deus monoteísta se torna mais importante do que a ação de Deus na história.” Isto se faz devido ao idealismo como forma de praticar a religião racional,e m vez da práxis libertadora. No processo idealista, fica esquecida a ação do Espírito Santo no mundo, enquanto uma classe se apresenta sumamente favorecida: a dos hierarcas
(p. 144-154)

CAPÍTULO 4: O DESAFIO DA CRISTANDE (segunda parte: pp. 154-193)

- A cristandade desponta como o desafio talvez mais grave lançado à Igreja. O imperador Constantino lança sua proposta de cristandade, erigindo-a em “estatuto de religião oficial da sociedade política e do Estado”, e a Igreja a acolhe e vem acolhendo durante séculos, de modo quase incessante. . (p. 154)

- O autor distribui em três tópicos os conteúdos abordados neste cap;: 1. “Definição da cristandade” (pp. 155-174); 2.  “O positivo da cristandade” (pp. 174-179); e 3. “O negativo da cristandade” (pp. 180-193)

- No tópico acerca da definição, trata de situar o estado da questão, recorrendo a várias teses, que analisa criticamente, começando pela tendência a tomar-se a cristandade como algo em extinção. Assim, por meio de figuras como Mounier e outras, avaliou-se como morta a cristandade ou a era constantiniana. Tal esquema binário sofre a influência da modernidade com efeitos semelhantes em outros esquemas binários do tipo “subdesenvolvimento-desenvolvimento”, “tradição-modernidade”, “sacro-profano” e outros (pp. 155-156)

- Ao fazer a crítica da crítica da cristandade, assumindo-a como morta, o autor lembra que a tese do anúncio do fim da cristandade não é uma tese nova: Joaquim de Fiore, já no século XIV, tinha vislumbrado a chegada de uma nova era, a era do Esírito. E depois de Joaquim de Fiore, vieram vários movimentos pauperísticos que até antecederam a Reforma, bem como os hussitas, Lutero, própria Revolução Francesa... O curioso é que sucedia que “os destruidores da cristandade acabavam sempre por reconstruírem uma outra, pouco diferente.” (p. 156).

- A história mostra que há uma variedade de formas de cristandade. Inclusive a do Oriente, mais radical do que a do Ocidente. O caso da cristandade bizantina, até com fundamento bíblico (cf. Rm 13 e 1 Pd 2, 13-16 (pp. 157s)

-  Tão diferentes podem ser as formas de cristandade, que mesmo nos Estados modernos, que dezem tê-la superado, elas se fazem presentes, como a pós a fase mais radical da Ver. Francesa, nos Estados Unidos, nos países latino-americanos, e até na Rússia estalinista, pela via da negativa. Nesta “Os dissidentes são tratados mais duramente do que nas épocas mais duras da inguisição;”... (pp. 158-159)

- Avalia muito criticamente o despontar do fenômeno da secularização na Europa, entendendo tratar-se de algo muito grave: não se trata apenas de uma recusa à cristandade, mas de uma rejeição a qualquer projeto de mudança societal que implique esforço coletivo e sacrifício (p. 159)

- Na igreja latino-americana, até Medellín, prevaleceu o modelo europeu de cristandade, diferente do modelo norte-americano, onde ele se faz presente no tecido mesmo da socieade civil, sem apelo direto à hierarquia e ao Estado. Com Medellín, surge um apelo a um enfrentamento da opressão, ao apenas por meio explícito do Evangelho, mas de ajuda direta na sociedade. Há incertezas quanto ao rumo da cristandade. (p. 160)

- Por medo a exposição ao dissenso, o Concílio Vaticano II preferiu evitar o enfrentamento da cristandade, nele prevaleceu o silêncio. (p. 160)

- Uma das dificuldades no discernimento da cristandade, bem como das críticas a ela dirigidas, reside na ambiguidade a que podem dar lugar trechos do Novo Testamento (cf. Rm 13 e 1 Pd 2, 13-16, só para citar dois exemplos). Aqui há um problema político que pode ser a fonte da ambigüidade referida. A partir dessas passagens, é que surgem interpretações como a de Eusébio de Cesaréia, segundo as quais a aliança com os poderes políticos pode ser benéfico ao Reino de Deus, e a de Constantino teria recebido de Deus a missão que ele cmpriu. Contrariamente a essa linha apresenta-se o Apocalipse de João, explicitando uma adversidade radical entre os poderes políticos e a causa do Reino de Deus.  (pp. 161-162)

- A despeito da linha purista de interpretação seguida pela corente do Romantismo, é possível observar-se que a cristandade não era um bloco homogêneo: em que pese a confuência de pontos comuns em seus fins, havia uma distinção clara de funções entre as atribuições do poder temporal e as do poder religioso. (163)

-  Várias páginas (da p. 163 à 174) são tomadas pelo autor para completar sua “busca de definição” da cristandade. Destaca três características definidoras do fenômeno: 1) a identidiade de ins ou objetivos (“é uma sociedade que adota os fins cristãos como seus próprios fins”); 2) legitimação moral (“é uma sociedade à qual a Igreja, em troca, oferece uma legitimação”); 3) distinção complementar (“é uma sociedade em que os dois poderes, espiritual e temporal, permancem claramente distintos, mas sempre buscando agir em colaboração”) (pp. 163-174).

- Quanto ao primeiro princípio – o da idendidade de fins -, o autor dá exemplo de vários países em que se passa tal comunidade de fins, ainda que às vezes formalmente separados, mas na prática claramente observáveis. (p. 165)
- Com relação ao segundo princípio – o da legitimação cristã -. Observa-se uma expectiativa e uma cobrança de que, uma vez assegurados os princípios cristãos pelo Estado, na ótica do que interpreta a Igreja, então o Estado vai cobrar a parte da Igreja, que a legitimação, que é abençoar publicamente a ordem estabelecida. (166)

- E com relação ao terceiro princípio, trata-se de agirem em colaboração, mas cada um em seu terreno próprio. São mencionados vários exemplos – inclusive no caso da Nicarágua de Somoza, em que os bispos retiram o apoio, mas estabelecendo regras para o novo Governo. A mútua coloboração inclui um leque de possibilidades, inclusive o uso da violência. (pp. 167-171)

 -  Um tópico é consagrado pelo autor a algumas considerações pertinentes quanto ao caráter sociológico e histórico da cristandade, levantando a questão quanto às circunstâncias e fatores que a engendram; quanto às possibilidades de sua longa permanência; quanto ao caráter privilegiado da religião, no que tange ao favorecimento do poder (bem mais do que outros fatores – cultura, língua, etc. – de dominação em relação aos objetivos dos impérios. (pp. 171 a 174)

- Algumas páginas são também consagradas pelo autor às positividades observáreis no período da Cristandade. Um delas parte de uma crítica ao quase completo abandono, pela Reforma, da dimensão política, na medida em que significou às vezes uma tentativa de privatização e de interiorização do Evangelho. Enquanto isso, a Cristandade – bem ou mal, mais mal do que bem = não se isola do político e do social, exercitando tais esferas à sua maneira; (p. 175)

- Dadas suas motivações de cristianizar toda a sociedade, a Cristandade acabou por enveredar pelo afrouxamento das exigências feitas aos iniciados nos primeiros séculos, na base da disciplina, do catecumenato, da penitência, com o propósito de fazer penetrar a evangelização em toda a sociedade. (p. 175)

- Também no plano político, a Cristandade apresenta uma postura positiva em relação à esfera política, ao relacionamento com os poderes temporais, com os quais faz aliança para preservar seus objetivos. O espaço político não é puramente opressor, também pode servir  à causa do Reino de Deus: “O cristianismo não pode permanecer estrenho à ordem política e à sociedade.” (p. 176)

- Pretendendo purificar a Igreja da cumplicidade com o poder, a Reforma “Rejeitou uma Igreja de mãos sujas, mas fez uma Igreja sem mãos.” (p. 176)

- O autor reconhece como positiva a posição de certa cristandade, como a apontada na Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, por conta de seu apelo a um enraizamento social: “o evangelho se dirige aos povos e às culturas.” Faz, porém, uma ressalva relevante: já ocorreu de Jesus, em benefício do próprio povo, ficar isolado, em busca de despertar o povo e trazê-lo de volta aos caminhos da justiça: “Jesus enfrenta o povo inteiro, em nome desse mesmo povo. Não se isola senão para voltar melhor.” (p. 177)

- “A cristandade tende a absorver os cristão e absorver seus cuidados a ponto de lhes fazer perder de vista o próprio Evangelho.” Por outro lado, centrando-se numa perspectiva de salvação individualista (“Salva tua alma”; “Tens uma única alma a salvar.”),“Os Reformadores pregaram um Evangelho individualista e suprimiram a solidariedade entre pecadores e justos. Cada qual deve, doravante, fazer sozinho sua Salvação. Os pecadores não têm mais lugar na Igreja. Não lhes resta outra solução senão a hipocrisia.” (p. 179)

- Após evocar – não sem dificuldade! – alguns pontos positivos, o autor acentua, a justo título, as negatividades, destacando o recurso abusivo à violência e o apego à riqueza.
Com relação à violência. Eis por que “Em vez de se concentrar sobre a evangelização, a Igreja se concentra na defesa, na manutenção, na difusão e expansão da cristandade.” (... ) “procurando afirmar sua identidade através dos símbolos que a representam. Os símbolos cristãos ocupam o lugar da ação e das obras cristãs.” (...) “O clero se consagra sobretudo a aumentar e a conservar a herança cultural e material ou a reproduzir seus símbolos: festas e lituragia, associações eclesiais, igrejas e oratórios, conventos e mosteiros requerem seus cuidados. O padre e o monge serão, essencialmente, seus construtores: o tijolo é o melhor símbolo da vocação eclesiástica nessa época.” (p. 180)

- “No entanto, a tendência dominante vai no sentido do conformismo. Encoraja a fé simólica e a ação simbólica mais do que as virtudes teologais do Evangelho.” Contra a tendência da cristandade, de fazer da cruz um objeto de arte, Lutero reage com a sua “teologia crucis”, uma vez que “A cruz não foi feita para ser venerada, mas carregada.” (p. 181)

- Se antes de Constantino, tal era a posição da Igreja contra a violência, que até o serviço militar estava vedado aos cristãos, depois dele passou a ser obrigatório, e os cristãos passararm a aderir e a participar em guerras, cruzadas, repressão, Inquisição, criação de ordens militares, etc. Os próprios monges de Cluny, que faziam votos de humildade, depondo as armas sobre o altar, e não participando pessoalmente da violência, abençoavam as espadas dos cavaleiros... Embora na maioria das vezes, a Igreja se tenha pronunciado contra o uso da violência pelos seus membros, numerosas foram as exceções, inclusive de papas que pregavam o recurso aos seus próprios exércitos para os Estados pontifícios. (pp. 181-182)

- Outra via adotada por muitos era a fuga para os mosteiros, mas também isso não resolvia o problema, já que o pacto Igreja-Estado implicava o apoio às armas e ao uso da violência. (p. 182)

- Pretendendo justifica o uso da violência, a Igreja passou a adotar como justificativa o princípio ou pretexto da “guerra justa”, abusivamente utilizado contra as “heresias” (os albigenses, os hussitas...), bem como nas guerras de religião, na repressão extrema feita pela Inquisição... (p. 183)

- O melhor serviço que a sociedade política, em regime de cristandade, espera da Igreja, é que ela legitime e abençoe a ação violenta dos soberados. Do ponto de vista teológico, a Igreja se apoisava na lógica pagã de que Deus estava sempre do lado dos vencedores. (p. 183)

- Outro recurso usado e abusado pela Igreja, no período da cristandade, foram: o apelo à riqueza, o apoio e a legitimação dos ricos, tendo o próprio clero se tornado rico, graças à multiplicação de seus privilégios por Constantino. (p. 184)

- Graças às facilidades criadas por Constantino, aumentaram os privilégios do clero, a ponto de que “No Ocidente, o clero e os mosteiros vieram a possuir um terço ou a metade da riqueza do país.” Riqueza que a própria Igreja tentava justificar dizendo colocá-la a serviço dos pobres, o que, em parte, tinha algum fundo de verdade, mas sempre prevaleceram os laços de alinaça com o poder temporal. (p. 185)

- O fruto concreto dessa aliança fundamental é atestado pelo empenho do alto clero em perseguir sempre os levantes dos pobres e oprimidos: “O clero fez o que pôde para se opor à ascensão das comunas ou às corporações medievais. Fez o que pôde para impedir ou reprimir as revoltas camponesas.” (p. 186)

- “a Igreja assumiu a educação dos ricos.” Foi o clero que se tornou o educador das lideranças dirigentes, e quem as educou. “O raciocínio que, desde a Idade Média, justifica a educação dada às  classes dirigentes, é o seguinte: se quisermos cristianizar a sociedade, devemos, primeiro, cristianizar aqueles que têm poder de transformar essa sociedade.” (p. 187)
- Por outro lado, há os que buscam atender ao apelo do Evangelho, clamando pela volta à pobreza das comunidades primitivas. Este foi testemuho de Francisco (“De certo modo, ele é a encarnação do cristianismo em terra de cristandade”) e dos movimentos pauperísticos da Idade Média. Francisco de Assis não foi o único. Eles foram milhões e renascem a cada geração.” (p. 188)

- O problema da pobreza na Igreja desponta como o mais irritante para o autor, visto que, em nome da pobreza, até votos são pronunciados, a demonstrar justamente que, se os religiosos fossem pobres, não precisariam fazer votos de pobreza. (p. 188)

- Aludindo, inclusive a Ernst Troeltsch, o autor lembra a tendência de bifurcação dos movimentos heréticos: ou a radicalização (e o enfrentamento mais vigoroso da repressão) ou a cooptação pela hierarquia. Exemplos dessa clivagem foram os valdenses e os franciscanos, bem como as figuras de Lutero (que lutou contra a cristandade, e ligou-se a outra, a dos nobres) e Thomas Müntzer, representando o movimento de radicalização ao lado dos camponeses alemães (pp. 189-190)

- E nesse contexto e no período seguinte (séculos XVI e XVII), produz-e uma situação paradoxal: a Reforma que deveria fortalecer os movimentos de pobreza, terminam por enfraquecê-los e, involuntariamente, precipitá-los para um quadro revolucionário – os casos da Revolução Inglesa e do perfil revolucionário de algumas colônias da América do Norte. (p. 190)

- Paradoxo que também experimentou Vicente de Paulo: num contexto de extrema miséria, provocada pelo luxo da corte e as guerras travadas pelo rei, ele não via outro caminho senão o de socorrer e abrigar os pobres, os vagabundos e os doentes, mesmo sabendo que a fábrica de miséria era maior do que os esforços seus e de seus companheiros, de socorrer os necessitados. (p. 190)

- A título de conclusão do capítulo IV, e numa apreciação de conjunto, o autor destaca, entre outros pontos:
            * a iniciativa da cristandade partiu do poder civil;
            * a Igreja foi obrigada a escolher entre duas situações: ou ficar à margem da sociedade ou integrar-se ao Império. Optou pela segunda via... (p. 190)
            * uma vez instalado o regime de cristandade, apenas duas alternativas se punham aos cristãos: 1) ou integrar-se à dinâmica daquela sociedade, usufruindo de suas vantagens e possibilidades, ou ficar à margem da mesma, mas sem poder mudá-la. (pp. 191-192)
            * há, de um lado, o excesso de certas iniciativas extremadas, desconhecendo os ritmos da Históira; e, por outro lado, o que predominou, toda uma história de acomodação ao sistema, como ocorreu, inclusive entre os religiosos, cujos fundadores foram quase todos traídos, quanto aos fundamentos de suas mensagens fundadoras. (p. 193).















Pontos tratados no cap. V (“A Reforma em questão” do livro Tempo da Ação

(Pontos resultantes da leitura de Alder)

O capítulo V (pp. 194-218) tem como título: “A Reforma em questão”. Distribui-se em três tópicos “Abordagem da Reforma” (pp. 195-206); “O positivo da Reforma” (pp. 206-213); e “O negativo da Reforma” (pp. 213-218).

- O autor inicia sublinhando a relevância da Reforma para o Cristianismo, hoje, seja para protestantes ou para católicos, até porque reforma é um apelo antigo do Cristianismo, dantando mesmo das origens, conforme o texto do Apocalipse dirigindo-se às igrejas, sem esquecer que os prórpios profetas são também reformadores. Ao abordar a temática da Reforma, o autor o faz de modo a atentar para a Reforma dos séculos XIV e XV, da Reforma propriamente dia e da Reforma Católica. (pp. 194-195)

- O propósito do autor, neste primeiro tópico, é abordar tanto a influência histórica sobre a Reforma e sobre o Cristianismo historicamente em curso, como também a influência que a Reforma eventualmente implicou para a história, em que pese o purismo dos reformados em que pretender libertar a Reforma da história... (pp. 195 196)

- As igrejas pentecostais foram as maiores responsáveis pela expansão da Reforma, inclusive nos Estados Unidos. (p. 196)

- À semelhança da expansão missionária testemunhada pelas igrejas pentecostais, deu-se também a expansão missionária católica, nos quadros da Reforma católica, em estilo semelhante com exceção das polêmicas doutrinárias. (p. 196)

- Impulsionada pelo conhecido princípio “Soa Scriptura”, o Protestantismo oscilou entre o rigorismo principista e o receio de não destruir toda a herança cristã, já que os Reformadores apostavam em superar os vícios eclesiásticos pela adoção de um Cristianismo puro, isento de qualquer mediação histórica: pretendiam alcançar o Cristo puro, buscado apenas e tão somente nas Escrituras. Aí pretendiam encontrar, como o autor da Imitação de Cristo, o Cristo fora do mundo, fora das contaminações da história. Daí a forte tendência à interiorização, ao cobate às exterioridades medievais, das festas, cantos, músicas, teatro e de outras manifestações populares. Combate e desmonte feitos em nome da pureza da fé, ameaçada por superstições, magia, etc. (pp. 197-198)

- A Reforma vai tender sempre mais ao silêncio, à interiorização, substituindo gestos de solidariedade pela mera escuta da palavra: “A ação interior faz esquecer a ação cristã sem mais.” (p. 198)

- Para a mentalidade reformadora predominante, a mensagem cristã é uma realidade espirital que se opõe ao material ou ao corpo. Neste caso, tudo se resume ao interior, à alma, não importando a história, o mundo, a propósito de que o autor afirma que, para a Reforma, “A históira não ultrapassa os limites da consciência.” E mais:“Paradoxalmente, a Reforma quis ser uma exaltação do Espírito e ela desemboca na supressão pura e simples da missão do Espírito,” (pp. 200-201)

-  No item que aborda a relação História e Reforma, autor alude ao abandono pelos reformadores dos camponeses, jogados à própria sorte, salvo honrosas exceções como o teólogo Thomas Müntzer, que defendeu vivamente os camponeses. A Reforma favoreceu aos interesses das elites urbanas ou a burguesia em formação. (pp. 202-203)

- Expressão e produto dessa relação entre História e Reforma é o processo de secularização. Este, em sendo um fenômeno não exclusivo do período da Reforma, assume uma nova dimensão ao tempo da Reforma, na medida em que implicou uma autonomização das realidades terrestres em relação ao paradigma vigente na Idade Média. (p. 204)

- Quanto ao positivo da Reforma, o autor começa destacando a personalização, ou seja, o apreço à pessoa como sujeito, como indivíduo, cuja consciência pode dissentir da norma dominante, ou seja, a Igreja Católica, considerada o único sujeito. Em seguida, destaca a tese weberiana, da confluência entre os interesses da Reforma e os da classe emergente, quanto à valorização da racionalidade, da abertura ao desenvolvimento científico-tecnológico, e ao empenho pela poupança. (pp. 206-213)

- Com relação ao “Negativo da Reforma”, o autor destaca: o esquecimento dos pobres, a culpabilização do indivíduo e o individualismo. (pp. 213-218)
















































CONTINUAÇÃO DO LIVRO O TEMPO DA AÇÃO, de J. COMBLIN

Anotações de Alder sobre os pontos tratados no capítulo VI; “O choque da Modernidade” (pp. 219-267)

- O capítulo VI distribui-se por alguns tópicos gerais, começando pelo da civilização do trabalho, aí considerando em que bases foi assentada (a felicidade e a razão), quais as marcas desse reino, qual sua ideologia, que positividades e que negatividades neles são encontras. Depois, examina como a Igreja se posiciona frente a essa nova realidade. E, por fim, aborda a aproximação entre cristianismo e modernidade.

- O autor começa por delimitar, no tempo e no conteúdo, o que considera “Modernidade”: a grande transformação do conjunto da sociedade, nas distintas esferas da realidade e da existência individual e coletiva, que tem início no século XVIII e se estende pelos séculos seguintes. Trata-se de uma mudança de época, de civilização, agora apoiada na sociedade do progresso ou da indústria. (p. 219)

- A Modernidade representa para os cristãos um desafio maior, desde suas origens, ainda maior do que o da cultura helênica,  o da cristandade e o da Reforma, afinal agora se lida com a mais profunda de todas as mudanças já enfrentadas em dezenas de milênios antes, quando se vivia uma cultura rural. Agora, pela primeira vez, vão predominar valores, sentimentos e práticas do mundo urbano (p. 220

- Desafio para os cristãos, pois a Bíblia, que tinha sido escrita num e para um contexto rural, parece pouco ou nada ter a dizer aos cristãos da civilização da indústria ou do desenvolvimento. Tal é a profundidade das mudanças trazidas pela Modernidade, que o ritmo da vida torna-se estranho, não apenas em relação a povos antigos da Ásia, da África, etc., mas até para pessoas do mesmo país, vivendo vinte anos distantes dos seus lugares de origem rural...(p. 220)

- Apostava-se então, como última palavra, no desaparecimento da religião e do próprio Cristianismo. De fato, as mudanças na sociedade foram extremamente impactantes. Antes, durante séculos, nas mudanças ocorridas (Helenismo, Cristandade, Reforma), com exceção das tribos nômades e dos povos caçadores e pescadores, as mudanças não eram tão profundamente sentidas, a não ser para as elites. Quando se davam, soavam aos povos da Ásia, da África e de outros continentes como se estivessem passando de uma dimensão do neolítico para outra, mas dentro do próprio neolítico. A partir do século XVIII e seguintes, já se trata de lidar com uma mudança de época como nunca antes vista, a afetar toda a existência humana, individual e coletiva. (p. 221)..

- As igrejas tiveram grande dificuldade de enfrentar a Modernidade, também por terem elaborado uma teologia do trabalho, um conceito estranho às suas atividades até então. (p. 222)

- Para aceitar o desafio da Modernidade, a Igreja Católica teve que esperar até à realização do Concílio Vaticano II, que se ocupa de definir e de definir-se frente à Modernidade, ainda que de modo limitado (por exemplo, o próprio Vaticano II, a partir mesmo do exemplo da composição de seus membros e temas (foi um concílio fundamentalmente europeu), teve dificuldade de se situar perante a descolonização. (p. 223).

- Pela primeira vez, uma mudança tão profunda se distancia das anteriores. E o fator principal é o advento do trabalho, tal como concebido pela Modernidade capitalista. A Modernidade traz a inovação da classe dos capitlistas. O autor recusa-se entrar na discussão sobre o que originou o quê, se a mentalidade burguesa que gerou o Capitalismo ou se este gerou aquela: entende que se trata de uma discussão semelhante à de quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Mas, acentua que o Capitalismo só teve sucesso quando e porque também contou com a adesão de forças outras, como a dos Estados nacionais. (p.223)

- Um fator decisivo que distingue o período da Modernidade em relação a outros, tem a ver com os objetivos: enquanto as sociedades de outros períodos tinham como objetivo a paz (shalom), assim definida pelo critério da religião, a Modernida se dá como objetivos a felicidade e a razão. (p. 224).

- Muito impactantes, os objetivos da Moderinadade, comparados aos das sociedades anteriores. Estas, em que pese sua diversidade de evolução histórica, apoiavam-se fundamentalmente em valores religiosos, bíblicos: a paz (“shalom”), inspirando-se na orientação para a conformação do ser humano com a ordem da natureza e do univcerso, enquanto os objetivos da Modernidade gritavam por felicidade e pelo reino da razão. (pp. 224)

- Até antes do advento da Modernidade, a felicidade do ser humano vinha do universo religioso, da harmonia com as coisas do céu e com as coisas da terra (plantas, animais, etc.). A vida na terra não conseguia encher o ser humano, sua felicidade dependia também do alto. A Modernidade faz descer do céu para a Terra o ideal de felicidade. Esta consiste em satisfazer as necessidades materiais e culturais, erigindo o consumo como a porta de entrada dessa felicidade. (p. 225).

- A partir do século da luzes, o conceito de felicidade vai restringindo-se a satisfação de todo tipo de necessidade, necessidades de caráter material e necessidades de natureza cultural. As necessidades não cessam de se multiplicar, em vista de se alcançar uma vida de conforto: apartamento, carro, alimentação variada, ar condicionado... é só conferir a diversidade espantosa de aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos, sem os quais já “não se pode passar”... (p. 226).

- Com relação à consideração de praxe de que os primeiros segmentos da burguesia praticavam a ascese, o autor identifica tal prática apenas com relação às despesas feitas pela burguesia para financiar despesas da nobreza e do clero (catedrais, mosteiros...), para ela coisas inúteis do ponto de vista de sua grade de valores, esta apontando mais fortemente para a multiplicação das necessidades e do consumo, vale dizer da produção. (p. 227).

- Depois da felicidade, o outro elemento a caracterizar as bases da civilização industrial é a razão que abre espaço ao enorme desenvolvimento científico. Na nova civilização, o trabalho se submete à razão, uma razão colada à produção de bens de consumo. (p. 2287)

- Diferentemente dos períodos anteriores, em que a razão estava colada ao desenvolvimento humano como ser em sua integralidade, muito se inspirando em Deus, fonte desse ser, na sociedade das luzes a razão e a ciência tornam-se meios eficazes do progresso, concebido como satisfação de incessantes necessidades (p. 228)

- O autor se remete à conhecida Tese 11 de Marx (dirigida a Feuerbach), de que os filósofos só fizeram pensar o mundo, quando se trata é de transformá-lo, assinalando não tratar-se de uma tese estritamente marxista, já que o período das luzes tratou de levar isso bem a efeito, com perspectivas evidentemente diferentes, é claro. (p. 228)

= O enorme poder absorvente da civilização do trabalho, submetida aos objetivos últimos da felicidade e da razão - ambos orientados à expansão produtiva e ao consumismo – encontra na Economia sua principal alavanca. Esta logo se torna a rainha das ciências. A partir daí as ciências, as pesquisas, a tecnologia – tudo se torna isntrumento a serviço do progresso da civilização industrial. Até a religião, as artes, as profissões liberais e respectivos profissionais – todos se transformam em assalariados.
O próprio socialismo real segue essa direção, em conhecidos casos de trabalhos forçados para seus prisioneiros. É nisso que consiste “o reino do trabalho” (pp. 228-230).

-A ideologia do trabalho envolveu uma boa parte dos trabalhadores. Não a todos. Muitos trabalhadores não se viram contemplados pela felicidadade atribuída ao trabalho. Os trabalhadores mais qualificados sentem contemplados, de tal modo a substtiuir o trabalho pela religião. (p. 231)

- A ideologia do trabalho não é apenas relativa ao Capitalismo. Tem a ver com as classes dirigentes, capitalistas ou não. Ambos os lados tudo apostam no trabalho como meio completo de satisfação das necessidades do ser humano. Diferentemente de sociedades anteriores, que valorizavam também outras atividades gratuitas, tais como a festa, os jogos, de tal modo que, em certos casos, as horas de festa e de jogos se equiparavam às de trablaho, a sociedade moderna volta-se exclusivamente para o trabalho produtivo, como meio de satisfação das necessidades humanas. Mas, nem todos os trabalhadores sentem assim: a maioria não identifica sua felicidade no trablaho. (pp. 231-232).

- A despeito de tratar em itens distintos os elementos positivos e os negativos da civilização do trabalho, o autor costuma alternar esses aspectos, mesmo quando formalmente está tratando só de um dimensão.
Dentre as positividades da civilização do trabalho, aponta:
- o exemplo de algumas descobertas (como a Pasteur) que implicaram amplo aumento da expectativa média de vida (em menos de um século, tendo passado de 30 anos para 70);
- algumas invenções tecnológicas redundaram em considerável alívio de situações de penúria para seres humanos, haja visa a utilidade de certas máquinas...
          No que diz respeito às negatividades, acentua as seguintes, dentre outras:
- a civilização do trabalho acarretou, tanto para os países capitalistas quanto para os países do socialismo real, uma corrida tresloucada em busca da expansão incontida de produção de bens de consumo, sem que isso tenha redundado no cumprimento da promessa fundamental da civilização industrial, de felicidade;
- a expansão da produção favoreceu basicamente às elites, não se estendendo pelo conjunto da sociedade. (pp. 233-239).

- As vinte seguintes páginas o autor dedica ao segundo grande item do capítulo, ou seja, a refletir sobre a reação das igrejas cristãs diante da devastadora evolução da Modernidade (p. 239=p. 259) sublinhando com mais força a fragilidade da teologia do trabalho, a atitude inicial de recusa sistemática à Modernidade, a penetração desta inclusive por parte das igrejas cristãs e a perda da classe operária.

  De início, a Igreja, apostando na provisoriedade da onda moderna, tratou de recusá-la pela raiz, na esperança de que logo passasse a onda... É que as igrejas cristãs se ressentiam de uma teologia do trabalho à altura do novo desafio. Antes, o trabalho manual era apenas uma  dentre muitas atividades então desenvolvidas. Com o advento da Modernidade, o trabalho passa a absorver uma enorme variedade de atividades.

- Por outro lado, a coneepção de trabalho da Igreja era, em parte, refém da concepção helenística com seu caráter escravista. Além disso, o exercício do trabalho tinha uma conotação peniltencial: trabalhar para expiar os pecados... Nesse sentido, foi bastante influente a orientação beneditina do famoso “Ora et laborare”. A prórpria etimologia de “trabalho” – “labor”, “tripalium” sublinha sua dimensão de pena...

  Tal concepção soa pessimamente aos ouvidos dos modernos, com sua visão profundamente apologética do trabalho, atitude que o autor questiona: não será, antes, uma posição realista, ao menos para os que realmente metem a mão na massa e em cujas costas recaem esses trabalhos? Como estes poderiam avaliar o trabalho senão como um inferno ou um purgatório? p. duzento e quarenta e dois.

  A partir do aparecimento das cidades e das corporações e ofícios, a concepção teológica de trabalho traz uma evolução notável. O trabalho é entendido como atividade humana a completar a criação. Deus é o autor da natureza, e entrega ao homem a tarefa de interagir com ela, em proveito do bem comum. O trabalho é exercido com a convicção de que a parcela humana de colaboração com a obra divina. Coneepção que é negada pela Modernidade, que vê o trabalho em seu sentido estritamente utilitário, destinado a satisfazer necessidades materiais e culturais, a serviço do consumismo: “a civilização de trabalho não deixará senão uma natureza massacrada e amontoados de concreto e ferragens.”... p. duzentos e quarenta e três e duz;quar. e quatro.

  Há uma crítica feita pelo autor à Reforma como inspiradora de uma visão de trabalho como mera obrigação de cumprir em vista da salvação, como uma “vocação sem conteúdo”; Obedece-se, mas sem saber para onde vai. A Reforma não inquietou em saber se a nova civilização do trabalho gerava ou não injustiças sociais clamorosas.

- A ruína propiciada pela civilização do trabalho foi mais longe, ao esvaziar de sentido a religião cristã. Os cristãos antes tinham no trabalho um motivo de colaboração e de louvor a Deus. Com a Modernidade, o trabalho vira um inferno só aceitável enquanto meio para se manter vivo, para adquirir a ração necessária.

- As regras da sociedade passam a ser movidas exclusivamente pelas leis de uma economia desprovida de ética, a não ser a ética do lucro, das vantagens extraídas da super-exploração dos trabalhadores. Duzentos e quarenta e cinco

- A recusa da Igreja, inicialmente manifesta em gestos isolados de inconformismo, vai se tornando extremada, durante todo o século XIX, haja vista a contundência dos documentos eclesiásticos publicados ao longo do pontificado de Pio IX, até o Vaticano I, cheio de condenações e censuras a tudo que cheirasse Modernidade, afastando=se inclusive da classe operária...

- De início, passa a fazer aliança com os partidos conservadores, anti-republicanos, depois vai se aliar também com os liberais contra os partidos operários. Por vezes, isto se dá por meio de uma posição dúbia: “nem liberalismo nem socialismo”, o que reforça a posição da burguesia. Dizentosd e quarenta e seis e duz. E quarenta e sete.

- Nem todos os cristãos se aliaram à posição da Igreja. Houve resistências, a exemplo dos jesuítas no Brasil, que foram perseguidos tanto pela Coroa quanto pela Igreja, por conta de sua defesa dos povos indígenas. A Ação Católica também resistiria, mas só a partir demil novecentos e vinte e seis.

- Aproveitando a posição dúbia da Igreja, a burguesia começa a penetrar nas bases eclesiásticas, cooptando suas lideranças, a começar de suas escolas católicas. Até as encíclicas sociais se mostraram funcionais a tal aliança com a burguesia, ainda que elas o façam com certa precaução. Com o famoso livro do Pe. Godin, a experiência dos padres operários,  a JOC e, mais recentemente, o Concílio e as conferências de Medellín e de Puebla, é que houve certa mudança nessa aliança, reatada, porém, a partir do pontificado de João Paulo II.






Capítulo IX: O Discernimento (pp. 352-379) e Conclusão do livro (pp. 380-389)

- É o último capítulo do livro “O Tempo da Ação”, de José Comblin. O autor o distribui em duas partes: na primeira trata de explicitar o tipo de abordagem que orienta o sentido do discernimento (pp. 353-370), enquanto dedica a segunda parte a tratar da libertação dos pobres e suas mediações (370-379). O discernimento é a ação do Espírito de Jesus, iluminando as escolhas e as decisões individuais e coletivas do Povo de Deus, ao longo da história. É o Espírito quem conduz a história por meio do discernimento e da ação dos pobres, dos humildes, dos fracos em quem Sua força se revela. O Espírito conduz a história, sem nada nos impor. O discernimento ocorre nas ações humildes, modestas e sobretudo escondidas, protagonizadas pelos pobres. O discernimento, também na perspectiva de O. Cullmann, é o coração da moral cristã, no plano da ação na história. (pp. 352-353)

- Três tópicos compõem a primeira parte, onde explicita que abordagem o guiará em sua reflexão sobre o discernimento: a abordagem paulina, o discernimento na história e a prática do discernimento.

- Quanto à abordagem paulina do discernimento, o autor toma como ponto de partida os estudos do exegeta P. G. Therrien, para quem o discernimento é colocado no centro da vida cristã. E não se trata de restringir o discernimento apenas às ações do dia-a-dia, no cenário da vida particular ou da vida intra-eclesial, mas de detectar a presença iluminadora do Espírito nos entrechoques da história, buscando identificar as relações orgânicas entre o que se passa fora com o que se passa na vida cotidiana. Também, não se trata de voltar-se para o mundo exterior, apenas com o intuito de pragmatismo, de extrair do cenário externo só o que interessa e é vantajoso para os de casa. Seria uma atitude oportunista e interesseira, a ser evitada, pois os fatos e os acontecimentos da história devem ocupar um lugar central na ação dos cristãos. “O discernimento é o princípio fundamental do agir cristão, enquanto procede do Espírito.”(pp. 353-354)

- Dos escritos paulinos acerca do discernimento, o autor, partindo da contribuição de Therrien (“Le discernement dans les écrits pauliniens” (in Études bibliques), sublinha quatro trechos muito densos:
* 1 Ts 5, 19-22: “Não extingais o Espirito. Nâo desprezeis as escrituras. Submetei todas as coisas ao discernimento; ficai com o que é bom; afastai-vos de qualquer espécie de mal.”
          * Rm 12, 2: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do sentido moral, a fim de discernir o que o bom: o que lhe é agradável, o que é perfeito.”
* Fp 1, 9.11: “O que peço em oração é que vossa caridade seja cada vez mais abundante em conhecimento e em intuição para cada situação, de modo que possais discernir os verdadeiros valores, a fim de serdes sinceros e irrepreensíveis no dia do Cristo.”
* Ef 5, 10: “Discernindo o que é agradável ao Senhor.”

- Inspirado nos escritos paulinos, bem como em João, o autor segue caracterizando o sentido do discernimento, alertando para não confundi-lo com um ato de mera cognição, ao mesmo tempo em que o situa como o ato de fazer a vontade de Deus. Identificar a vontade de Deus supõe o exercício de conhecê-la, sim, desde que se trate de um ato que se dá no campo da ação, enquanto se busca agir: “É ao colocar sua ação que o homem a descobre e a conhece; Antes, buscou-a. É preciso buscá-la no meio dos sinais que se encontram no mundo.” Quem não ousa agir, tomar posição diante dos desafios concretos da vida, não chegará ao discernimento. (p. 355))

- Outro ponto relevante a observar: “O Espírito lembra o ensinamento de Jesus sob a forma da ação nova, que está a inventar a cada momento. A lembrança é criadora.” (p. 355)

- O discernimento é a forma como se dá o encontro entre a história de Deus e a história dos homens, pela qual entra o Reino de Deus. Um encontro que convida à mudança. As burguesias não apreciam essa história de mudança, apegam-se a princípios abstratos que não as obriguem a acatar as lutas de transformação do mundo. Do Espírito, apegam-se apenas a princípios gerais que, no máximo, sejam úteis à sua vida privada. Para os pobres, ao contrário, a mensagem eristã inspira esperança de mudança. Eis por que “A vida do cristão consiste justamente em fazer surgir o novo.” (pp. 356-357)

- A esperança suscitada pelo discernimento opõe-se ao escatologismo de tudo esperar por milagre, sem qualquer disposição de fazer a sua parte. A esperança cristão anima os cristãos ao protagonismo, a lutarem enquanto esperam, confiantes, na plenitude dos tempos. Não se omitem de fazer a sua parte, de fazer a sua ação, conforme sua vocação.  (p. 357)

- Para o autor, “o discernimento não se deixa guiar pela sugestão da circunstância: está à escuta do Espírito para criar alguma coisa de novo que vai além dos costumes, dos determinismos, das exigências das circunstâncias.” (p. 357)

- Embora não tenha faltado, ocorre que a tradição teológica cuidou pouco da questão do discernimento. Em parte, por conta da escolástica com sua visão de mundo próxima da civilização helenística; em parte, por conta da Cristandade, e em parte também por conta da Reforma que, ao enfatizar demais a fé pura, desconfiava das mediações temporais, levando, assim, a um entendimento de uma mensagem cristã fora da história ou sem história. Ora, o autor sustenta que o verdadeiro discernimento não pode vir unicamente da fé, mas, ao mesmo tempo, da fé e da história. (pp. 357-358)

- Nos momentos conflitivos, de que a vida também se compõe, não há unanimidade nas posições tomadas pelos cristãos. Ocorrem, com frequência escolhas diversas e até opostas. É a massa dos pobres que se levanta, em protesto e mesmo em revolta contra as estruturas perversas do mundo, como no caso das cristandades, em que, ora com uma resistência surda, ora com manifestações de revolta, levantam-se contra a corrupção do clero, contra a aliança da Igreja com os privilegiados. (pp. 358-359)
- No caso das massas latino-americanas, sucede a mesma desconfiança dos pobres em relação às elites dominantes. Estas atribuem tal atitude dos pobres à falta de esclarecimento, de instrução, mas o autor atribui tal atitude dos pobres ao exercício do discernimento sob a inspiração do Espírito. Atitude de desconfiança que persiste, mesmo quando as elites tentam cooptar os pobres, fazer reformas para manter inalteradas as estruturas. (p. 360).
- O povo dos pobres – especialmente os camponeses – tem tido contínua desconfiança diante das propostas de mudança vindas da burguesia e seus aliados. Tem-se distanciado do oportunismo, da sede de poder dos setores dominantes. Tem preferido a “theologia crucis”, mantendo-se avessos à vitória dos poderosos. (p. 361)

- Ao abordar o sentido do discernimento, o autor sustenta que este se dá em meio aos desafios da história, razão por que não fiquem os cristãos a pretender praticar o discernimento na história, a partir de um ponto zero, pois a história é um contínuo, e o Espírito age como ato segundo e corretivo. Eis por que, para o autor, “Discernir é, ao mesmo tempo, compreender a ação real, compreender o sentido do Espírito e compreender como se compõem o Espírito e o mundo atual.” (p. 364)

- O discernimento se faz à medida que os cristãos ousam participar da aventura histórica, e não dela se afastar. Isto requer conhecê-la, em suas esferas econômica, política e cultural, recorrendo à mediação das ciências humanas, mas indo além delas, perscrutando o que o Espírito tem a dizer. As ciências humanas ajudam a dizer o que se passa, mas a voz do Espírito chama para algo mais, para o que pode ser. O discernimento não compactua com a necessidade imperiosa de se vencer, a todo preço. Este tipo de história só interessa àquele que está obstinado a vencer, enquanto o verdadeiro discernimento evita essa lógica, sente-se dela emancipado, donde o sentido da “theologia crucis”, no sentido de que para se ganhar, é preciso saber perder. “Ora, para entrar na história, é preciso conhecê-la. Para entrar na evolução da economia, da política ou da cultura, é preciso fazer parte dessa evoluação, saber quais as forças e recursos de que dispõe. É preciso conhecê-la não só no que é, mas naquilo que não é.” (...) “O Espírito fornece o conhecimento do que poderia ser: como o messianismo pode se transformar realidade.” (pp. 364-365)

- Só o povo dos pobres se interessa mesmo pelo discernimento, no sentido de ter realizada, já aqui, a utopia do Reino de Deus, já que aos poderosos interessa manter a história tal qual é, entendida como uma necessidade invencível, pois assim mantê-la lhes interessa. (p. 365)

- O tópico seguinte trata da “prática do discernimento”, que signica o discernimento na prática, pelos caminhos da história. Um primeiro ponto aqui focado diz respeito ao desafio de se saber dosar bem o tempo entre as tarefas do cotidiano e a responsabilidade cidadã, isto é, a vida pública. Uma esfera está ligada à outra. Uma é importante para a outra. Ao longo do livro, o autor destaca a primazia do público na proposta cristã: “Que o cristianismo não diz respeito apenas, nem mesmo em primeiro lugar, à vida quotidiana, este livro supõe em cada página.” (p. 366)

- O grande desafio colocado ao cristão, a cada momento: a tensão entre a defesa da honra (que se faz na vida pública) e a busca de segurança (alvo da vida privada): “A honra o chama para a praça pública e a segurança o retém em seu lar. Entre a honra e a segurança a batalha é permanente.” (p. 366)

- Mas, há o risco de entrar para a vida pública como meio de realização de interesses particulares: é, no caso, a privatização dos espaços públicos... (p. 366)

- A vocação do cristão o induz à vida pública, à ação no mundo. Assim é a vocação religiosa: um chamamento ao comparecimento à praça pública, assemelhando-se ao significado do que foi o batismo para Jesus: uma entrada para a vida pública. Daí a afirmação do autor, de que “A vocação religiosa é uma opção pela ação pública o mais integral possível.” (...)  “O Espírito, mais que todas as solicitações de honra humana, é capaz de provocar .opções pela ação pública, com sacrifício da vida privada ou quotidiana.”(p. 367)

- O discernimento se faz a partir de uma relação madura entre o respeito à subjetividade e o respeito à comunidade. No caso dos jesuítas, de início até se tentou respeitar a autonomia relativa do indivíduo, mas no final, o acento terminou recaindo na obediência total ao superior. Passou-se de um subjetivismo a outro (o do superior). Salvo exceções proféticas, o discernimento nasce de uma construção coletiva, de uma inserção numa corrente, num movimento histórico. O discernimento não procede, normalmente, de um ato isolado. Mesmo quando é difícil construir-se um consenso, é mais seguro tentá-lo por essa via do que aceitar que brote de indivíduos isolados. (pp. 368-370)

-Na segunda parte do capítulo, a atenção do autor se volta para a libertação dos pobres e suas mediações. Desde suas origens, o Cristianismo se faz em movimento, em movimento comprometido com a libertação dos pobres. É pela ação dos movimentos históricos que tal libertação se vai fazendo. No período da cristandade buzabtuba, passa-se a centrar a liberdade dos pobres na força do rei ou do imperador, cabendo-lhe a tarefa de proteger os pobres. A partir do século XIX, foi-se entendendo melhor que a libertação dos pobres é fundamentalmente obra deles próprios. Seus aliados podem ajudar tal processo, mas jamais substituir o protagonismo dos pobres, nesse processo: “A tradição cristã impõe uma distinção entre a ação dos pobres que se libertam e a ação dos outros para libertar os pobres.” (...).”Nenhuma ação de libertação feita pelos pobres consegue substituir a ação dos próprios pobres.” (...) “Basta rever a história dos últimos vinte séculos para constatar que, a cada passo, aqueles que assumem a representação dos pobres e assumem ou guiam em seu nome a libertação, se tornam, por sua vez, uma nova classe dirigente e refazem a sociedade de tal modo que ela perpetua seu papel dirigente: a mediação se torna seu próprio fim.” (pp. 371, 372 e 373)

- Isto se tem dado secularmente, pela instalação do medo sobre os “de baixo”, em cada época, inclusive nos processos revolucionários contemporâneos, em que o partido assume em nome de toda a classe, e passa a desconfiar da ação das massas. A verdadeira libertação dos pobres não comporta receitas trazidas de fora para dentro nem de cima para baixo. Supõe, isto sim, exercício do silêncio perante os pobres e muita disposição de escuta. Isto também vale em relação à Igreja, como ensinam os documentos de Medellín e de Puebla. Aí a Igreja reencontra sua vocação. (p. 374).

- O último tópico da segunda parte do cap. IX trata do sentido e do papel da mediação. Como oprimidos, os pobres são, não raro, mantidos sob a sujeição, a resignação e a acomodação. Sozinhos, não conseguem organizar-se em busca de sua libertação. Precisam de uma mediação, de verdadeiros aliados que os animem, sem tomar-lhes a direção, nesse processo de libertação: “Os pobres não se libertam, se para isso não forem chamados. Precisam de uma promessa e de uma esperança para que tenham fé e se ponham a caminho. ´É este o papel dos profetas. O cristianismo introduz neste mundo a função profética e é uma função animada pelo espírito.” (p. 374)

- “A tragédia das igrejas durante ps dois últimos séculos e até esses últimos anos foi que elas renunciaram a levantar a voz. No seio da miséria, a classe operária foi despertada em muitos lugares e impelida para a ação por outros profetas. Os anais do socialismo mostram o quanto, pelo menos os militantes das primeiras gerações, agiram como profetas, no momento em que os profetas oficiais calavam.” (p. 374)

- Embora haja distinção entre a ação profética e as funções políticas, cabendo, antes, ao profeta “preparar uma palavra”, enquanto a preparação da ação é, antes, da alçada do político, o autor alerta quanto a que “o profeta deve ser livre diante do poder e, sobretudo, deve ter o poder de chegar realmente até os pobres.” (p. 375)

- Não há sistema imutável. É preciso conhecer seus pontos frágeis, e pôr-se em ação. Para se manter, o sistema cuida de manter os pobre ignorantes do seu funcionamento. Cabe a quem entra para o discernimento a tarefa de examinar qual é sua parte, já que todos têm uma fatia de poder, e colocá-la a serviço da mudança. Da mudança do sistema: “O discernimento se refere, portanto, em primeiro lugar, à mudança do próprio sistema.” No entanto, o processo de libertação dos pobres é algo incessante, não basta pôr-se abaixo o sistema dominante, é preciso estar sempre disposto a corrigir, a fazer nova conversão, para o que também aí é relevante a ajuda dos que vêm de cima, desde que caminhem lado a lado com os “de baixo” (pp. 377-378).

- No final do capítulo, o autor alerta quanto ao fato de que classe dominante alguma cede espontaneamente o poder, donde a necessidade de uma longa preparação que supõe vários passos. Um deles consiste em distinguir entre discurso e prática, não só do sistema como também de seus aliados. Não raro, estes a pretexto de servir, buscam mesmo sua promoção, a manutenção ou ampliação de seu status, sua ascensão funcional. Tal como ocorre aos próprios aparelhos do sistema: só falam em servir ao povo, quando, na verdade, tratam de preservar ou ampliar seus interesses: “É assim que os funcionários servirão àqueles que poderão aumentar o poder do sistema.” (...) “A ação cristã consiste em uma conversão dos poderes em serviço.” Por mais forte que pareça, todo sistema é mutável, “Continua sendo uma ação de homens e depende da ação de homens pessoalmente responsáveis.” (p. 379)

Conclusão do livro (pp. 380-389)

- O autor põe ênfase nos pontos-chave refletidos ao longo das quase 400 páginas do livro: a ação do Espírito no mundo tem sido constante, ao longo da História, em particular dos últimos vinte séculos. Trata-se de uma presença atuante em milhares de ações, em ações múltiplas. A ação do Espírito se conhcce pelo seu caráter libertador. A força libertadora do Espírito se faz a partir dos pobres, dos fracos deste mundo, a quem o mesmo Espírito chama e anima a transformar o mundo, a partir da mudança de si mesmos. (p. 380)

- Só conhecemos um pequena parcela da ação que o Espírito suscita e e anima no meio dos pobres. Elas são múltiplas e silenciosas, na maioria das vezes. Aparecem mais pela iniciativa de seus representantes (tomados positiva ou negativamente) do que pela dos próprios oprimidos. O Espírito também leva tais ações muito além dos objetivos perseguidos pelos movimentos dos pobres. Sua ação se espalha como manhca de óleo. Nâo necessariamente de forma pura, a ação se dá de forma misturada, de modo a envolver heroísmo, testemunho, mas também medo, covardia, taição...(p. 381)

- Agir é entrar num dos canais da correnteza da história da humanidade, sabendo de nossas limitações históricas e buscando superá-las pela força do Espírito. Ação implica mudança, em espaço, em tempo e em ritmos diferentes: às vezes, as mudanças se dão pouco a pouco, lentamente (como na Cristandade, de feição rural, por exemplo), às vezes, também, podem dar-se de modo brusco, nos processos revolucionários. A ação se dá com erros e acertos. Mesmo errando, é melhor agir do que cruzar os braços. (p. 382)

- Por vezes, sucede que processos revolucionários instalem a dúvida entre os cristãos, estes não escolhem “o” processo revolucionário de sua preferência, são instados a se posicionar ao lado deles, com discernimento. Isto significa não se contentar com a mudança, mas ousar transformar sempre, libertar da própria libertação (aprimorar a libertação. Isto não pode ser obra espontânea da história, como o entende a secularização, que se conntenta com conferir um sentido, sem agir na transformaçação propriamente (p. 383)

- A ação libertadora se dá de vários modos e ritmos. Às vezes, por meio de uma longa resistência muda; outras vezes, aparece mais expressamente. Para cada situação concreta, há uma determinada forma de ação. Tudo tem sua hora. O Espírito está sempre soprando, mas nem sempre se responde positivamente ao Seu chamado. Nos Estados liberais do séc. XIX, não se agia junto aos movimentos sociais, por se entender que tal ação não era própria dos cristãos; outras vezes, a ação foi bastante limitada por conta da repressão do Estado (como na Rússia stalinista), A tentação é substituir a ação pela palavra, pela interpretação, e deixar ao Espírito o que tarefa dos homens (cf. p. 384)

- A primeira experiência de inserção da Igreja no palco do mundo se deu por meio da Cristandade bizantina, através dos signos litúrgicos que substituaíam a ação no mundo. O que estava por trás dessa opção é o receio de agir no mundo, por conta dos riscos de impureza, de se misturar com os não-puros. Daí a nostalgia e encantamento pelas comunidades primitivas, que também não tinham uma ação propriamente no mundo, segundo sua voccação, o que vai acontecer um século depois, nas perseguições pelo enfrentamento do mundo, conforme sua vocação (cf. p. 385)

- Por não se viver uma “época de síntese”, em que predomina um consenso significativo, mas, antes, um tempo de muitas dúvidas e de uma considerável diversidade de interpretações, os pobres agem dentro dessa diversidade, nela procuram fazer caminho de libertação. Com a modernidade, centrada na razão (ou num tipo de razão), pretendeu-se impor a todos um modelo. O resultado foi a imposição de uma escravidão. É na diversidade que está a ação cristã, à medida que respeita várias razões, com diversidade de ciências. (cf. p. 386)

- Dentro da ampla diverdidade e multiplicidade da ação, importa destacar a ação escondida, protagonizada pelos pobres, no anonimato do dia-a-dia, na invisibilidade das correntezas subterrâneas. Tendo em conta tal diversidade de ação, convém evitar reduzi-la a um modelo único, já que a ação se insere em situações particulares, mas não isoladas, mas articuladas e solidárias. Referindo-se à diversidade de perfil entre católicos (que trabalham mais ligados a uma referência mais ampla) e reformados (que tendem a afirmar mais fortemente sua singularidade, dos a diversidade de denominações, enquanto não se consegue uma verdadeira integração, é preferível trabalhar-se a diversidade, por ser mais autêntica. A recomendação é que, entre uns e outros, se aposte na complementaridade, ainda que de difícil articulação. (cf. p. 387)

- A conjuntura dessa época (1980) indica a necessidade de se priorizar volta à política, como forma de ação, vencendo-se assim a tendência positivista de se acreditar que o culto à razão e à ciência fosse suficiente para fazer chegar um mundo de paz e de justiça. A volta à política enfrenta, porém, o desafio de se enfrentar a tendência à militarização então reinante, em que tudo se avalia sob o olhar da tática ou da estratégia, em que tudo é olhado como instrumento dessa lógica.  (cf. p. 388)

- Os desafios presentes (a tendência à militarização da vida civil, tendência a transformar tudo em alvo de tática e estratégia...) precisam ser enfrentados pela volta à política. Volta ou, no caso onde nem isso tem lugar, invenção da política como meio de organizar os pobres, de fazê-los recuperar a voz, e dizer a sua palavra. É a forma atual da ação, nesse tempo, que tempo do Espírito Santo, de sua ação no mundo. (p. 389)




[1] Cf. do mesmo autor: O Tempo da Ação (Petrópolis: Vozes, 1982); A Força da Palavra (Petrópolis: Vozes, 1986); O Espírito Santo e a Libertação (Petrópolis: Vozes, 1986; Vocação para a Liberdade (São Paulo: Paulus, 1998); O Povo de Deus (São Paulo: Paulus, 2002); Vida em Busca da Liberdade (São Paulo: Paulus, 2007);


João Pessoa, 6 de Outubro de 2010

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