A TEOLOGIA DA ENXADA COMO AÇÃO DO ESPÍTO NO POVO DE DEUS PELOS CAMINHOS
DA HISTÓRIA: considerações a partir do livro de José Comblin. O Tempo da Ação. Ensaio sobre o
Espírito e a história. Petrópolis: Vozes, 1982.
Alder Júlio Ferreira
Calado
A
Teologia da Enxada completa seus quarenta anos. De 9 a 12 de outubro de 2009,
uma parte considerável de seus protagonistas – os de ontem e os de hoje –
estiveram a confraternizar-se, em Serra Redonda – PB, num encontro marcante de
celebração, de rememoração, de avaliação e de um esforço prospectivo. Seus
protagonistas compõem uma família diversificada = a Associação de Missionários
e Missionárias do Campo, o Centro de Formação Missionária/Fundação Dom José
Maria Pires, a Fraternidade do Discípulo Amado, a Associação da Árvore, as Missionárias do Meio Popular, Associação dos
Missionários e Missionárias do Nordeste, a Associação das Escolas Missionárias,
mantendo uma relação orgânica com outros grupos e expressões da Igreja dos
Pobres, como as CEBs, as PCIs, o CEBI, o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do
Nordeste, as Pastorais Sociais, num amplo espectro no qual reconhecemos traços
vigorosos do rosto da “Igreja na Base”.
Em
se tratando de uma expressão mais nordestina da Teologia da Libertação e
experiência formativa de enraizamento cristão no meio dos pobres, a Teologia da
Enxada tem muito a comemorar, ao tempo em que trata de exercitar um olhar
avaliativo, e prospectivo, em busca de responder aos novos desafios da
conjuntura social e eclesial, na perspectiva do Seguimento de Jesus.
Momento
propício para refletir distintos aspectos dessa caminhada. Nas linhas que
seguem, ensaiamos focar um desses tantos pontos: o referencial teológico que melhor
fundamenta e inspira a experiência da Teologia da Enxada. Em três momentos
tratamos de organizar as presentes notas: 1) um sucinto quadro mnemônico dos
fundamentos da Teologia da Enxada; 2) a redescoberta da missão do Espírito
Santo no mundo; e 3) novos desafios na caminhada da Teologia da Enxada.
1. Rememorando alguns traços históricos da Teologia da Enxada
A
despeito da clara prevalência, no Concílio Vaticano II, de um perfil entre
moderado e conservador do episcopado participante, foi amplamente reconhecida a
atuação de um grupo de bispos – entre os quais Dom Helder Câmara é considerada
como uma de suas referências – que desempenhou um papel significativo, no
empenho da ação profética da Igreja no mundo. Esse grupo, que reuniu algumas
dezenas de bispos de diferentes continentes, ficou conhecido como o do “Pacto
das Catacumbas”. Mas, foi, sobretudo, no contexto da Conferência de Medellín,
na mesma esteira da caminhada das CEBs, da Teologia da Libertação, foi sendo
tecida, pela ação do Espírito, a Teologia da Enxada, no final dos anos 60, a
partir de dois núcleos iniciantes – um em Salgado de São Félix – PB – e outro
em Tacaimbó – PE.
Já
de início, os protagonistas dos primeiros núcleos da Teologia da Enxada, em boa
parte compostos de jovens seminaristas, descontentes com o tipo de formação
recebida, compartilhavam o sentimento da necessidade de buscar uma formação
alternativa, à altura dos desafios dos novos tempos. Em grande parte, de origem
rural, sentiam o fosso entre uma formação com demasiado acento na apreensão
intelectual de temas e problemas que tinham pouco a ver com os desafios do
cotidiano do povo, especialmente os pobres das periferias urbanas e do mundo
rural.
Sob
o impulso daquele abençoado contexto inspirado pelas prioridades de Medellín, a
opção pelos pobres sendo a primeira, ousaram ensaiar, com a orientação e acompanhamento
de formadores como o Pe. José Comblin, um caminho formativo diferente, a
começar pela opção de fazê-la junto com os pobres, e vivendo como pobres.
Aspectos
do tipo de formação dessa ousada experiência acham-se registrados no livro
organizado pelo Pe. José Comblin, intitulado Teologia da Enxada. Uma
experiência da Igreja no Nordeste. publicado pela Vozes, em 1977. Dizem
respeito aos propósitos formativos da experiência, inicialmente voltada à formação de jovens do meio rural,
vocacionados ao presbitério. Experiência que se realizaria, em inícios dos anos
80, no Seminário Rural, inicialmente instalado numa pequena área chamada
Avarzeado, no município de Pilões – PB, em 1981, pouco tempo depois (1982/3)
transferido para Serra Redonda, com o firme apoio de Dom José Maria Pires,
então arcebispo da Paraíba.
Após
passarem por vários dias de reflexão, no exercício do discernimento,
acompanhados por uma Equipe de Formadores, e por uma criteriosa avaliação, em que
se buscava ajudá-los num primeiro discernimento entre o caráter daquela
proposta e o que sentiam aqueles jovens, em processo de admissão ao Seminário
Rural, foi assim que por lá passariam dezenas de jovens do meio rural de vários
Estados do Nordeste e até de fora do Nordeste. Aí passavam dois anos, numa
experiência formativa que incluía, além dos estudos teológicos e da realidade
social, o cultivo da lavoura e a criação de pequenos animais, como meio de
contribuir para sua própria sustentação, bem como as atividades litúrgicas e
atividades pastorais, junto às comunidades vizinhas. Nos dois anos seguintes,
sempre contando com a participação de uma equipe de formadores, passavam em
comunidades rurais, a estudarem, a trabalharem e a acompanharem as atividades
das respectivas comunidades, numa atitude de aprendizado, vendo, ouvindo,
sentindo e registrando diferentes aspectos de suas experiências. A formação se
completava nos dois anos seguintes, quando assumiam o compromisso de irem
ajudar a fundar novas comunidades, noutras regiões, sempre acompanhados pela
Equipe de Formação.
Essa
fecunda experiência de formação de jovens do meio rural vocacionados ao
presbiterado, que tinha contado com a aprovação do Papa Paulo VI, foi
negativamente avaliada no pontificado do Papa João Paulo II, e desaprovada como
insuficiente em sua proposta curricular... A partir daí, a experiência é
mantida, mas na perspectiva de formação missionária para jovens do meio rural.
E assim evoluiu, com a participação de várias dezenas de jovens.
Experiência
que se mostrava aberta e sensível aos sinais dos tempos, o que implicou a
necessidade de se adaptar aos vários perfis e carismas de seus formandos.
Nascem, assim, várias ramificações da mesma experiência: inicialmente, com a
iniciativa de criar associações com caráter autônomo, tal como a Associação de
Missionários e Missionárias do Campo, a Associação da Árvore. Uns, sentindo-se
mais vocacionados a uma vida contemplativa (Fraternidade do Discípulo Amado, passam
a viver uma experiência monástica de novo tipo, bem sintonizados com as
necessidades, as aspirações, as lutas, as dores, as alegrias e as esperanças do
povo dos pobres, passando a viver no Sítio Catita, em Colônia Leopoldina – AL;
Outros
continuaram vivendo no Centro de Formação Missionária, constituindo a
Fraternidade São Marcos, dedicando-se à formação de jovens do meio popular
rural e urbanos, em cursos oferecidos em vários formatos, conforme o perfil dos
jovens formandos, vindos de experiência de animação de grupos de jovens, das
pastorais sociais, de atuação sindical, de militância em movimentos sociais,
ONGs, partidos políticos populares, ora em formato de finais de semana, ora em
quinzenas semestrais, para os quais eram e continuam sendo oferecidos cursos
versando sobre temáticas várias: formação de educadores populares, cuidados do
meio ambiente, cultura de paz, comunidades quilombolas, entre outros.
Outros
sentiam-se chamados a uma vida itinerante, a peregrinarem pelo Nordeste, em
consonância, aliás, com o Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste. Convém,
ainda, lembrar mais uma experiência dessa mesma “família”: a fundação da
experiência formativa específica às jovens do meio rural. Eis que, em 1986/7.
Mogeiro passou a ser a sede da formação dessas moças do meio rural, as Missionárias
do Meio Popular. Outra experência fecunda, também na área da formação, foi a
fundação das Escolas Missionárias, no final dos anos 90, espalhadas por vários
Estados: Bahia, Piauí, Paraíba, Tocantins, Pernambuco.
Convém,
ainda, ter presente que várias outras experiências daí nasceram ou guardam
consideráveis vínculos de afinidade, a exemplo da fecunda experiência de
formação protagonizada pelo DEPA – Departamento de Pastoral e Assessoria,
animada por uma Equipe de Formadores, da qual faziam parte: Pe. Humberto
Plummen, o atual bispo anglicano Dom Sebastião Armando Soares, Pe. René Guerre,
os Professores Eduardo Hoornaert, Ivone Gebara, Luiz Carlos Araújo, Marcelo Agusto
Veloso, entre outros.
A
partir desse sucinto relato de elementos relativos à Teologia da Enxada,
tratamos de focar o que entendemos como os fundamentos axiais da proposta
formativa dessa experiência. Fundamentos que brotam de um entendimento novo da
missão do Espírito Santo no mundo. Tema em relação ao qual a obra do Pe. José
Comblin, especialmente a de caráter pneumatolótico, vem dando, pelo menos desde
1978, uma profunda contribuição. Nossa questão, agora, é: em que vem se
inspirando a fecunda experiência da Teologia da Enxada? Que importância ela
atribui à ação do Espírito Santo na História do Povo de Deus, ontem como hoje?
2. A ação do Espírito Santo sobre o Povo de Deus pelos caminhos da
História
Do
vasto leque de temas trabalhados por José Comblin, em seu frutuoso percurso
existencial e densa produção teológica, a ação do Espírito Santo no mundo, na
história e na construção do Povo de Deus destaca-se sobremaneira. Mais do que
uma simples inquietação circunstancial, esse tema nele se tem constituído um
alentado projeto de incessantes buscas. Desse projeto, iniciado sobretudo a
partir de seu livro O Espírito no Mundo (Petrópolis: Vozes,
1978), e ao qual dá seqüência com a publicação de uma meia dúzia de livros[1],
este do qual ora nos ocupamos constitui um de reconhecida relevância e repercussão,
dentro e fora da Igreja Católica latino-americana.
Já
tivemos ocasião de nos deter em outros textos de Comblin, a exemplo de O Espírito no Mundo e de O Povo de Deus. Agora, houvemos por
bem, e em conseqüência dos estudos sobre a obra de Comblin, que vêm sendo
objeto de trabalho de um pequeno Grupo, debruçar-nos sobre o presente, nos
termos anunciados no título dessas notas.
Iniciamos
pela forma como vem estruturado o livro, aqui apresentando um quadro panorâmico da obra, para, em seguida, propor
um passeio mais detido pelos capítulos da mesma. Não por acaso, o mais volumoso
dos estudos pneumatológicos publicados por José Comblin. Em quase quatrocentas
páginas, cuja introdução toma dez por cento, ele distribui em nove densos capítulos
sua fecunda incursão, iniciando pela explicitação e precisão dos conceitos com
que trabalha, ao longo do texto, inquietação a que dedica os dois primeiros
capítulos, destacando os sentidos da ação na história e na construção do povo
de Deus.
O
terceiro capítulo é dedicado a uma apreciação crítica das relações entre o
Cristianismo e o Helenismo. A marcante penetração deste nas manifestações do
Cristianismo e suas profundas implicações, de modo a destacar suas
negatividades. O desafio a Cristandade é alvo de análise do quarto capítulo,
onde historiciza as relações características vivenciadas pelos cristãos nesse
período, destacando as terríveis implicações, sem deixar de reconhecer aspectos
positivos.
“A
Reforma em questão” é como intitula o quinto capítulo, em que cuida de situar
historicamente a proposta da Reforma, em suas positividades e em suas
inconsistências.O sexto capítulo trata do “choque da modernidade”. Nele, o
autor aborda criticamente o impacto da “civilização do trabalho” e a posição da
Igreja Católica e do Cristianismo, seja quanto a uma rígida oposição, seja
quanto a uma aproximação. O estudo se estende até o pós-Vaticano II.
O
sétimo capítulo ocupa-se de analisar “a era das revoluções”, destacando seu
contexto histórico, suas relações com o Cristianismo. Aborda, também, o sentido
da ação revolucionária, bem como os aspectos positivos e negativos dos
processos revolucionários. Por fim, o autor situa um impactante quadro de
desafios conjunturais (oitavo capítulo), em relação a que importa exercitar o
discernimento (nono capítulo), para se captar o sentido da ação inspirada pelo
Espírito.
Tendo
fornecido um leve quadro sinótico do livro, buscamos, em seguida, resumir e
destacar aspectos pontuais de cada capítulo, começando pela própria
Apresentação e introdução do livro
Já
na apresentação do livro, cuida o autor de explicitar o caráter de sua
produção. Reconhecendo a vastidão do alvo de suas inquietações externadas no
presente livro, prefere propô-lo em termos em que expressa profunda modéstia:
propõe seu livro em termos de um ensaio, de uma hipótese, de uma sugestão, não
obstante tratar-se de um texto com 389 paginas, fruto de uma pesquisa de longo
fôlego, amparando-se em fontes e autores de reconhecida contribuição. Trata,
igualmente, de assinalar o lugar social e o contexto sócio-histórico a partir
dos quais propõe sua reflexão. Esta brota de um lugar e de um contexto bem
concretos: o caminhar da Igreja Católica na América Latina da primeira metade
dos anos de 1980. Daí é que despontam as interrogações partilhadas no livro.
Começa
a introdução com uma afirmação lapidar e emblemática: “Deus é ação. Nosso Deus
é um que age: que liberta, constrói, transforma.” E, com propósito de
contextualização sócio-histórica, parte, em seguida, para uma constatação
tocante, inclusive pela sua refinada sensibilidade ecológica, já então (vale
lembrar o livro foi publicado em 1982)> recorda que em cem anos, a população
do mundo passa de um para seis bilhões, o que implicou a emergência dos seres
humanos, da sociedade humana, como o maior desafio a ser enfrentado pela ação,
pelas profundas implicações que tem representado essa enorme expansão da
presença humana no Planeta (cf. p. 13).
Por
conta de tal desafio sócio-histórico, a Igreja é instada a passar de uma ação
voltada para si mesma, para abrir-se, solidária, aos desafios do mundo, da
história, de toda a sociedade, de promover o bem de todos os homens, cristãos e
não-cristãos. É instada a contribuir efetivamente com o processo de libertação
do homem todo e de todos os seres humanos (cf., por ex., a encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI,
de 1967).
Na
esteira do anúncio da ação libertadora de Deus no mundo e na história, o livro
indica os fundamentos e inspirações mais fortes dessa abordagem da ação do
Espírito. Um desses elementos é a Teologia da Libertação, na medida em que
nasce e se afirma, pela força do Espírito, como uma proposta de reflexão e ação
dos cristãos na América Latina, no fecundo contexto sócio-históricos de
Medellín (1968) e de Puebla (1979). Uma proposta de reflexão teológica, então ainda
apenas anunciada, em suas bases e traços gerais mais fortes: o espírito
profético de denúncia das profundas desigualdades sociais, o compromisso com a
causa libertadora dos pobres e oprimidos, tomando estes como sujeitos de seu
processo libertador, o exercício de uma consciência mais forte da Igreja Povo
de Deus, abertura ao exercício de um ecumenismo de base, entre outras
características que, em seguida, seriam tomadas como alvo de uma alentadora
proposta de produção teológica, como a expressa pelo Projeto “Teologia e
Libertação”, do qual resultaram importantes contribuições, em diferentes
domínios, desse novo modo de fazer Teologia (a Teologia da Libertação), da qual
o autor é uma das principais referências.
No
seio da Teologia da Libertação, vai se produzindo uma fecunda gestação de formulações
inovadoras, a exemplo da Cristologia. No caso do presente livro, o propósito
explícito do autor é de contribuir num domínio específico e organicamete
articulado a outros: o campo pneumetológico, o da ação do Espírito Santo no
mundo. Neste caso, tratava-se de continuar a contribuir, pois desde a década
precedente, já iniciara sua contribuição (O
Espírito no Mundo é de 1978). Espírito e libertação – eis o terreno mais
impactante de sua contribuição, desde então.
Tal
é o alcance da contribuição do autor, enquanto um dos formuladores da própria
Teologia da Libertação, que, mesmo reconhecendo que a TdL achava-se então ainda
como um anúncio, precisando de consolidar-se em diferentes esferas, propõe-se
contribuir na esfera da ação do Espírito Santo no mundo, tendo o Espírito como
uma das mãos com as quais Deus age no mundo, na história e entre os homens (a
outra é Jesus). Já àquela altura, sentia-se à vontade para tecer um comentário
crítico na tendência de então de se fazer Cristologia, a partir de uma perspectiva
eclesiológica ocidental. Sua avaliação, a esse respeito, revela-se bastante
crítica: “Até o momento pode-se dizer que as teologias da libertação têm
seguido os caminhos traçados pela teologia ocidental. É notório que ignoram as
teologias do Oriente. Buscam uma cristologia, mas o mais das vezes se
fundamentam, antes de tudo, numa eclesiologia. O fato se torna mais grave,
visto que querem ser teologias da práxis, e se abordamos o cristianismo pelo
ângulo da práxis, aquele que de imediato encontramos é o Espírito.” (p. 22).
A
teologia ocidental parece não haver encontrado em suas sínteses o lugar certo
da Terceira Pessoa da Trindade. Até que se invoca sua presença, lembra o autor,
mas quando se trata de pedir-Lhe que confirme as decisões já tomadas, sem um
esforço concreto de escutar o quê o Espírito tem a nos dizer. Uma forma
inconsciente de se tentar privatizar o entendimento da missão do Espírito
Santo?
Essa
incompreensão ou entendimento insuficiente da missão específica do Espírito
Santo na História tem implicado equívocos diversos. Um deles: a tendência a um
certo cristomonismo, à medida que se acha completamente acabada mensagem
cristã, após a ascensão de Jesus e a partida dos apóstolos. Tudo que se tinha a
dizer, já teria sido dito. Agora, nossa missão é só repetir. É aí que se
escanteia a missão específica do Espírito Santo, o enviado do Ressuscitado, que
continua agindo sobre o Povo de Deus, inspirando-o em suas buscas, em suas
lutas de transformação, na perspectiva do Reino de Deus.
Devem-se
a tal incompreensão da especificidade da missão do Espírito Santo sucessivos
equívocos: o de julgar-se a Igreja como a continuadora do próprio Cristo, portadora
dos seus poderes divinos, em vez de pensar-se estabelecida sob Seu poder. Mais:
com tal compreensão, a Igreja julga ser função sua apenas conservar, repetir e
difundir as verdades reveladas como sendo toda a Revelação; o equívoco de, ao
definir-se como divina e humana, atribuir uma divisão rígida entre essas duas
dimensões, de tal modo que, em virtude de seu lado divino, retém para si automaticamente
qualidades que somente a Deus deviam ser aplicadas, e, em relação à sua
dimensão humana, só retém as fragilidades, os pecados, as fraquezas, sem
admitir também as potencialidades, as virtudes como também fazendo parte da
dimensão humana, graças à atuação do Espírito na humanidade, na história; o
equívoco de trabalhar apenas a unidade/uniformidade, fazendo uma leitura
negativa da diversidade/multiplicidade, enquanto, em verdade, uma melhor
compreensão da missão do Espírito Santo, a ajudaria a ver positividades e e
negatividades tanto na unidade quanto na diversidade. Diferentemente do
entendimento hegemônico na teologia ocidental, de que a unidade é divina,
enquanto a diversidade é coisa humana, Comblin pondera que “a unidade como a
multiplicidade, a uniformidade como a diversidade, são divinas e humanas, ao
mesmo tempo. O Cristo é princípio de unidade, mas o Espírito é princípio de
multiplicidade. Se existem formas de diversidade que constituem fraquezas devidas
à fragilidade humana, existem também formas de unidade que são devidas à mesma
fraqueza humana.” (p. 26). E conclui: “A volta ao Espírito restaura a plenitude
das dimensões divinas e humanas da salvação.” (ib.).
A
partir dessa compreensão, o autor prossegue sua instigante reflexão, sempre bem
fundamentado biblicamente. Assim, cuida de bem articular e distinguir as
atribuições de Cristo e do Espírito Santo. Entre as Pessoas da Trindade, há uma
unidade tocante, como há uma diversidade de funções. É o que acontece também em
relação a Jesus e ao Espírito: suas atribuições comportam uma notável unidade
bem como uma diversidade notável, sendo que esta é muito pouco observada na
teologia ocidental. Donde o cuidado do autor, de acentuar tal distinção, sem prejuízo
da unidade entre as Pessoas Trindade. “Para nos levar ao Cristo não outro
caminho senão o Espírito.” (p. 30). E o Espírito dispõe para cada um, para cada
uma, uma multiplicidade de caminhos cuja unidade é assegurada pelo próprio
Espírito.
Nessa
mesma linha, Comblin aborda a missão do Espírito, nas diferentes situações
humanas, inclusive quanto ao esforço de conhecer que comporta armadilhas, à
medida que pretendemos conhecer a Deus, a partir de nossos esquemas próprios,
de nossos métodos, o que implica apenas ter-se uma idéia de Deus. Só pelo
Espírito chegamos ao verdadeiro conhecimento de Deus, pondo em prática seus
ensinamentos, e não apenas limitanndo-nos a conhecimento intelectual. O mesmo
se dá em relação à Igreja, à conversão – como expressão da ação do Espírito no
meio do Seu Povo.
Elementos do estado dos estudos atuais sobre o Espírito Santo na
História
O
primeiro capítulo, assim como o segundo, constituem um espaço destinado a
explicitar o sentido que a obra confere aos três conceitos-chave que a
permeiam: “Ação”, “História” e “Espírito”. O autor começa pelo sentido dado à
“Ação”, focando principalmente a dimensão pública, antes que a ação no
cotidiano, seguindo o critério bíblico e da tradição oral da mensagem cristã.
Enquanto a maior parte da obra cuida de focar, de modo contextualizado, como se
deu a ação do Espírito através da História, o primeiro explicita as relações
entre ação, história e Espírito Santo, ao tempo em que, o segundo capítulo
cuidará de situar o estado atual dos estudos bíblicos contemporâneos sobre o
Espírito e sua ação na História. (cf. (cf. pp. 45-46).
Com
relação especificamente ao primeiro capítulo (pp. 45-75), o autor o distribui
em duas partes: trata inicialmente da relação entre a ação e o Espírito (pp.
46-66); em seguida, enfoca a relação entre História e Espírito (pp.66-75). Os
destaques da primeira parte incidem sobre o lugar de Jesus como Ação do Pai; o
Espírito como continuação do Ressuscitado como Ação no mundo; o conteúdo e o
valor dessa ação e a relação entre Messias e ação, enquanto na segunda parte
deste capítulo (História e Espírito), reflete sobre o sentido de duas opções
frente a esse movimento do Espírito na História: a de acomodar-nos à situação
histórica ou a do compromisso com a transformação.
Na
leitura da Teologia contemporânea, Deus age no mundo por meio do seu Povo,
razão por que a nossa ação tem origem divina, sendo a Bíblia um ponto de
refência relevante, desde que seja interpretado à luz do Novo Testamento.
Retomando
as grandes linhas do primeiro capítulo, primeiro destaque do capítulo incide sobre a
missão de Jesus, o enviado do Pai para agir no mundo, ungido pelo Pai, desde
sua concepção e desde seu batismo, para ser ação no mundo, na História. O livro
enfatiza a ação de Jesus, em sua diversidade. Jesus aparece nos relatos
bíblicos como Ação: anuncia, denuncia, cura, proclama, faz o bem por onde
passa. Jesus é a Ação do Pai, pela força do Espírito. E, como Ação, tem como
alvo maior, que atua como unidade de sua ação, a formação do Povo de Deus,
pelos caminhos da História.
À
medida que esse Povo vai compreendendo sua vocação, passa a entrar para o
Seguimento de Jesus, não tanto para imitá-lo, para copiá-lo, mas para
reinventar sua ação, nos desafios do presente, eis por que, afirma o autor: “Toda
verdadeira ação humana, toda história humana, todas as nossas ações encontram
sua imagem perfeita, sua inspiração, nessa ação de Jesus. Toda a história, no
sentido mais humano e profundo, apenas revive ou sai em busca da ação de Cristo
para revivê-la. Mas para revivê-la será preciso reinventá-la. Nada há para ser
copiado. Tudo foi dito, mas nada ainda foi dito. Tudo foi mostrado, mas tudo
está por descobrir. Pela missão do Espírito, a humanidade reinventa a ação de
Cristo, a seu modo, múltiplo e diverso, em todos os cantos do espaço e do
tempo, e isso forma uma grande ação, uma única história.” (pp. 50-51).
Eis
por que Deus é ação, e das três Pessoas da Trindade é a Terceira que melhor a
quem incumbe revelar esse atributo divino. Insiste o autor em reconhecer a
dificuldade de se ter claro tal atributo de Deus, a partir dos profundos
limites do vocábulo “Espírito”, em relação ao qual se passa uma idéia de algo
contraposto a matéria, a corpo, na esteira do dualismo das filosofias gregas.
Vocábulo a tal ponto limitado, de modo que o autor se sente obrigado a estar
sempre lembrando que “Espírito ´quer dizer força ou ação. Dizer que Deus é
Espírito é dizer que Deus é ação, energia, movimento.” (p. 51).
E
o Espírito age em nós, Seu Povo, pelos caminhos da História. A ação do Espírito
não se deixa controlar por instituições. Nem por aquelas que, a exemplo das
igrejas, pretendem ter o monopólio do Espírito. O Espírito age no Povo de Deus,
e, em especial, se manifesta nos pobres, nos fracos. É aí que Sua força age de
modo todo especial. Agir implica uma vasta multiplicidade de operações,
protagonizadas pelas pessoas. São inumeráveis as ações. Mas, é agindo na
direção da libertação que o ser humano vai se libertando. Cada ação conta para
uma conquista mais ampla. Enquanto luta, o ser humano vai se pondo no processo
de libertação.
Nem
toda ação provém do Espírito Santo. Somente aquelas que promovem e conduzem á
liberdade, à libertação de todas as formas de escravidão. Somente aquela ação
portadora de sementes de efetiva mudança. Mudança do mundo, mudança do ser
humano. E mudança para melhor. Em breve, é toda ação que implique um processo
de conversão pessoal e social. De cada uma, de cada um e do conjunto do Povo de
Deus.
Processo
que requer incessante exercício de discernimento, condição a que o autor dedica
parte do último capítulo deste livro, mas já adianta alguns de seus elementos.
Discernimento tem a ver com o exercício de nossa capacidade perceptiva, de
nossa atenção aos sinais dos tempos, ao que o Espírito tem a nos dizer e nos
estimular a fazer. Implica também uma avaliação crítica das relações das forças
em embate: as que lutam por mudanças efetivas e as que representam obstáculos a
essas mudanças. Implica um ato criador, pelo qual são buscadas pistas concretas
de ação transformadora. No limite, uma tal busca pode implicar o martírio, o
ato cristão definido pelo autor como o mais completo, cuja referência maior é o
próprio Jesus. (cf. pp. 57-58). Mais adiante, assim se exprime o autor, a
propósito do valor da ação: “Cada uma das ações, desde o martírio até os mais
humildes serviços quotidianos, é uma antecipação da libertação final e se
projeta nessa tela de fundo.” (p. 61).
No
movimento de libertação dos pobres, sobretudo – mas não apenas – no universo
judeu-cristão, as ações dos oprimidos têm comportado uma considerável motivação
de caráter messiânico, à medida que, ao se darem conta dos mecanismos de sua
opressão, põem-se a resistir contra a ordem imperante, e a ousar ensaiar
caminhos alternativos. Não apenas as experiência messiânicas de natureza
religiosa, como também as de cunho laico. A proposta de Jesus ia além de uma
empreitada estritamente messiânica, ainda que não tenha sido entendida por seus
discípulos. Acenava para um protagonismo maior dos próprios oprimidos, em vez
de apostarem demais na força transformadora da ação exclusiva do Messias.
De
todos os modos, é em função da transformação da História que age o Espírito
Santo no meio do Seu povo.
A Bíblia e a História
- “o advento do Cristo entra
realmente no mundo pela missão do Espírito. Afinal, a história de que fala a
Bíblia é a da reconquista do mundo pelo Espírito de Deus.” (p.77, 3º par.)
- No relato bíblico, a ação do
Espírito é a ação presente e libertadora dos homens. (p. 78, início)
- “O futuro só pode ser
verdadeiramente preparado por um presente plenamente vivido.” (...) “A história
bíblica conta o presente em todas as suas dimensões. Conta o passado para
ajudar a compreender o presente e situá-lo.” (p. 78, 3º par.)
- “Uma ação é toda a expressão em
que um homem se entrega e retoma toda a vida, doada em um instante, para
vivê-la intensamente.”p. 78, últ. par.)
- 1. A BÍBLIA E A HISTÓRIA
O problema do sentido
- A tradição eclesiástica de tendência
helenística, com enorme acento sobre a dimensão intelectual confronta-se com a
realidade do Terceiro Mundo, daí resultando um outro sentido de História. (cf.
p. 79)
- Como herança da teologia
tradicional, a leitura que se faz da Bíblia é confinada ao indivíduo separado
de suas condições geográf., históricas e sociais. (cf. p. 80)
- A recente redescoberta do
sentido da ação, por meio da leitura bíblica, após a II Guerra Mundial, tem
propiciado a libertação da teologia. Redescoberta que tem implicado a superação
de uma leitura individualista da ação do Espírito, em favor de uma compreensão
transformadora do mundo e da História (cf. p. 80, 3º par.)
- Durante séculos, predominou uma
leitura ingêncua da Bíblia, uma leitura literal. Com a modernidade, e sobretudo
a partir do século XIX, passou-se da leitura literal a um outro modo de
interpretação que recorria às ciências humanas, o método histórico-crítico.
Mas, aí também, se pratica um equívoco: o de confiar ao historiador a tarefa de
interpretar “a” verdade, esquecendo-se de que também o historiador reconstitui
a história a partir do presente e do seu contexto: “Não existe uma história que
não seja do presente.” (p. 81)
- “Todas as nossas abordagens do
sentido do autor são condicionadas por nossa teologia anterior, e esta, pela situação
histórica.” (p. 82, 2º par.)
- “existe apenas um sentido da
Bíblia, que é aquele que o Espírito lhe quis dar. Esse sentido só pode ser
percebido pouco a pouco e de maneira sempre inacabada pela convergência,
harmonia e condicionamento recíproco de todas as abordagens.” (p. 82, 5º par.)
- “Afinal, de que fala a Bíblia?
De um povo que alcança a libertação tornando-se povo.”(p. 84, 2º par)
- “A Bíblia é o único livro de um
povo sempre vencido, o único livro de pobres sempre em protesto contra os
poderosos.” (“a Bíblia não é somente um livro de um povo oprimido, mas também o
livro das promessas”)(p. 86, 2º e 3º par.)
- “Para a Bíblia o futuro não é a
continuidade do passado, mas, sim, a realização das promessas.” (...) “e, portanto,
da esperança.” (p. 88),
- “Estatisticamente, os pobres
devem sempre ser vencidos. Mas há o fator humano. Há a novidade: há a força da
esperança que faz com que os melhores cálculos dos fortes se revelem errôneos”
(p. 89).
- “A ação verdadeiramente histórica
não é aquela que resulta da implantação de um sistema de poder, mas aquela que
ousa desafiar todos os sistemas de poder para ultrapassá-los.” (p. 89, 3º par.)
- Na segunda parte do 2º cap.
(“Jesus e a História”, p. 89), o autor começa assinalando que tanto a
cristologia tradicional quanto a moderna ignoram, por razões diferentes, o
sentido da ação de Jesus e o seu alcance histórico. (cf. p. 89).
- A cristologia tradicional –
inclusive a medieval – compreende o lugar de Jesus de modo pontual, como o
marco em torno do qual giram o antes e o depois, sem qualquer preocupação de
contextualização histórica. O que implicou uma compreensão problemática da
morte de Jesus, com algo decidido sem tomar em conta o contexto histórico
concreto. .
- Da p. 89 a 95, o autor faz uma
incursão crítica pelas principais correntes de cristologia: a abordagem
tradicional (influenciada pela história sagrada e pela abordagem de Hist. da
Igreja do tipo de Eusébio de Cesaréia), a medieval (centrada na teologia da
morte de Jesus, desconectada do contexto hsitórico) e a abordagem moderna, que
recorre com euforia às ciências históricas (método hist.-crítico), que confere
ao historiador o arbítrio de interpretar o sentido da pessoa de Jesus. O autor
opta pelo caminho da ação cristã, tal como protagonizada pelo Povo de Deus, na
atualidade, posto que nele age o Espírito, o único que revela Jesus.
- No caso da cristologia moderna,
tudo vai se subordinar ao método histórico-crítico, ou seja à interpretação
científica, que também não dá conta do sentido da ação de Jesus e do seu
alcance histórico. É obra do Espírito Santo. (cf. pp. 91-93)
- Para se fazer justiça à
humanidade de Jesus (também verdadeiro Homem), é preciso compreender sua morte
no contexto de sua existência histórica: “a morte de Jesus faz parte de sua
vida e tem um sentido na história.” (p. 93)
- A vida de Jesus apresenta uma
unidade: Ele vive em função do Seu Povo; sua missão é refazer Seu Povo. Não há
personagem bíblica que tenha radicalizado tanto tal função. (cf. p. 96ss)
- É sobretudo como Messias que a
ação de Jesus se completa: é o Messias esperado (o Salvador); é o Messias de
hoje: o que age pelo Seu Espírito na História, já; Jesus também já era
reocnhecido como Messias em sua vida terrestre (p. 97)
- A cruz enfrentada por Jesus
projeta-se na história. Dá o exemplo do assassinato de Dom Oscar Romero (20 de
março de 1980), no momento em que Comblin redigia este capítulo (cf. p. 99,
último parágrafo).
- No item 3 (O Cristianismo e a
História), lê-se que a ação de Jesus projeta-se na história. Ele não disse toda
a sua ação, no período de sua existência terrestre. Deixou aos discípulos e
discípulas de todos os tempos o encargo de testemunhá-lo (p. 100).
- O enfoque paulino rememora a
ação libertadora de Jesus: a libertação do Povo, não apenas individual como
pretendem vários teólogos. Com base em Rm e Gl, enfatiza a compreensão paulina
de “carne” (poder, riqueza, sexo, prestígio, tudo o de que os homens se
gloriam). Enfatiza o tema da liberdade em Paulo: quais os frutos produzidos por
uma vida em liberdade (p. 101-105)
- “Se o dom da profecia predomina
sobre o dom das línguas, se o dom da caridade é o maior de todos, é porque se
trata de dons que levam à ação e formam a história do povo de Deus.” (p. 106)
- “A novidade joânica não é a
oposição das duas cidades, mas o que se passa antes do julgamento final” (p.
106). Ou seja: é a ação cristã na história, seja pelo martírio, seja pela
reunião do Povo de Deus. (cf. pp. 108-109)
CAPÍTULO 3: “O Espírito diante do helenismo” (pp. 112-153)
Pontos a destacar
- Cumprindo sua missão, o
Espírito Santo entra na história humana em curso, num tempo e num lugar
determinados. O tempo é de um período em que várias civilizações se
apresentavam como universais, mas caminhando paralelamente sem que umas
conhecessem as outras, pelo que negavam sua proposta pretensamente universal,
já que, de fato, eram civilizações particulares; o lugar: uma dessas
civilizações: a civilização helenística ou greco-romana. (p. 112)
- Principal desafio encontrado
pelo Espírito: tratava-se de uma inserção num lento e longo processo, que
duraria séculos, em que a oficialização por Constantino do Cristianismo como a
religião do Império foi apenas o começo, e um processo que se estenderia até
meados do século XX (pp. 112-113)
- O cap. 3 propõe-se refletir
sobre como o Espírito julgou e reagiu à cultura helenística; como o povo de
Deus nele encontra brechas para o projeto libertador; na diversidade das
reações frete ao helenismo como encontrar os sinais do Espírito; terá havido aí
espaço para a evangelização, ou, ao contrário, uma absorção pelos cristãos dos
valores helenísticos. (p. 113)
- O exame dessas e outras
questões é feito com base em alguns critérios: a leitura da Magistério da
Igreja (que não se dá de forma uniforme); a Bíblia (em que pese a dificuldade
de se apelar ao Evangelho para dirimir situações históricas particulares) e a
atitude inspirada em Gamaliel, de deixar ao tempo o encargo de saber qual foi
mesmo o resultado. (p. 113).
A partir daí, passa o autor a
distribuir em três tópicos o capítulo: 1) as relações explícitas entre
Cristianismo e a civilização helenística (pp. 114-130); 2) exercício de
discernimento sobre as positividades dessa relação (pp. 131-143) e 3)
discernimento sobre as negatividades da mesma relação. (pp. 143-153).
- O primeiro ponto destacado
nesse capítulo é quanto à relevância do tema da cultura greco-latina,
reconhecido por sucessivos escritores e correntes, inclusive contemporâneos, tais
como Maritain e Mounier. (p. 114).
- A proposta helenística não
esgota a ação do Espírito no mundo, é apenas parte de sua atuação, até porque a
proposta de Jesus não corresponde plenamente a nunhuma corrente ou modelo
cultural, além do que o Espírito também se faz presente em outras culturas (cf.
p. 115).
-
- Tal é a relevância da
incidência da civilização helenística na história do Cristianismo, que por
vezes fica difícil separar este daquela. Marca atestada por vários elementos: a
estrutura da organização eclesiástica, sua teologia, a formação do clero, seu
modo de pensar, etc., não importando o fato de que a civilização greco-romana
se apresenta fundamentalmente como uma civilização feita por e para as elites. (p.
116).
- Nun contexto em que a sociedade
industrial desponta como atração de interlocução com o Cristianismo, importa
compreender o significado de uma nova proposta que começa a surgir, a partir do
Terceiro Mundo. (p. 117)
- Daqui para frente, em que pese
a infuência da cultura grega, esta não será mais a interlocutora privilegiada
para os cristãos, devendo-se lembrar, a esse propóstio, que nos primeiros
séculos houve uma recusa completa de interlocução com a cultura grega,
globalmente avaliada como um pecado. Prova disso foi a recusa da teologia e da
ortodoxia, defendidas no concílio de Nicéia. (pp. 118-119)
- “A filosofia grega tornava
impensável a novidade da história da salvação; não tinha meio algum de pensar
em Deus intervindo na história para libertar o seu povo.” (p. 120)
- Embora alguma restrição seja
feita ao comportamento de completa recusa do povo dos pobres e dos monges em
relação à filosofia, o forte dessas comunidades era a simplicidade, donde a
desconfiança diante dos livros e dos intelectuais, a exemplo do que mais tarde
Francisco também testemunhou. (p. 120)
- Na Igreja do Oriente, embora
menos intensa do que no Ocidente, foi também notável a influência da
civilização greco-romana, inclusive entre as principais figuras dos Padre da
Igreja. Estes recusaram radicalmente as formulações greco-romanas, ainda que
inconscientemente se deixaram impregnar de valores da cultura combatida;
“faltou-lhes tomar consciência da medida de sua contradição, aceitando
sub-repticiamente muitos de seus elementos.” (p. 121)
- Houve por parte dos pobres e
dos monges uma radical recusa daquela cultura de elite; “Os pobres rejeitam a
cultura aristocrática.” (p. 121)
- Até à alta Idade Média, a
influência da cultura grega ainda não se deu tão fortemente. Sua influência
mais forte se dá sobretudo a partir dos sucessivos movimentos de renascença: o
dos séculos XII e XIII; o dos séculos XV e XVI e com o Humanismo clássico do
século XVII. (p. 121-122).
- Na primeira renascença,
despontaram vários movimentos de rejeição à teologia de influência greco-latina:
os cistercienses e os franciscanos radicais são exemplos. Mesmo assim, no
século XIII, vem a síntese teológica sob a influência da filosofia grega. Tomás
de Aquino trata de cristianizar
Aristóteles. (p. 122). Os humanistas também vão apresentar sua disposição de
exercitar interlocução com a cultura greco-latina: Erasmo, Thomas Morus, Melanchton...
- Tal foi a capacidade de
penetração da cultura helenística no Cristianismo, que os próprios Padres da
Igreja (Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, João Crisóstomo e
outros), em que psese certa resistência, terminaram assimilando vários traços
dessa cultura, ainda que de modo inconsciente. E, por meio deles, a própria
Igreja bizantina, sendo refratária a essa e a outras culturas, por ser justamente
conservadora e fiel aos Padres da Igreja, também não pôde escapar
(inconscientemente) à mesma influência cultural. (p. 121)
- Dado o fraco desenvolvimento da
cultura greco-latina durante a alta Idade Média, somente a partir do primeiro
movimento de renascenças(o dos séculos XII e XIII; o dos séculos XV e XVI e o
do Humanismo clássico do século XVII), resulta forte a influência helenística
(pp. 121-122);
-
- A infiltração da civiliz.
Helenística deu-se, não apenas entre os monges do séc. IV, mas também nos
bizantinos conservadores (p. 121)
- A partir do século XII, foi
intensa a reação à cultura, protagonizada por vários movimentos populares,
entre os quais os Franciscanos Radicais, influenciados por Francisco de Assis
que se opunha aos livros (bastava o Evangelho), por conta da enorme tendência a
justificar atitudes distantes do Evangelho.
- Houve uma retomada da
infiltração helenística durante os movimentos de renascença (os dos séc. XII e
XIII, os dos séc. XV e XVII e o do humanismo clássico do séc. XVII (122)
- A esse propósito foi vigorosa a
resistência dos movimentos pauperísticos, inclusive dos radicais franciscanos.
Francisco recomendava não recorrer aos livros. (122)
- O espírito da contra-reforma
gera uma espécie de cruzada anti-erasmiana, sobretudo na Espanha e na Itália,
de modo a prejudicar inclusive o desenvolv. científico (123)
Em que resultou o projeto de cristiianizar o helenismo? (pp. 124-129)
- Não por acaso, a partir da
contra-reforma, cultivou-se um modelo de padre cuja refer~encia maior era a
figura do Pe. Cura d´Ars (cuja teologia era baseada na Bíblia, na vida dos
santos e nos escritos dos místicos, e dizia não ser capaz de entender a
teologia (124)
- Tal o embevecimento de figuras
como Orígenes e Tomás de Aquino, pelo helenismo, que cometiam uma interpretação
que representava muito mais do os filósofos gregos queriam dizer (125)
- Tomás de Aquino é provavelmente
o único exemplo de síntese entre uma filosofia pagã e a mensagem cristã, em
todo o Cristianismo, o que consistia em submeter tudo à razão, desconsiderando
os desígnios de Deus (p. 126)
- É lamentável que não se tenha
seguido a atitude conciliadora de Erasmo e outros, para evitar profundas
divisões sectárias entre católicos e protestantes, forçando esses grandes humanistas
a se envolverem em polêmicas intermináveis, o que lhes tolheu a oportunidade de
elaborar uma síntese, como a de Tomás, de modo a atualizar a reflexão diante
dos novos desafios (p. 127)
- Tal a aposta de Tomás de Aquino
na filosofia aritotélica, que se lhe poderia perguntar se, assim agindo, não
correria o risco de desconsiderar tudo o que o filósofo grego ignorava (p.
126).
- “A cultura helenística é uma
cultura de elites, feita pela elites para a elites. Para falar de maneira mais
precisa, a cultura greco-romana era uma cultura feita para ociosos, para
pessoas que não precisava trabalhar.“(p. 127).
- Uma das conseqüências mais
fortes desse processo de cristianização da cultura helenística tem-se traduzido
pela estreita aliança das elites eclesiásticas com o poder, através de séculos.
Seguindo o exemplo dos filósofos gregos, transformavam-se conselheiros de todos
os príncipes (p. 128)
Penetração do helenismo no Cristianismo (pp. 129-138)
- A penetração do helenismo no
Cristianismo se deu por obra dos próprios teólogos, e não pela ação direta dos
filósofos. E deu-se em sucessivas vagas. A primeira foi por meio dos capadócios
(no Oriente) e Agostinho (no Ocidente), nos séc. IV e V. (p. 129)
- Nos séculos V e VI, tal
penetração teve continuidade, mediante a autenticação feita pelos concílios dos
conceitos elaborados pelos Padres da Igreja, de notável carga cultural
helenística. (p. 129)
- A segunda grande onda surge com
o Tomismo que assume uma forte influência na teologia, em sucessivas épocas,
desde e para além da Idade Média, sempre autenticada por diferentes concílios
(Florença, Trento...), alcançando até o Vaticano II (p. 130).
- Nesse processo de penetração,
encontram-se positividades e negatividades, analisadas pelo autor, recorrendo
ao discernimento do Espírito Santo, por meio de milhões de pessoas e centenas
de movimentos, ao longo de vinte séculos (p. 131)
- Sem desconsiderar suas
negatividades, há de se reconhecer na cultura greco-romana valores universais
positivos, a exemplo do cuidado com a razão e com a dignidade do indivíduo,
atributos relevantes no enfrentamento do irracionalismo e da submissão a forças
cegas naturais e sobrenaturais (p. 132)
- A penetração do helenismo no
Cristianismo se deu a partir de Constantino, pelo recurso à religião da razão,
que favoreceu as classes dirigentes, por meio do cultivo do monoteísmo político
(um só senhor....) (p. 133)
- A religião racional está
convencida de que a paz social só pode ser assegurada pela religião. A religião
é o cimento de todo Estado civilizado. (p. 134)
- Pelo fato de o Evangelho ser
lido pela ótica da religião racional (fazendo duas leituras; uma racional e
outra cristã, p. 135), fez-se profunda a penetração do helenismo no
Cristianismo, inclusive impregnando as bases populares, urbanas e rurais, até
os dias de hoje, quando dá sinais de ruína por conta da mudança de época que se
começa a viver. (pp. 134-135)
-
No racionalismo cristão, a fé é sobretudo um ato de razão. O Espírito aí
também esteve presente, especialmente num tempo em que a humanidade vivia
aterrorizada pelo medo e pelas marcas do irracionalismo, que imperava por meio
de todo tipo de medo das forças não conhecidas e que dominavam e amedrontavam. Embora
a religião racional não tenha cristianizado a Europa, ajudou a enfrentar as
ameças do irracionalismo e da dominão por terríveis forças religiosas que
tornavam reféns os homens. (p. 135 e 136)
- Apesar do seu excessivo
otimismo (confiante na força da ordem, do progresso e da bondade, sendo incapaz
de reconhecer o mal, entregando-se mais à contemplação do que à ação), a
religião racional contribuiu positivamente para evitar os excessos da
culpabilidade. A religião racional oferece a razão contra o império da barbárie
e das forças descontroladas dos instintos. (pp. 137 e 138)
Como tal penetração incide na teologia (p. 138)
- A religião racional, no campo
da teologia, chega à convição de que se pode conhecer toda a complexidade do
mundo por meio apenas da razão humana, e que a filosofia pode ser um
instrumento para a ação, especialmente a ação política (p. 138)
- Sob a inspiração da religião
racional, a teologia manteve-se conservadora, especialmente no campo político.
Também, no campo científico, seu raciocínio dedutivo mostrou-se eficaz para
perceber o já conhecido, mas não ajudou a incursionar pelo novo, como o faria a
pesquisa científica vindoura. A teologia tradicional manteve-se distante do
povo, aristoc´rática, elitista, mas preservou um aspecto do Evangelho (o dom da
razão) (pp. 140-141)
Aspectos negativos da penetração helenística (p. 143)
- O cristianismo evangélico opôs
resistência à cultura helenística, por várias razões:
- o deus dos filósofos gregos é o
deus do cosmos, e não o deus na história dos homens, o libertador do seu povo.
Embora seja o ser humano o centro do cosmo, contendo-o em si, qual microcosmo,
o cosmologismo difere do Evangelho que acentua as diferenças entre o ser
hujmano e o universo (pp. 143-144);
- Sob a influência do
cosmologismo, a classe intelectual da igreja comporta-se tal como o “partido da
ordem”, na media em que entende a ação só como pura preservação da ordem
vigente, não como ação de Deus na história, aberta também à transformação. (cf.
p. 144)
- A recusa eclesiástica à
modernidade não se deu por conta das fontes do Cristianismo ou da vida simples
do povo cristão, mas por conta da teologia penetrada pela ideologia do
cosmogonismo. (p. 145)
- Outra marca forte da teologia
tradicional tem a ver com sua impregnação do idealismo helenístico, que não vem
por certo da Bíblia nem do Evangelho, até porque estes não pactuam com o
dualismo, buscam a formação integral do homem integral, não apenas da alma (p.
146)
- O idealismo produziu, não
apenas o isolamento do espírito (dimensão excessivamente exaltada), mas também
o desprezo ao trabalho manual. A conseqüência foi o abandono da cultura do
trabalho (“Ora et labora”) da tradição beneditina e franciscana, para a entrega
de monges e do clero às atividades estritamente “espirituais” (p. 147)
- O traço mais forte deixado pelo
legado do helenismo foi o esquecimento ou má compreensão do lugar do Espírito
Santo na história. Inclusive na Patrística, houve um entendimento inscuficiente
da missão do Espírito Santo, enquanto superexaltou-se a expansão do Verbo,
fazendo confusão entre as missões específicas do Filho e do Espírito Santo. (p.
148)
- “Por causa disso a afirmação do Deus
monoteísta se torna mais importante do que a ação de Deus na história.” Isto se
faz devido ao idealismo como forma de praticar a religião racional,e m vez da
práxis libertadora. No processo idealista, fica esquecida a ação do Espírito
Santo no mundo, enquanto uma classe se apresenta sumamente favorecida: a dos
hierarcas
(p. 144-154)
CAPÍTULO 4: O DESAFIO DA CRISTANDE (segunda parte: pp. 154-193)
- A cristandade desponta como o
desafio talvez mais grave lançado à Igreja. O imperador Constantino lança sua
proposta de cristandade, erigindo-a em “estatuto de religião oficial da
sociedade política e do Estado”, e a Igreja a acolhe e vem acolhendo durante
séculos, de modo quase incessante. . (p. 154)
- O autor distribui em três
tópicos os conteúdos abordados neste cap;: 1. “Definição da cristandade” (pp.
155-174); 2. “O positivo da cristandade”
(pp. 174-179); e 3. “O negativo da cristandade” (pp. 180-193)
- No tópico acerca da definição,
trata de situar o estado da questão, recorrendo a várias teses, que analisa
criticamente, começando pela tendência a tomar-se a cristandade como algo em
extinção. Assim, por meio de figuras como Mounier e outras, avaliou-se como
morta a cristandade ou a era constantiniana. Tal esquema binário sofre a
influência da modernidade com efeitos semelhantes em outros esquemas binários
do tipo “subdesenvolvimento-desenvolvimento”, “tradição-modernidade”,
“sacro-profano” e outros (pp. 155-156)
- Ao fazer a crítica da crítica
da cristandade, assumindo-a como morta, o autor lembra que a tese do anúncio do
fim da cristandade não é uma tese nova: Joaquim de Fiore, já no século XIV,
tinha vislumbrado a chegada de uma nova era, a era do Esírito. E depois de
Joaquim de Fiore, vieram vários movimentos pauperísticos que até antecederam a
Reforma, bem como os hussitas, Lutero, própria Revolução Francesa... O curioso
é que sucedia que “os destruidores da cristandade acabavam sempre por
reconstruírem uma outra, pouco diferente.” (p. 156).
- A história mostra que há uma
variedade de formas de cristandade. Inclusive a do Oriente, mais radical do que
a do Ocidente. O caso da cristandade bizantina, até com fundamento bíblico (cf.
Rm 13 e 1 Pd 2, 13-16 (pp. 157s)
- Tão diferentes podem ser as formas de
cristandade, que mesmo nos Estados modernos, que dezem tê-la superado, elas se
fazem presentes, como a pós a fase mais radical da Ver. Francesa, nos Estados
Unidos, nos países latino-americanos, e até na Rússia estalinista, pela via da
negativa. Nesta “Os dissidentes são tratados mais duramente do que nas épocas
mais duras da inguisição;”... (pp. 158-159)
- Avalia muito criticamente o
despontar do fenômeno da secularização na Europa, entendendo tratar-se de algo
muito grave: não se trata apenas de uma recusa à cristandade, mas de uma
rejeição a qualquer projeto de mudança societal que implique esforço coletivo e
sacrifício (p. 159)
- Na igreja latino-americana, até
Medellín, prevaleceu o modelo europeu de cristandade, diferente do modelo
norte-americano, onde ele se faz presente no tecido mesmo da socieade civil,
sem apelo direto à hierarquia e ao Estado. Com Medellín, surge um apelo a um
enfrentamento da opressão, ao apenas por meio explícito do Evangelho, mas de
ajuda direta na sociedade. Há incertezas quanto ao rumo da cristandade. (p.
160)
- Por medo a exposição ao
dissenso, o Concílio Vaticano II preferiu evitar o enfrentamento da
cristandade, nele prevaleceu o silêncio. (p. 160)
- Uma das dificuldades no
discernimento da cristandade, bem como das críticas a ela dirigidas, reside na
ambiguidade a que podem dar lugar trechos do Novo Testamento (cf. Rm 13 e 1 Pd
2, 13-16, só para citar dois exemplos). Aqui há um problema político que pode
ser a fonte da ambigüidade referida. A partir dessas passagens, é que surgem
interpretações como a de Eusébio de Cesaréia, segundo as quais a aliança com os
poderes políticos pode ser benéfico ao Reino de Deus, e a de Constantino teria
recebido de Deus a missão que ele cmpriu. Contrariamente a essa linha
apresenta-se o Apocalipse de João, explicitando uma adversidade radical entre
os poderes políticos e a causa do Reino de Deus. (pp. 161-162)
- A despeito da linha purista de
interpretação seguida pela corente do Romantismo, é possível observar-se que a
cristandade não era um bloco homogêneo: em que pese a confuência de pontos
comuns em seus fins, havia uma distinção clara de funções entre as atribuições
do poder temporal e as do poder religioso. (163)
- Várias páginas (da p. 163 à 174) são tomadas
pelo autor para completar sua “busca de definição” da cristandade. Destaca três
características definidoras do fenômeno: 1) a identidiade de ins ou objetivos
(“é uma sociedade que adota os fins cristãos como seus próprios fins”); 2)
legitimação moral (“é uma sociedade à qual a Igreja, em troca, oferece uma
legitimação”); 3) distinção complementar (“é uma sociedade em que os dois
poderes, espiritual e temporal, permancem claramente distintos, mas sempre
buscando agir em colaboração”) (pp. 163-174).
- Quanto ao primeiro princípio –
o da idendidade de fins -, o autor dá exemplo de vários países em que se passa
tal comunidade de fins, ainda que às vezes formalmente separados, mas na
prática claramente observáveis. (p. 165)
- Com relação ao segundo
princípio – o da legitimação cristã -. Observa-se uma expectiativa e uma
cobrança de que, uma vez assegurados os princípios cristãos pelo Estado, na
ótica do que interpreta a Igreja, então o Estado vai cobrar a parte da Igreja,
que a legitimação, que é abençoar publicamente a ordem estabelecida. (166)
- E com relação ao terceiro
princípio, trata-se de agirem em colaboração, mas cada um em seu terreno
próprio. São mencionados vários exemplos – inclusive no caso da Nicarágua de
Somoza, em que os bispos retiram o apoio, mas estabelecendo regras para o novo
Governo. A mútua coloboração inclui um leque de possibilidades, inclusive o uso
da violência. (pp. 167-171)
- Um
tópico é consagrado pelo autor a algumas considerações pertinentes quanto ao
caráter sociológico e histórico da cristandade, levantando a questão quanto às
circunstâncias e fatores que a engendram; quanto às possibilidades de sua longa
permanência; quanto ao caráter privilegiado da religião, no que tange ao
favorecimento do poder (bem mais do que outros fatores – cultura, língua, etc.
– de dominação em relação aos objetivos dos impérios. (pp. 171 a 174)
- Algumas páginas são também
consagradas pelo autor às positividades observáreis no período da Cristandade.
Um delas parte de uma crítica ao quase completo abandono, pela Reforma, da
dimensão política, na medida em que significou às vezes uma tentativa de
privatização e de interiorização do Evangelho. Enquanto isso, a Cristandade –
bem ou mal, mais mal do que bem = não se isola do político e do social,
exercitando tais esferas à sua maneira; (p. 175)
- Dadas suas motivações de
cristianizar toda a sociedade, a Cristandade acabou por enveredar pelo
afrouxamento das exigências feitas aos iniciados nos primeiros séculos, na base
da disciplina, do catecumenato, da penitência, com o propósito de fazer
penetrar a evangelização em toda a sociedade. (p. 175)
- Também no plano político, a
Cristandade apresenta uma postura positiva em relação à esfera política, ao
relacionamento com os poderes temporais, com os quais faz aliança para
preservar seus objetivos. O espaço político não é puramente opressor, também
pode servir à causa do Reino de Deus: “O
cristianismo não pode permanecer estrenho à ordem política e à sociedade.” (p.
176)
- Pretendendo purificar a Igreja
da cumplicidade com o poder, a Reforma “Rejeitou uma Igreja de mãos sujas, mas
fez uma Igreja sem mãos.” (p. 176)
- O autor reconhece como positiva
a posição de certa cristandade, como a apontada na Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, por conta de seu apelo a um
enraizamento social: “o evangelho se dirige aos povos e às culturas.” Faz,
porém, uma ressalva relevante: já ocorreu de Jesus, em benefício do próprio
povo, ficar isolado, em busca de despertar o povo e trazê-lo de volta aos
caminhos da justiça: “Jesus enfrenta o povo inteiro, em nome desse mesmo povo.
Não se isola senão para voltar melhor.” (p. 177)
- “A cristandade tende a absorver
os cristão e absorver seus cuidados a ponto de lhes fazer perder de vista o
próprio Evangelho.” Por outro lado, centrando-se numa perspectiva de salvação
individualista (“Salva tua alma”; “Tens uma única alma a salvar.”),“Os
Reformadores pregaram um Evangelho individualista e suprimiram a solidariedade
entre pecadores e justos. Cada qual deve, doravante, fazer sozinho sua
Salvação. Os pecadores não têm mais lugar na Igreja. Não lhes resta outra
solução senão a hipocrisia.” (p. 179)
- Após evocar – não sem
dificuldade! – alguns pontos positivos, o autor acentua, a justo título, as
negatividades, destacando o recurso abusivo à violência e o apego à riqueza.
Com relação à violência. Eis por
que “Em vez de se concentrar sobre a evangelização, a Igreja se concentra na
defesa, na manutenção, na difusão e expansão da cristandade.” (... )
“procurando afirmar sua identidade através dos símbolos que a representam. Os
símbolos cristãos ocupam o lugar da ação e das obras cristãs.” (...) “O clero
se consagra sobretudo a aumentar e a conservar a herança cultural e material ou
a reproduzir seus símbolos: festas e lituragia, associações eclesiais, igrejas
e oratórios, conventos e mosteiros requerem seus cuidados. O padre e o monge
serão, essencialmente, seus construtores: o tijolo é o melhor símbolo da
vocação eclesiástica nessa época.” (p. 180)
- “No entanto, a tendência dominante
vai no sentido do conformismo. Encoraja a fé simólica e a ação simbólica mais
do que as virtudes teologais do Evangelho.” Contra a tendência da cristandade,
de fazer da cruz um objeto de arte, Lutero reage com a sua “teologia crucis”,
uma vez que “A cruz não foi feita para ser venerada, mas carregada.” (p. 181)
- Se antes de Constantino, tal
era a posição da Igreja contra a violência, que até o serviço militar estava
vedado aos cristãos, depois dele passou a ser obrigatório, e os cristãos
passararm a aderir e a participar em guerras, cruzadas, repressão, Inquisição,
criação de ordens militares, etc. Os próprios monges de Cluny, que faziam votos
de humildade, depondo as armas sobre o altar, e não participando pessoalmente
da violência, abençoavam as espadas dos cavaleiros... Embora na maioria das
vezes, a Igreja se tenha pronunciado contra o uso da violência pelos seus
membros, numerosas foram as exceções, inclusive de papas que pregavam o recurso
aos seus próprios exércitos para os Estados pontifícios. (pp. 181-182)
- Outra via adotada por muitos
era a fuga para os mosteiros, mas também isso não resolvia o problema, já que o
pacto Igreja-Estado implicava o apoio às armas e ao uso da violência. (p. 182)
- Pretendendo justifica o uso da
violência, a Igreja passou a adotar como justificativa o princípio ou pretexto
da “guerra justa”, abusivamente utilizado contra as “heresias” (os albigenses,
os hussitas...), bem como nas guerras de religião, na repressão extrema feita
pela Inquisição... (p. 183)
- O melhor serviço que a
sociedade política, em regime de cristandade, espera da Igreja, é que ela
legitime e abençoe a ação violenta dos soberados. Do ponto de vista teológico,
a Igreja se apoisava na lógica pagã de que Deus estava sempre do lado dos
vencedores. (p. 183)
- Outro recurso usado e abusado
pela Igreja, no período da cristandade, foram: o apelo à riqueza, o apoio e a
legitimação dos ricos, tendo o próprio clero se tornado rico, graças à
multiplicação de seus privilégios por Constantino. (p. 184)
- Graças às facilidades criadas
por Constantino, aumentaram os privilégios do clero, a ponto de que “No
Ocidente, o clero e os mosteiros vieram a possuir um terço ou a metade da
riqueza do país.” Riqueza que a própria Igreja tentava justificar dizendo
colocá-la a serviço dos pobres, o que, em parte, tinha algum fundo de verdade,
mas sempre prevaleceram os laços de alinaça com o poder temporal. (p. 185)
- O fruto concreto dessa aliança
fundamental é atestado pelo empenho do alto clero em perseguir sempre os levantes
dos pobres e oprimidos: “O clero fez o que pôde para se opor à ascensão das
comunas ou às corporações medievais. Fez o que pôde para impedir ou reprimir as
revoltas camponesas.” (p. 186)
- “a Igreja assumiu a educação
dos ricos.” Foi o clero que se tornou o educador das lideranças dirigentes, e
quem as educou. “O raciocínio que, desde a Idade Média, justifica a educação
dada às classes dirigentes, é o
seguinte: se quisermos cristianizar a sociedade, devemos, primeiro,
cristianizar aqueles que têm poder de transformar essa sociedade.” (p. 187)
- Por outro lado, há os que
buscam atender ao apelo do Evangelho, clamando pela volta à pobreza das
comunidades primitivas. Este foi testemuho de Francisco (“De certo modo, ele é
a encarnação do cristianismo em terra de cristandade”) e dos movimentos
pauperísticos da Idade Média. Francisco de Assis não foi o único. Eles foram
milhões e renascem a cada geração.” (p. 188)
- O problema da pobreza na Igreja
desponta como o mais irritante para o autor, visto que, em nome da pobreza, até
votos são pronunciados, a demonstrar justamente que, se os religiosos fossem
pobres, não precisariam fazer votos de pobreza. (p. 188)
- Aludindo, inclusive a Ernst
Troeltsch, o autor lembra a tendência de bifurcação dos movimentos heréticos:
ou a radicalização (e o enfrentamento mais vigoroso da repressão) ou a
cooptação pela hierarquia. Exemplos dessa clivagem foram os valdenses e os
franciscanos, bem como as figuras de Lutero (que lutou contra a cristandade, e
ligou-se a outra, a dos nobres) e Thomas Müntzer, representando o movimento de
radicalização ao lado dos camponeses alemães (pp. 189-190)
- E nesse contexto e no período
seguinte (séculos XVI e XVII), produz-e uma situação paradoxal: a Reforma que
deveria fortalecer os movimentos de pobreza, terminam por enfraquecê-los e,
involuntariamente, precipitá-los para um quadro revolucionário – os casos da
Revolução Inglesa e do perfil revolucionário de algumas colônias da América do
Norte. (p. 190)
- Paradoxo que
também experimentou Vicente de Paulo: num contexto de extrema miséria,
provocada pelo luxo da corte e as guerras travadas pelo rei, ele não via outro
caminho senão o de socorrer e abrigar os pobres, os vagabundos e os doentes,
mesmo sabendo que a fábrica de miséria era maior do que os esforços seus e de
seus companheiros, de socorrer os necessitados. (p. 190)
- A título de conclusão do
capítulo IV, e numa apreciação de conjunto, o autor destaca, entre outros
pontos:
*
a iniciativa da cristandade partiu do poder civil;
*
a Igreja foi obrigada a escolher entre duas situações: ou ficar à margem da
sociedade ou integrar-se ao Império. Optou pela segunda via... (p. 190)
*
uma vez instalado o regime de cristandade, apenas duas alternativas se punham
aos cristãos: 1) ou integrar-se à dinâmica daquela sociedade, usufruindo de
suas vantagens e possibilidades, ou ficar à margem da mesma, mas sem poder
mudá-la. (pp. 191-192)
*
há, de um lado, o excesso de certas iniciativas extremadas, desconhecendo os
ritmos da Históira; e, por outro lado, o que predominou, toda uma história de
acomodação ao sistema, como ocorreu, inclusive entre os religiosos, cujos
fundadores foram quase todos traídos, quanto aos fundamentos de suas mensagens
fundadoras. (p. 193).
Pontos tratados no cap. V (“A
Reforma em questão” do livro Tempo da
Ação
(Pontos resultantes
da leitura de Alder)
O capítulo V (pp. 194-218) tem
como título: “A Reforma em questão”. Distribui-se em três tópicos “Abordagem da
Reforma” (pp. 195-206); “O positivo da Reforma” (pp. 206-213); e “O negativo da
Reforma” (pp. 213-218).
- O autor inicia sublinhando a
relevância da Reforma para o Cristianismo, hoje, seja para protestantes ou para
católicos, até porque reforma é um apelo antigo do Cristianismo, dantando mesmo
das origens, conforme o texto do Apocalipse dirigindo-se às igrejas, sem
esquecer que os prórpios profetas são também reformadores. Ao abordar a
temática da Reforma, o autor o faz de modo a atentar para a Reforma dos séculos
XIV e XV, da Reforma propriamente dia e da Reforma Católica. (pp. 194-195)
- O propósito do autor, neste
primeiro tópico, é abordar tanto a influência histórica sobre a Reforma e sobre
o Cristianismo historicamente em curso, como também a influência que a Reforma
eventualmente implicou para a história, em que pese o purismo dos reformados em
que pretender libertar a Reforma da história... (pp. 195 196)
- As igrejas pentecostais foram
as maiores responsáveis pela expansão da Reforma, inclusive nos Estados Unidos.
(p. 196)
- À semelhança da expansão
missionária testemunhada pelas igrejas pentecostais, deu-se também a expansão
missionária católica, nos quadros da Reforma católica, em estilo semelhante com
exceção das polêmicas doutrinárias. (p. 196)
- Impulsionada pelo conhecido
princípio “Soa Scriptura”, o Protestantismo oscilou entre o rigorismo
principista e o receio de não destruir toda a herança cristã, já que os
Reformadores apostavam em superar os vícios eclesiásticos pela adoção de um
Cristianismo puro, isento de qualquer mediação histórica: pretendiam alcançar o
Cristo puro, buscado apenas e tão somente nas Escrituras. Aí pretendiam
encontrar, como o autor da Imitação de
Cristo, o Cristo fora do mundo, fora das contaminações da história. Daí a
forte tendência à interiorização, ao cobate às exterioridades medievais, das
festas, cantos, músicas, teatro e de outras manifestações populares. Combate e
desmonte feitos em nome da pureza da fé, ameaçada por superstições, magia, etc.
(pp. 197-198)
- A Reforma vai tender sempre
mais ao silêncio, à interiorização, substituindo gestos de solidariedade pela
mera escuta da palavra: “A ação interior faz esquecer a ação cristã sem mais.”
(p. 198)
- Para a mentalidade reformadora
predominante, a mensagem cristã é uma realidade espirital que se opõe ao material
ou ao corpo. Neste caso, tudo se resume ao interior, à alma, não importando a
história, o mundo, a propósito de que o autor afirma que, para a Reforma, “A
históira não ultrapassa os limites da consciência.” E mais:“Paradoxalmente, a
Reforma quis ser uma exaltação do Espírito e ela desemboca na supressão pura e
simples da missão do Espírito,” (pp. 200-201)
- No item que aborda a relação História e
Reforma, autor alude ao abandono pelos reformadores dos camponeses, jogados à
própria sorte, salvo honrosas exceções como o teólogo Thomas Müntzer, que
defendeu vivamente os camponeses. A Reforma favoreceu aos interesses das elites
urbanas ou a burguesia em formação. (pp. 202-203)
- Expressão e produto dessa
relação entre História e Reforma é o processo de secularização. Este, em sendo
um fenômeno não exclusivo do período da Reforma, assume uma nova dimensão ao
tempo da Reforma, na medida em que implicou uma autonomização das realidades
terrestres em relação ao paradigma vigente na Idade Média. (p. 204)
- Quanto ao positivo da Reforma,
o autor começa destacando a personalização, ou seja, o apreço à pessoa como
sujeito, como indivíduo, cuja consciência pode dissentir da norma dominante, ou
seja, a Igreja Católica, considerada o único sujeito. Em seguida, destaca a
tese weberiana, da confluência entre os interesses da Reforma e os da classe
emergente, quanto à valorização da racionalidade, da abertura ao
desenvolvimento científico-tecnológico, e ao empenho pela poupança. (pp.
206-213)
- Com relação ao “Negativo da
Reforma”, o autor destaca: o esquecimento dos pobres, a culpabilização do
indivíduo e o individualismo. (pp. 213-218)
CONTINUAÇÃO DO LIVRO O TEMPO DA AÇÃO, de J. COMBLIN
Anotações de Alder sobre os pontos
tratados no capítulo VI; “O choque da Modernidade” (pp. 219-267)
-
O capítulo VI distribui-se por alguns tópicos gerais, começando pelo da
civilização do trabalho, aí considerando em que bases foi assentada (a
felicidade e a razão), quais as marcas desse reino, qual sua ideologia, que
positividades e que negatividades neles são encontras. Depois, examina como a
Igreja se posiciona frente a essa nova realidade. E, por fim, aborda a
aproximação entre cristianismo e modernidade.
- O
autor começa por delimitar, no tempo e no conteúdo, o que considera
“Modernidade”: a grande transformação do conjunto da sociedade, nas distintas
esferas da realidade e da existência individual e coletiva, que tem início no
século XVIII e se estende pelos séculos seguintes. Trata-se de uma mudança de
época, de civilização, agora apoiada na sociedade do progresso ou da indústria.
(p. 219)
- A Modernidade representa para os cristãos um desafio
maior, desde suas origens, ainda maior do que o da cultura helênica, o da cristandade e o da Reforma, afinal agora se
lida com a mais profunda de todas as mudanças já enfrentadas em dezenas de
milênios antes, quando se vivia uma cultura rural. Agora, pela primeira vez,
vão predominar valores, sentimentos e práticas do mundo urbano (p. 220
- Desafio
para os cristãos, pois a Bíblia, que tinha sido escrita num e para um contexto
rural, parece pouco ou nada ter a dizer aos cristãos da civilização da indústria
ou do desenvolvimento. Tal é a profundidade das mudanças trazidas pela
Modernidade, que o ritmo da vida torna-se estranho, não apenas em relação a
povos antigos da Ásia, da África, etc., mas até para pessoas do mesmo país,
vivendo vinte anos distantes dos seus lugares de origem rural...(p. 220)
- Apostava-se
então, como última palavra, no desaparecimento da religião e do próprio
Cristianismo. De fato, as mudanças na sociedade foram extremamente impactantes.
Antes, durante séculos, nas mudanças ocorridas (Helenismo, Cristandade,
Reforma), com exceção das tribos nômades e dos povos caçadores e pescadores, as
mudanças não eram tão profundamente sentidas, a não ser para as elites. Quando
se davam, soavam aos povos da Ásia, da África e de outros continentes como se
estivessem passando de uma dimensão do neolítico para outra, mas dentro do
próprio neolítico. A partir do século XVIII e seguintes, já se trata de lidar
com uma mudança de época como nunca antes vista, a afetar toda a existência
humana, individual e coletiva. (p. 221)..
-
As igrejas tiveram grande dificuldade de enfrentar a Modernidade, também por
terem elaborado uma teologia do trabalho, um conceito estranho às suas
atividades até então. (p. 222)
-
Para aceitar o desafio da Modernidade, a Igreja Católica teve que esperar até à
realização do Concílio Vaticano II, que se ocupa de definir e de definir-se
frente à Modernidade, ainda que de modo limitado (por exemplo, o próprio Vaticano
II, a partir mesmo do exemplo da composição de seus membros e temas (foi um
concílio fundamentalmente europeu), teve dificuldade de se situar perante a
descolonização. (p. 223).
-
Pela primeira vez, uma mudança tão profunda se distancia das anteriores. E o
fator principal é o advento do trabalho, tal como concebido pela Modernidade
capitalista. A Modernidade traz a inovação da classe dos capitlistas. O autor recusa-se
entrar na discussão sobre o que originou o quê, se a mentalidade burguesa que
gerou o Capitalismo ou se este gerou aquela: entende que se trata de uma
discussão semelhante à de quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Mas,
acentua que o Capitalismo só teve sucesso quando e porque também contou com a
adesão de forças outras, como a dos Estados nacionais. (p.223)
- Um
fator decisivo que distingue o período da Modernidade em relação a outros, tem
a ver com os objetivos: enquanto as sociedades de outros períodos tinham como
objetivo a paz (shalom), assim definida pelo critério da religião, a Modernida
se dá como objetivos a felicidade e a razão. (p. 224).
- Muito
impactantes, os objetivos da Moderinadade, comparados aos das sociedades
anteriores. Estas, em que pese sua diversidade de evolução histórica,
apoiavam-se fundamentalmente em valores religiosos, bíblicos: a paz (“shalom”),
inspirando-se na orientação para a conformação do ser humano com a ordem da
natureza e do univcerso, enquanto os objetivos da Modernidade gritavam por
felicidade e pelo reino da razão. (pp. 224)
- Até
antes do advento da Modernidade, a felicidade do ser humano vinha do universo
religioso, da harmonia com as coisas do céu e com as coisas da terra (plantas,
animais, etc.). A vida na terra não conseguia encher o ser humano, sua
felicidade dependia também do alto. A Modernidade faz descer do céu para a
Terra o ideal de felicidade. Esta consiste em satisfazer as necessidades
materiais e culturais, erigindo o consumo como a porta de entrada dessa
felicidade. (p. 225).
- A
partir do século da luzes, o conceito de felicidade vai restringindo-se a
satisfação de todo tipo de necessidade, necessidades de caráter material e
necessidades de natureza cultural. As necessidades não cessam de se
multiplicar, em vista de se alcançar uma vida de conforto: apartamento, carro,
alimentação variada, ar condicionado... é só conferir a diversidade espantosa
de aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos, sem os quais já “não se pode
passar”... (p. 226).
- Com
relação à consideração de praxe de que os primeiros segmentos da burguesia
praticavam a ascese, o autor identifica tal prática apenas com relação às
despesas feitas pela burguesia para financiar despesas da nobreza e do clero
(catedrais, mosteiros...), para ela coisas inúteis do ponto de vista de sua
grade de valores, esta apontando mais fortemente para a multiplicação das
necessidades e do consumo, vale dizer da produção. (p. 227).
- Depois
da felicidade, o outro elemento a caracterizar as bases da civilização
industrial é a razão que abre espaço ao enorme desenvolvimento científico. Na
nova civilização, o trabalho se submete à razão, uma razão colada à produção de
bens de consumo. (p. 2287)
- Diferentemente
dos períodos anteriores, em que a razão estava colada ao desenvolvimento humano
como ser em sua integralidade, muito se inspirando em Deus, fonte desse ser, na
sociedade das luzes a razão e a ciência tornam-se meios eficazes do progresso,
concebido como satisfação de incessantes necessidades (p. 228)
- O
autor se remete à conhecida Tese 11 de Marx (dirigida a Feuerbach), de que os
filósofos só fizeram pensar o mundo, quando se trata é de transformá-lo,
assinalando não tratar-se de uma tese estritamente marxista, já que o período
das luzes tratou de levar isso bem a efeito, com perspectivas evidentemente
diferentes, é claro. (p. 228)
=
O enorme poder absorvente da civilização do trabalho, submetida aos objetivos
últimos da felicidade e da razão - ambos orientados à expansão produtiva e ao
consumismo – encontra na Economia sua principal alavanca. Esta logo se torna a
rainha das ciências. A partir daí as ciências, as pesquisas, a tecnologia –
tudo se torna isntrumento a serviço do progresso da civilização industrial. Até
a religião, as artes, as profissões liberais e respectivos profissionais –
todos se transformam em assalariados.
O
próprio socialismo real segue essa direção, em conhecidos casos de trabalhos
forçados para seus prisioneiros. É nisso que consiste “o reino do trabalho” (pp.
228-230).
-A
ideologia do trabalho envolveu uma boa parte dos trabalhadores. Não a todos.
Muitos trabalhadores não se viram contemplados pela felicidadade atribuída ao
trabalho. Os trabalhadores mais qualificados sentem contemplados, de tal modo a
substtiuir o trabalho pela religião. (p. 231)
- A
ideologia do trabalho não é apenas relativa ao Capitalismo. Tem a ver com as
classes dirigentes, capitalistas ou não. Ambos os lados tudo apostam no trabalho
como meio completo de satisfação das necessidades do ser humano. Diferentemente
de sociedades anteriores, que valorizavam também outras atividades gratuitas,
tais como a festa, os jogos, de tal modo que, em certos casos, as horas de
festa e de jogos se equiparavam às de trablaho, a sociedade moderna volta-se
exclusivamente para o trabalho produtivo, como meio de satisfação das
necessidades humanas. Mas, nem todos os trabalhadores sentem assim: a maioria
não identifica sua felicidade no trablaho. (pp. 231-232).
- A
despeito de tratar em itens distintos os elementos positivos e os negativos da
civilização do trabalho, o autor costuma alternar esses aspectos, mesmo quando
formalmente está tratando só de um dimensão.
Dentre as positividades da civilização
do trabalho, aponta:
-
o exemplo de algumas descobertas (como a Pasteur) que implicaram amplo aumento
da expectativa média de vida (em menos de um século, tendo passado de 30 anos
para 70);
-
algumas invenções tecnológicas redundaram em considerável alívio de situações
de penúria para seres humanos, haja visa a utilidade de certas máquinas...
No
que diz respeito às negatividades, acentua as seguintes, dentre outras:
- a
civilização do trabalho acarretou, tanto para os países capitalistas quanto
para os países do socialismo real, uma corrida tresloucada em busca da expansão
incontida de produção de bens de consumo, sem que isso tenha redundado no
cumprimento da promessa fundamental da civilização industrial, de felicidade;
- a
expansão da produção favoreceu basicamente às elites, não se estendendo pelo
conjunto da sociedade. (pp. 233-239).
- As
vinte seguintes páginas o autor dedica ao segundo grande item do capítulo, ou
seja, a refletir sobre a reação das igrejas cristãs diante da devastadora evolução
da Modernidade (p. 239=p. 259) sublinhando com mais força a fragilidade da
teologia do trabalho, a atitude inicial de recusa sistemática à Modernidade, a
penetração desta inclusive por parte das igrejas cristãs e a perda da classe
operária.
De
início, a Igreja, apostando na provisoriedade da onda moderna, tratou de
recusá-la pela raiz, na esperança de que logo passasse a onda... É que as
igrejas cristãs se ressentiam de uma teologia do trabalho à altura do novo
desafio. Antes, o trabalho manual era apenas uma dentre muitas atividades então desenvolvidas.
Com o advento da Modernidade, o trabalho passa a absorver uma enorme variedade
de atividades.
-
Por outro lado, a coneepção de trabalho da Igreja era, em parte, refém da
concepção helenística com seu caráter escravista. Além disso, o exercício do
trabalho tinha uma conotação peniltencial: trabalhar para expiar os pecados...
Nesse sentido, foi bastante influente a orientação beneditina do famoso “Ora et
laborare”. A prórpria etimologia de “trabalho” – “labor”, “tripalium” sublinha
sua dimensão de pena...
Tal
concepção soa pessimamente aos ouvidos dos modernos, com sua visão
profundamente apologética do trabalho, atitude que o autor questiona: não será,
antes, uma posição realista, ao menos para os que realmente metem a mão na
massa e em cujas costas recaem esses trabalhos? Como estes poderiam avaliar o
trabalho senão como um inferno ou um purgatório? p. duzento e quarenta e dois.
A
partir do aparecimento das cidades e das corporações e ofícios, a concepção
teológica de trabalho traz uma evolução notável. O trabalho é entendido como
atividade humana a completar a criação. Deus é o autor da natureza, e entrega
ao homem a tarefa de interagir com ela, em proveito do bem comum. O trabalho é
exercido com a convicção de que a parcela humana de colaboração com a obra
divina. Coneepção que é negada pela Modernidade, que vê o trabalho em seu
sentido estritamente utilitário, destinado a satisfazer necessidades materiais
e culturais, a serviço do consumismo: “a civilização de trabalho não deixará
senão uma natureza massacrada e amontoados de concreto e ferragens.”... p.
duzentos e quarenta e três e duz;quar. e quatro.
Há uma
crítica feita pelo autor à Reforma como inspiradora de uma visão de trabalho
como mera obrigação de cumprir em vista da salvação, como uma “vocação sem
conteúdo”; Obedece-se, mas sem saber para onde vai. A Reforma não inquietou em
saber se a nova civilização do trabalho gerava ou não injustiças sociais
clamorosas.
- A
ruína propiciada pela civilização do trabalho foi mais longe, ao esvaziar de
sentido a religião cristã. Os cristãos antes tinham no trabalho um motivo de
colaboração e de louvor a Deus. Com a Modernidade, o trabalho vira um inferno
só aceitável enquanto meio para se manter vivo, para adquirir a ração
necessária.
- As
regras da sociedade passam a ser movidas exclusivamente pelas leis de uma
economia desprovida de ética, a não ser a ética do lucro, das vantagens
extraídas da super-exploração dos trabalhadores. Duzentos e quarenta e cinco
- A
recusa da Igreja, inicialmente manifesta em gestos isolados de inconformismo,
vai se tornando extremada, durante todo o século XIX, haja vista a contundência
dos documentos eclesiásticos publicados ao longo do pontificado de Pio IX, até
o Vaticano I, cheio de condenações e censuras a tudo que cheirasse Modernidade,
afastando=se inclusive da classe operária...
- De
início, passa a fazer aliança com os partidos conservadores, anti-republicanos,
depois vai se aliar também com os liberais contra os partidos operários. Por
vezes, isto se dá por meio de uma posição dúbia: “nem liberalismo nem
socialismo”, o que reforça a posição da burguesia. Dizentosd e quarenta e seis
e duz. E quarenta e sete.
- Nem
todos os cristãos se aliaram à posição da Igreja. Houve resistências, a exemplo
dos jesuítas no Brasil, que foram perseguidos tanto pela Coroa quanto pela
Igreja, por conta de sua defesa dos povos indígenas. A Ação Católica também
resistiria, mas só a partir demil novecentos e vinte e seis.
- Aproveitando
a posição dúbia da Igreja, a burguesia começa a penetrar nas bases eclesiásticas,
cooptando suas lideranças, a começar de suas escolas católicas. Até as
encíclicas sociais se mostraram funcionais a tal aliança com a burguesia, ainda
que elas o façam com certa precaução. Com o famoso livro do Pe. Godin, a
experiência dos padres operários, a JOC
e, mais recentemente, o Concílio e as conferências de Medellín e de Puebla, é
que houve certa mudança nessa aliança, reatada, porém, a partir do pontificado
de João Paulo II.
Capítulo IX: O Discernimento (pp. 352-379) e Conclusão do livro (pp. 380-389)
-
É o último capítulo do livro “O Tempo da Ação”, de José Comblin. O autor o
distribui em duas partes: na primeira trata de explicitar o tipo de abordagem
que orienta o sentido do discernimento (pp. 353-370), enquanto dedica a segunda
parte a tratar da libertação dos pobres e suas mediações (370-379). O
discernimento é a ação do Espírito de Jesus, iluminando as escolhas e as
decisões individuais e coletivas do Povo de Deus, ao longo da história. É o
Espírito quem conduz a história por meio do discernimento e da ação dos pobres,
dos humildes, dos fracos em quem Sua força se revela. O Espírito conduz a
história, sem nada nos impor. O discernimento ocorre nas ações humildes, modestas
e sobretudo escondidas, protagonizadas pelos pobres. O discernimento, também na
perspectiva de O. Cullmann, é o coração da moral cristã, no plano da ação na
história. (pp. 352-353)
- Três
tópicos compõem a primeira parte, onde explicita que abordagem o guiará em sua
reflexão sobre o discernimento: a abordagem paulina, o discernimento na
história e a prática do discernimento.
- Quanto
à abordagem paulina do discernimento, o autor toma como ponto de partida os
estudos do exegeta P. G. Therrien, para quem o discernimento é colocado no
centro da vida cristã. E não se trata de restringir o discernimento apenas às
ações do dia-a-dia, no cenário da vida particular ou da vida intra-eclesial,
mas de detectar a presença iluminadora do Espírito nos entrechoques da
história, buscando identificar as relações orgânicas entre o que se passa fora
com o que se passa na vida cotidiana. Também, não se trata de voltar-se para o
mundo exterior, apenas com o intuito de pragmatismo, de extrair do cenário
externo só o que interessa e é vantajoso para os de casa. Seria uma atitude
oportunista e interesseira, a ser evitada, pois os fatos e os acontecimentos da
história devem ocupar um lugar central na ação dos cristãos. “O discernimento é
o princípio fundamental do agir cristão, enquanto procede do Espírito.”(pp.
353-354)
- Dos
escritos paulinos acerca do discernimento, o autor, partindo da contribuição de
Therrien (“Le discernement dans les écrits pauliniens” (in Études bibliques), sublinha quatro trechos muito densos:
* 1 Ts 5, 19-22: “Não extingais o Espirito. Nâo
desprezeis as escrituras. Submetei todas as coisas ao discernimento; ficai com
o que é bom; afastai-vos de qualquer espécie de mal.”
* Rm 12, 2: “Não vos conformeis com
este mundo, mas transformai-vos pela renovação do sentido moral, a fim de
discernir o que o bom: o que lhe é agradável, o que é perfeito.”
* Fp 1, 9.11: “O que peço em oração é que vossa
caridade seja cada vez mais abundante em conhecimento e em intuição para cada
situação, de modo que possais discernir os verdadeiros valores, a fim de serdes
sinceros e irrepreensíveis no dia do Cristo.”
* Ef 5, 10: “Discernindo o que é agradável ao Senhor.”
- Inspirado
nos escritos paulinos, bem como em João, o autor segue caracterizando o sentido
do discernimento, alertando para não confundi-lo com um ato de mera cognição,
ao mesmo tempo em que o situa como o ato de fazer a vontade de Deus.
Identificar a vontade de Deus supõe o exercício de conhecê-la, sim, desde que
se trate de um ato que se dá no campo da ação, enquanto se busca agir: “É ao
colocar sua ação que o homem a descobre e a conhece; Antes, buscou-a. É preciso
buscá-la no meio dos sinais que se encontram no mundo.” Quem não ousa agir,
tomar posição diante dos desafios concretos da vida, não chegará ao
discernimento. (p. 355))
- Outro
ponto relevante a observar: “O Espírito lembra o ensinamento de Jesus sob a
forma da ação nova, que está a inventar a cada momento. A lembrança é
criadora.” (p. 355)
- O
discernimento é a forma como se dá o encontro entre a história de Deus e a
história dos homens, pela qual entra o Reino de Deus. Um encontro que convida à
mudança. As burguesias não apreciam essa história de mudança, apegam-se a
princípios abstratos que não as obriguem a acatar as lutas de transformação do
mundo. Do Espírito, apegam-se apenas a princípios gerais que, no máximo, sejam
úteis à sua vida privada. Para os pobres, ao contrário, a mensagem eristã
inspira esperança de mudança. Eis por que “A vida do cristão consiste
justamente em fazer surgir o novo.” (pp. 356-357)
- A
esperança suscitada pelo discernimento opõe-se ao escatologismo de tudo esperar
por milagre, sem qualquer disposição de fazer a sua parte. A esperança cristão
anima os cristãos ao protagonismo, a lutarem enquanto esperam, confiantes, na
plenitude dos tempos. Não se omitem de fazer a sua parte, de fazer a sua ação,
conforme sua vocação. (p. 357)
- Para
o autor, “o discernimento não se deixa guiar pela sugestão da circunstância:
está à escuta do Espírito para criar alguma coisa de novo que vai além dos
costumes, dos determinismos, das exigências das circunstâncias.” (p. 357)
- Embora
não tenha faltado, ocorre que a tradição teológica cuidou pouco da questão do
discernimento. Em parte, por conta da escolástica com sua visão de mundo
próxima da civilização helenística; em parte, por conta da Cristandade, e em
parte também por conta da Reforma que, ao enfatizar demais a fé pura, desconfiava
das mediações temporais, levando, assim, a um entendimento de uma mensagem
cristã fora da história ou sem história. Ora, o autor sustenta que o verdadeiro
discernimento não pode vir unicamente da fé, mas, ao mesmo tempo, da fé e da
história. (pp. 357-358)
- Nos
momentos conflitivos, de que a vida também se compõe, não há unanimidade nas
posições tomadas pelos cristãos. Ocorrem, com frequência escolhas diversas e
até opostas. É a massa dos pobres que se levanta, em protesto e mesmo em
revolta contra as estruturas perversas do mundo, como no caso das cristandades,
em que, ora com uma resistência surda, ora com manifestações de revolta,
levantam-se contra a corrupção do clero, contra a aliança da Igreja com os
privilegiados. (pp. 358-359)
- No caso das massas
latino-americanas, sucede a mesma desconfiança dos pobres em relação às elites
dominantes. Estas atribuem tal atitude dos pobres à falta de esclarecimento, de
instrução, mas o autor atribui tal atitude dos pobres ao exercício do
discernimento sob a inspiração do Espírito. Atitude de desconfiança que
persiste, mesmo quando as elites tentam cooptar os pobres, fazer reformas para
manter inalteradas as estruturas. (p. 360).
- O povo dos pobres –
especialmente os camponeses – tem tido contínua desconfiança diante das
propostas de mudança vindas da burguesia e seus aliados. Tem-se distanciado do
oportunismo, da sede de poder dos setores dominantes. Tem preferido a “theologia
crucis”, mantendo-se avessos à vitória dos poderosos. (p. 361)
- Ao abordar o sentido do
discernimento, o autor sustenta que este se dá em meio aos desafios da
história, razão por que não fiquem os cristãos a pretender praticar o
discernimento na história, a partir de um ponto zero, pois a história é um
contínuo, e o Espírito age como ato segundo e corretivo. Eis por que, para o
autor, “Discernir é, ao mesmo tempo, compreender a ação real, compreender o
sentido do Espírito e compreender como se compõem o Espírito e o mundo atual.”
(p. 364)
- O discernimento se faz à medida
que os cristãos ousam participar da aventura histórica, e não dela se afastar.
Isto requer conhecê-la, em suas esferas econômica, política e cultural,
recorrendo à mediação das ciências humanas, mas indo além delas, perscrutando o
que o Espírito tem a dizer. As ciências humanas ajudam a dizer o que se passa,
mas a voz do Espírito chama para algo mais, para o que pode ser. O
discernimento não compactua com a necessidade imperiosa de se vencer, a todo
preço. Este tipo de história só interessa àquele que está obstinado a vencer,
enquanto o verdadeiro discernimento evita essa lógica, sente-se dela
emancipado, donde o sentido da “theologia crucis”, no sentido de que para se
ganhar, é preciso saber perder. “Ora, para entrar na história, é preciso
conhecê-la. Para entrar na evolução da economia, da política ou da cultura, é
preciso fazer parte dessa evoluação, saber quais as forças e recursos de que
dispõe. É preciso conhecê-la não só no que é, mas naquilo que não é.” (...) “O
Espírito fornece o conhecimento do que poderia ser: como o messianismo pode se
transformar realidade.” (pp. 364-365)
- Só o povo dos pobres se
interessa mesmo pelo discernimento, no sentido de ter realizada, já aqui, a
utopia do Reino de Deus, já que aos poderosos interessa manter a história tal
qual é, entendida como uma necessidade invencível, pois assim mantê-la lhes
interessa. (p. 365)
- O tópico seguinte trata da
“prática do discernimento”, que signica o discernimento na prática, pelos
caminhos da história. Um primeiro ponto aqui focado diz respeito ao desafio de
se saber dosar bem o tempo entre as tarefas do cotidiano e a responsabilidade
cidadã, isto é, a vida pública. Uma esfera está ligada à outra. Uma é importante
para a outra. Ao longo do livro, o autor destaca a primazia do público na
proposta cristã: “Que o cristianismo não diz respeito apenas, nem mesmo em
primeiro lugar, à vida quotidiana, este livro supõe em cada página.” (p. 366)
- O grande desafio colocado ao
cristão, a cada momento: a tensão entre a defesa da honra (que se faz na vida
pública) e a busca de segurança (alvo da vida privada): “A honra o chama para a
praça pública e a segurança o retém em seu lar. Entre a honra e a segurança a
batalha é permanente.” (p. 366)
- Mas, há o risco de entrar para
a vida pública como meio de realização de interesses particulares: é, no caso,
a privatização dos espaços públicos... (p. 366)
- A vocação do cristão o induz à
vida pública, à ação no mundo. Assim é a vocação religiosa: um chamamento ao
comparecimento à praça pública, assemelhando-se ao significado do que foi o
batismo para Jesus: uma entrada para a vida pública. Daí a afirmação do autor,
de que “A vocação religiosa é uma opção pela ação pública o mais integral
possível.” (...) “O Espírito, mais que
todas as solicitações de honra humana, é capaz de provocar .opções pela ação
pública, com sacrifício da vida privada ou quotidiana.”(p. 367)
- O discernimento se faz a partir
de uma relação madura entre o respeito à subjetividade e o respeito à
comunidade. No caso dos jesuítas, de início até se tentou respeitar a autonomia
relativa do indivíduo, mas no final, o acento terminou recaindo na obediência
total ao superior. Passou-se de um subjetivismo a outro (o do superior). Salvo
exceções proféticas, o discernimento nasce de uma construção coletiva, de uma
inserção numa corrente, num movimento histórico. O discernimento não procede,
normalmente, de um ato isolado. Mesmo quando é difícil construir-se um consenso,
é mais seguro tentá-lo por essa via do que aceitar que brote de indivíduos
isolados. (pp. 368-370)
-Na segunda parte do capítulo, a
atenção do autor se volta para a libertação dos pobres e suas mediações. Desde
suas origens, o Cristianismo se faz em movimento, em movimento comprometido com
a libertação dos pobres. É pela ação dos movimentos históricos que tal
libertação se vai fazendo. No período da cristandade buzabtuba, passa-se a
centrar a liberdade dos pobres na força do rei ou do imperador, cabendo-lhe a
tarefa de proteger os pobres. A partir do século XIX, foi-se entendendo melhor
que a libertação dos pobres é fundamentalmente obra deles próprios. Seus
aliados podem ajudar tal processo, mas jamais substituir o protagonismo dos
pobres, nesse processo: “A tradição cristã impõe uma distinção entre a ação dos
pobres que se libertam e a ação dos outros para libertar os pobres.”
(...).”Nenhuma ação de libertação feita pelos pobres consegue substituir a ação
dos próprios pobres.” (...) “Basta rever a história dos últimos vinte séculos
para constatar que, a cada passo, aqueles que assumem a representação dos
pobres e assumem ou guiam em seu nome a libertação, se tornam, por sua vez, uma
nova classe dirigente e refazem a sociedade de tal modo que ela perpetua seu
papel dirigente: a mediação se torna seu próprio fim.” (pp. 371, 372 e 373)
- Isto se tem dado secularmente,
pela instalação do medo sobre os “de baixo”, em cada época, inclusive nos
processos revolucionários contemporâneos, em que o partido assume em nome de
toda a classe, e passa a desconfiar da ação das massas. A verdadeira libertação
dos pobres não comporta receitas trazidas de fora para dentro nem de cima para
baixo. Supõe, isto sim, exercício do silêncio perante os pobres e muita
disposição de escuta. Isto também vale em relação à Igreja, como ensinam os
documentos de Medellín e de Puebla. Aí a Igreja reencontra sua vocação. (p.
374).
- O último tópico da segunda
parte do cap. IX trata do sentido e do papel da mediação. Como oprimidos, os
pobres são, não raro, mantidos sob a sujeição, a resignação e a acomodação.
Sozinhos, não conseguem organizar-se em busca de sua libertação. Precisam de
uma mediação, de verdadeiros aliados que os animem, sem tomar-lhes a direção,
nesse processo de libertação: “Os pobres não se libertam, se para isso não
forem chamados. Precisam de uma promessa e de uma esperança para que tenham fé
e se ponham a caminho. ´É este o papel dos profetas. O cristianismo introduz
neste mundo a função profética e é uma função animada pelo espírito.” (p. 374)
- “A tragédia das igrejas durante
ps dois últimos séculos e até esses últimos anos foi que elas renunciaram a
levantar a voz. No seio da miséria, a classe operária foi despertada em muitos
lugares e impelida para a ação por outros profetas. Os anais do socialismo
mostram o quanto, pelo menos os militantes das primeiras gerações, agiram como
profetas, no momento em que os profetas oficiais calavam.” (p. 374)
- Embora haja distinção entre a
ação profética e as funções políticas, cabendo, antes, ao profeta “preparar uma
palavra”, enquanto a preparação da ação é, antes, da alçada do político, o
autor alerta quanto a que “o profeta deve ser livre diante do poder e,
sobretudo, deve ter o poder de chegar realmente até os pobres.” (p. 375)
- Não há sistema imutável. É
preciso conhecer seus pontos frágeis, e pôr-se em ação. Para se manter, o
sistema cuida de manter os pobre ignorantes do seu funcionamento. Cabe a quem
entra para o discernimento a tarefa de examinar qual é sua parte, já que todos
têm uma fatia de poder, e colocá-la a serviço da mudança. Da mudança do
sistema: “O discernimento se refere, portanto, em primeiro lugar, à mudança do
próprio sistema.” No entanto, o processo de libertação dos pobres é algo
incessante, não basta pôr-se abaixo o sistema dominante, é preciso estar sempre
disposto a corrigir, a fazer nova conversão, para o que também aí é relevante a
ajuda dos que vêm de cima, desde que caminhem lado a lado com os “de baixo” (pp.
377-378).
- No
final do capítulo, o autor alerta quanto ao fato de que classe dominante alguma
cede espontaneamente o poder, donde a necessidade de uma longa preparação que
supõe vários passos. Um deles consiste em distinguir entre discurso e prática,
não só do sistema como também de seus aliados. Não raro, estes a pretexto de
servir, buscam mesmo sua promoção, a manutenção ou ampliação de seu status, sua ascensão funcional. Tal como
ocorre aos próprios aparelhos do sistema: só falam em servir ao povo, quando,
na verdade, tratam de preservar ou ampliar seus interesses: “É assim que os
funcionários servirão àqueles que poderão aumentar o poder do sistema.” (...)
“A ação cristã consiste em uma conversão dos poderes em serviço.” Por mais
forte que pareça, todo sistema é mutável, “Continua sendo uma ação de homens e
depende da ação de homens pessoalmente responsáveis.” (p. 379)
Conclusão do livro (pp. 380-389)
- O autor põe ênfase nos
pontos-chave refletidos ao longo das quase 400 páginas do livro: a ação do
Espírito no mundo tem sido constante, ao longo da História, em particular dos
últimos vinte séculos. Trata-se de uma presença atuante em milhares de ações,
em ações múltiplas. A ação do Espírito se conhcce pelo seu caráter libertador.
A força libertadora do Espírito se faz a partir dos pobres, dos fracos deste
mundo, a quem o mesmo Espírito chama e anima a transformar o mundo, a partir da
mudança de si mesmos. (p. 380)
- Só conhecemos um pequena
parcela da ação que o Espírito suscita e e anima no meio dos pobres. Elas são
múltiplas e silenciosas, na maioria das vezes. Aparecem mais pela iniciativa de
seus representantes (tomados positiva ou negativamente) do que pela dos
próprios oprimidos. O Espírito também leva tais ações muito além dos objetivos
perseguidos pelos movimentos dos pobres. Sua ação se espalha como manhca de
óleo. Nâo necessariamente de forma pura, a ação se dá de forma misturada, de
modo a envolver heroísmo, testemunho, mas também medo, covardia, taição...(p.
381)
- Agir é entrar num dos canais da
correnteza da história da humanidade, sabendo de nossas limitações históricas e
buscando superá-las pela força do Espírito. Ação implica mudança, em espaço, em
tempo e em ritmos diferentes: às vezes, as mudanças se dão pouco a pouco,
lentamente (como na Cristandade, de feição rural, por exemplo), às vezes,
também, podem dar-se de modo brusco, nos processos revolucionários. A ação se
dá com erros e acertos. Mesmo errando, é melhor agir do que cruzar os braços. (p.
382)
- Por vezes, sucede que processos
revolucionários instalem a dúvida entre os cristãos, estes não escolhem “o”
processo revolucionário de sua preferência, são instados a se posicionar ao
lado deles, com discernimento. Isto significa não se contentar com a mudança,
mas ousar transformar sempre, libertar da própria libertação (aprimorar a
libertação. Isto não pode ser obra espontânea da história, como o entende a
secularização, que se conntenta com conferir um sentido, sem agir na
transformaçação propriamente (p. 383)
- A ação libertadora se dá de
vários modos e ritmos. Às vezes, por meio de uma longa resistência muda; outras
vezes, aparece mais expressamente. Para cada situação concreta, há uma
determinada forma de ação. Tudo tem sua hora. O Espírito está sempre soprando,
mas nem sempre se responde positivamente ao Seu chamado. Nos Estados liberais
do séc. XIX, não se agia junto aos movimentos sociais, por se entender que tal
ação não era própria dos cristãos; outras vezes, a ação foi bastante limitada
por conta da repressão do Estado (como na Rússia stalinista), A tentação é substituir
a ação pela palavra, pela interpretação, e deixar ao Espírito o que tarefa dos
homens (cf. p. 384)
- A primeira experiência de
inserção da Igreja no palco do mundo se deu por meio da Cristandade bizantina,
através dos signos litúrgicos que substituaíam a ação no mundo. O que estava
por trás dessa opção é o receio de agir no mundo, por conta dos riscos de
impureza, de se misturar com os não-puros. Daí a nostalgia e encantamento pelas
comunidades primitivas, que também não tinham uma ação propriamente no mundo,
segundo sua voccação, o que vai acontecer um século depois, nas perseguições
pelo enfrentamento do mundo, conforme sua vocação (cf. p. 385)
- Por não se viver uma “época de
síntese”, em que predomina um consenso significativo, mas, antes, um tempo de
muitas dúvidas e de uma considerável diversidade de interpretações, os pobres
agem dentro dessa diversidade, nela procuram fazer caminho de libertação. Com a
modernidade, centrada na razão (ou num tipo de razão), pretendeu-se impor a
todos um modelo. O resultado foi a imposição de uma escravidão. É na
diversidade que está a ação cristã, à medida que respeita várias razões, com
diversidade de ciências. (cf. p. 386)
- Dentro da ampla diverdidade e
multiplicidade da ação, importa destacar a ação escondida, protagonizada pelos
pobres, no anonimato do dia-a-dia, na invisibilidade das correntezas
subterrâneas. Tendo em conta tal diversidade de ação, convém evitar reduzi-la a
um modelo único, já que a ação se insere em situações particulares, mas não
isoladas, mas articuladas e solidárias. Referindo-se à diversidade de perfil
entre católicos (que trabalham mais ligados a uma referência mais ampla) e
reformados (que tendem a afirmar mais fortemente sua singularidade, dos a
diversidade de denominações, enquanto não se consegue uma verdadeira
integração, é preferível trabalhar-se a diversidade, por ser mais autêntica. A
recomendação é que, entre uns e outros, se aposte na complementaridade, ainda
que de difícil articulação. (cf. p. 387)
- A conjuntura dessa época (1980)
indica a necessidade de se priorizar volta à política, como forma de ação,
vencendo-se assim a tendência positivista de se acreditar que o culto à razão e
à ciência fosse suficiente para fazer chegar um mundo de paz e de justiça. A
volta à política enfrenta, porém, o desafio de se enfrentar a tendência à
militarização então reinante, em que tudo se avalia sob o olhar da tática ou da
estratégia, em que tudo é olhado como instrumento dessa lógica. (cf. p. 388)
- Os desafios presentes (a
tendência à militarização da vida civil, tendência a transformar tudo em alvo
de tática e estratégia...) precisam ser enfrentados pela volta à política.
Volta ou, no caso onde nem isso tem lugar, invenção da política como meio de
organizar os pobres, de fazê-los recuperar a voz, e dizer a sua palavra. É a
forma atual da ação, nesse tempo, que tempo do Espírito Santo, de sua ação no
mundo. (p. 389)
[1] Cf. do
mesmo autor: O Tempo da Ação
(Petrópolis: Vozes, 1982); A Força da
Palavra (Petrópolis: Vozes, 1986); O
Espírito Santo e a Libertação (Petrópolis: Vozes, 1986; Vocação para a Liberdade (São Paulo:
Paulus, 1998); O Povo de Deus (São Paulo: Paulus, 2002); Vida em Busca da
Liberdade (São Paulo: Paulus, 2007);
João Pessoa, 6 de Outubro de 2010
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