PAULO FREIRE
COMO EXPRESSÃO
INDIVIDUAL DE UM LEGADO COLETIVO
Alder Júlio Ferreira
Calado (FAFICA)
Somos com
freqüência fascinados por geniais achados que garimpamos em nossas leituras.
Numas mais do que noutras. Os bons clássicos – homens e mulheres -, por
exemplo, não cessam de nos surpreender. Tal é o nosso encantamento diante de
certas formulações que colhemos, a partir de certos autores e autoras, que, não
raro, lhes atribuímos sem mais idéias, valores, conceitos, categorias,
formulações teóricas que, por mais associados que se apresentem aos nossos
autores e autoras, mais cedo ou mais tarde, descobrimos que, a bem da verdade,
antes deles/delas, houve quem propusesse o mesmo, ainda que de outro modo.
Nem sempre,
porém, temos o cuidado de ir às fontes. As descobertas que vamos registrando
nas leituras, tendemos a atribuir simplesmente - e com freqüência - aos nossos
autores e autoras. Mesmo sem o aval dos mesmos.
É assim, por
exemplo, que atribuímos à paternidade de Marx a íntima associação entre
religião e ópio. Claro que encontramos isso nele. (Re)afirmar ou assumir-se
algo não implica imperiosamente paternidade do que se afirma ou do que se
assume. Não significa necessariamente ser a primeira fonte. No caso de Marx,
homem do seu tempo, absorveu idéias, valores e expressões correntes à sua
época. A idéia de religião vista como ópio do povo, antes de Marx, já corria na
literatura de corte iluminista do tempo. Como em Feuerbach, por exemplo.
Marx é apenas
um único exemplo aqui mencionado. Tantos outros autores e autoras, em
diferentes épocas, têm sido alvo desse tipo de referência.
Por outro
lado, parece pacífico o reconhecimento do papel do indivíduo na história. O
desafio é saber dosar, em cada caso, o quantum de coletivo e o quantum
de individual há de se atribuir a tantos acontecimentos, eventos e situações
concretas. Nesse sentido, a tendência predominante parece ser a ditada pela
empolgação provocada por determinada personagem individual, chegando-se, por
vezes, ao limite de se perder de vista a parcela de protagonismo coletivo aí
subjacente.
Aqui, o
propósito de nossa reflexão restringe-se ao caso de Paulo Freire. Inquietam-nos
questões do tipo: numa determinada formulação teórica, que relação é possível
observar-se entre o quantum de individual e o quantum de
coletivo? No caso de Paulo Freire, a despeito do modo singular e genial com que
exprime suas idéias, que parcela de coletivo podemos nelas detectar? Como
superar a inclinação freqüente de se atribuir a uma única autoria singular
aquilo que um exame mais detido indica comportar traços de um sujeito coletivo,
sem qualquer demérito para os geniais formuladores e formuladoras?
Nossa
reflexão volta-se, por conseguinte, ao exame do lugar do indivíduo nas
construções histórico-culturais, tomando Paulo Freire como uma das referências.
Questiona e problematiza duas tendências extremadas: uma que subestima a ponto
de quase negar o lugar dos indivíduos nos processos de construção
histórico-cultural, e outra que superestima a tal modo o protagonismo
individual, que praticamente o descola do contexto coletivo, no seio do qual se
deve compreendê-lo. Não raro, os grandes clássicos – mulheres e homens – são
alvos desse tipo de leitura, tanto em suas potencialidades como em seus
deslizes. Os recentes acontecimentos relativos à crise ético-política, ainda em
curso, pode ser tomada também como outro exemplo a merecer avaliação.
Organizamos a
exposição deste texto, iniciando por uma breve consideração sobre o lugar dos
indivíduos nas construções histórico-culturais.
Em seguida, buscamos cotejar tal leitura seja com referências a outros
interlocutores seus, seja com seus próprios escritos. Por último, tratamos de
ensaiar algumas pistas, a título de sugestões como proceder de modo a evitar
essa prática tão corrente.
A reconhecida
contribuição individual nos processos histórico-culturais
À parte o
cultuo seletivo (porque tal culto comporta critérios privilegiados) ao
indivíduo, que tem prevalecido ao longo da História, notadamente nos períodos
mais exacerbados das sociedades de classes, cumpre reconhecer e fazer justiça à
participação significativa de personalidades singulares na produção de
processos histórico-culturais, nos distintos âmbitos da realidade social. É,
inclusive, legítimo afirmar-se que, em certas circunstâncias especiais, o
concurso individual foi decisivo, no desencadeamento dos fatos.
O certo é
que, de um modo ou de outro, personalidades há, em todos os domínios da
realidade social e de saberes, que tiveram um papel expressivo no processo e no
desfecho de vários acontecimentos sócio-histórico, do âmbito local ao plano
mundial.
Se nos
ativermos, por exemplo, ao terreno das descobertas científico-tecnológicas,
vamos nos deparar, com freqüência considerável, com a inegável contribuição
singular de personalidades genais, nas áreas da Física, da Química, da
Biologia, da Biogenética, da Informática... Igualmente no campo das ciências
humanas. Em razão da indisponibilidade de tempo, evitamos citar nomes e feitos,
de modo ilustrativo. Sabemos, porém, tratar-se de uma legião de homens e
mulheres.
Convém, não
apenas reconhecer, como também fazer justiça a cada um, a cada uma dos
integrantes dessa legião de descobridores, a cujo papel singular muito devemos
relevantes intervenções, descobertas e invenções. Ao mesmo tempo, importa
também ter presentes, em cada um desses indivíduos e respectivos protagonismos,
traços significativos do legado social, de um sujeito coletivo subjacente a
esses feitos.
Traços
coletivos, aliás, reconhecidos por algumas dessas mesmas personalidades genais,
a exemplo de Newton, cujo dito se tornaria famoso: “Se consegui enxergar à
distância, é que subi em ombros de gigantes.” Referia-se aos seus antepassados
sem cuja contribuição dificilmente Newton teria tido êxito em seus achados.
Podemos estender tal reconhecimento a outros aspectos do legado social:
infraestrutura, cuidados familiares, escolaridade, condições
sócio-econômicas...
Cotejando o que
se lê e o que se ouve acerca de Paulo Freire com o que ele escreveu
Personalidades
extraordiárias costumam ser, ontem como hoje, alvo recorrente de imputações nem
sempre historicamente verificadas. À semelhança de heróis envoltos nas mais
distintas lendas, também a personagens impactantes
São imputados
feitos, afirmações de difícil compravação. E isso ocorre tanto em relação a
personalidades reverenciadas pelas suas grandes qualidades (Francisco de Assis,
Zumbi, Antônio Conselheiro...) como em relação a outras de perfil ignóbil
(Hitler, Stálin, Bush...). Num caso e noutro, a tendência é a de se ampliar
consideravelmente o alcance da lente, para mais ou para menos. Cada um desses
nomes passa a ser tratado como “o mais”, “o maior”, “o melhor”, “o pior”, “o
único”...
Tanto mais,
quanto – como é o caso da sociedade brasileira – se conviva desde séculos com
uma arraigada “cultura presidencialista”. Há uma propensão visceral a eleger-se
um chefe, um guia, um governante que realize as coisas “por nós e para nós”.
Em relação
especificamente a Paulo Freire, tomando aqui como referência categorias como dialogicidade,
relacionalidade, prática libertadora, relação teoria-prática,
inédito viável, ação cultural, relação opressor-oprimido, libertação,
entre outras expressões caras ao seu já consagrado universo vocabular, vamos
observar com relativa freqüência uma tendência a considerá-lo como fonte
exclusiva desse exercício filosófico, que o próprio Paulo Freire, em sua
franciscana humildade, faz questão de compartilhar com tantos e tantas,
inclusive para além do mundo da Academia. Aprendiz por excelência, Paulo Freire
vivia antenado aos sinais, minúsculos que parecessem, por onde passasse, não
importando as circunstâncias e os ambientes. Aprendia debaixo de uma mangueira,
nos círculos de cultura em meio dos camponeses de Guiné-Bissau, como aprendia
nos debates universitários que travava nas diferentes universidades do mundo.
Aí reside sua genialidade gnosiológica: no seu estilo de aprender a aprender.
Voltando à
tendência acima referida, tomemos como exemplo sua visão de mundo, de homem e
de sociedade. Nada mais exagerado do que se atribuir exclusivamente a Freire
todo aquele processo de elaboração, do qual são parceiros múltiplos sujeitos,
individuais e coletivos. Aqui destaco dois desses sujeitos, parceiros e
expressões fontais do pensamento freireano: o Marxismo e o Cristianismo.
Quanto ao
primeiro, como é possível entender o percurso de Freire em suas brilhantes
formulações teóricas, abstraindo-o, por exemplo, do legado da Dialética, numa
perspectiva hegeliano-marxista?
Impensável
parece o entendimento freireano de Ser Humano como ser de relações, sem passar
(também) pela Dialética, dentro de uma ótica marxista em virtude da qual se
observa
- a interação universal dos
fatos, dos acontecimentos, das situações e inevitavelmente das relações humanas
e sociais. Interação universal bem traduzida, aliás, pela conhecida expressão
de que “tudo está ligado a tudo”;
- o indivíduo, sem perda de sua
singularidade, é expressão de uma teia de relações que caracteriza
fundamentalmente toda organização societal e comunitária;
- o percurso do Ser Humano, em
sendo necessariamente relacional, se faz por vias diferentes, cheias de
oscilações, de vaivéns, nunca de modo linear. Trata-se de um percurso tecido
por tempos e espaços contraditórios, em que se funda, porém, sua unidade;
- Ente histórico, o Ser Humano
não nasce “pronto”: vai se fazendo, ou como costuma dizer Paulo Freire, vai “se
tornando”. Característica também associada ao princípio dialético da
“transformação universal”, em razão do que se observa que, no plano da
História, “tudo muda”, princípio associado, por sua vez, ao heraclitiano “Παντα
ρει”.
É, aliás,
desse mesmo princípio que Paulo Freire também recolhe sua aposta utópica, sua
convicção de que o Ser Humano conta com um destino histórico ontologicamente
vocacionado à Liberdade. Aí reside a densa esperança freireana.
De modo
similar, vamos encontrar, ora explícita, ora implicitamente, raízes marxianas
na leitura de sociedade feita por Freire. Seu entendimento de que há um claro
embate de projetos societais em curso: de um lado, a hegemonia do Capital,
enquanto, de outro, a firme resistência e contraposição ao modelo hegemônico
por parte das classes populares. É fundamentalmente tal embate o conteúdo
substantivo da tão decantada luta de classes, que, não sendo invenção de Marx,
alcança com ele a mais elaborada compreensão. Quem atentar bem para os
principais trabalhos de Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, Cartas à Ação
Cultural para a Liberdade, Guiné-Bissau, entre outros) vai se deparar, de
modo mais explícito, com tal chave de leitura de sociedade feita por Freire.
Uma segunda
matriz do pensamento freireano aqui destacada é o Cristianismo, tal como lido,
por exemplo, pela Teologia da Libertação. Os escritos de Freire são igualmente
tributários do Cristianismo. Aqui, mais do que em relação ao Marxismo, sua
inspiração se dá de modo mais implícito do que explicitamente. Mas, às vezes,
Freire também o faz de forma expressa, como ocorre, por exemplo, num dos
ensaios – “A Educação e as Igrejas na América Latina” – que data do início dos
anos 70, no qual Freire, ao analisar o papel das igrejas cristãs num contexto
de conflitos, defende uma postura de compromisso com os oprimidos à luz de uma
leitura pascal.
Ainda neste
ensaio que também aparece num dos seus livros básicos – Ação Cultural para a
Liberdade -, Freire caracteriza a postura revolucionária dos cristãos
comprometidos com os deserdados da Terra, na perspectiva do Cristianismo
libertador.
E, mais uma
vez, vale lembrar que as raízes do pensamento freireano têm uma composição
plural, para além, é claro, das duas fontes acima referidas. Como negar sua
inspiração socrática? Como negar, em seu percurso existencial, a contribuição
de correntes como o Existencialismo, o Personalismo de Mounier? Homem aberto ao
diálogo com diferentes expressões do pensamento, estava sempre a exercitar a
interlocução, seja com sujeitos coletivos, seja com sujeitos individuais. Suas
próprias categorias estão, elas próprias, impregnadas de contribuições
provenientes de fontes diversas. Como, aliás, é praxe nos grandes autores.
Se se toma,
por exemplo, o caso da categoria relacionalidade, quantas correntes quantos
autores e autoras não o terão inspirado? Inclusive alguns/algumas não
necessariamente por ele citados. Fico a pensar no refinamento da reflexão de um
Martin Buber, acerca do nó de relações que é o ser humano, e de desdobramentos
desse pensar. Poderíamos multiplicar os exemplos. Para os fins perseguidos
nesta breve exposição, limito-me a esses casos.
Seja como
for, vale ressaltar a contribuição genial de Paulo Freire, ao imprimir sua
marca própria, seja quando o faz de modo pioneiro, seja quando ao retomar, em
novo estilo, teses de outros, de outras.
Considerações finais
Buscando
sintetizar, em poucas linhas, o cerne da problematização acima exercitada, vale
sublinhar os seguintes pontos.
1. Especialmennte nas sociedades
de classes, tem sido praxe a superestimação do papel do indivíduo como
exclusivo ou principal responsável pelos acontecimentos, em detrimento do
protagonismo coletivo. Fato que se observa tanto em relação aos acontecimentos
celebrados como positivos (a vitória de uma guerra, uma conquista relevante
para um povo, etc.), como em relação às ocorrências trágicas (o Nazi-fascismo,
o massacre do povo iraquiano, a ditadura do Brasil, etc.). Trata-se de
atribuir-se à obra de uma pessoa o que é fruto de um trabalho coletivo.
2. De modo semelhante, ocorre em
relação aos grandes clássicos, entre os quais Paulo Freire.
3. No caso de Paulo Freire, a
despeito de tudo correr à sua revelia, já que tais generalizações não têm
respaldo nele, há uma propensão generalizada a atribuir-se apenas ao mesmo toda
a fonte de seus pensamentos e elaborações teórico-metodológicas.
4. Não sustentação empírica
nessa tendência. Os escritos freireanos nos remetem com freqüências a distintas
correntes de pesnamento, sobretudo duas que aqui tomamos como referência: o
Marxismo e o Cristianismo.
5. Além dessas duas matrizes,
convém sublinhar a multiplicidade de fontes a inspirar a vida e a obra de
Freire, das quais não se deve subestimar, inclusive, a colhida entre pessoas
não-letradas, em distintas latitudes por onde ele passou, sobretudo como um
incansável aprendiz.
6. Entendemos que reconhecer em
Freire, como em qualquer outro autor ou autora, a parcela de inspiração
coletiva subjacente em seus escritos, em nada diminui a genialidade do autor,
apenas se faz justiça ao mesmo e aos seus inspiradores.
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Paulo:
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