SOCIEDADE E
UNIVERSIDADE - A MEDIAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Alder Júlio Ferreira
Calado[1]*
Ninguém
duvida de que da sociedade que temos
para a sociedade que queremos ainda falta muito, para dizer o mínimo. Esse
hiato, porém, não é apanágio dos tempos atuais. Na literatura pertinente,
registros semelhantes é possível encontrar com certa freqüência, em diferentes
períodos da História. Não obstante tal descompasso, manifesto sob vários
ângulos, continua aceso o sonho de organização de uma sociedade que seja capaz
de responder às necessidades e às aspirações fundamentais do conjunto de seus
membros.
Aqui
nos restringimos a algumas notas acerca do atual momento da realidade
brasileira. Salta à vista o espectro de crise – e crise profunda -, em que,
hoje mais do que ontem, se acham mergulhadas a sociedade brasileira e suas
principais instituições, qualquer que seja o ângulo do social que tomemos como
alvo de nossas observações.
Aos
profundos e crescentes impactos decorrentes da reestruturação produtiva, que
marcam o atual momento do Capitalismo, nenhuma das esferas da realidade social
se acha imune. Ao contrário, apresentam-se claramente impregnadas pelos efeitos
de tais impactos.
Como
expressão e resultado de sucessivos avanços das pesquisas e dos achados
científico-tecnológicos, tem lugar uma notável reviravolta (ainda em curso),
inclusive no quadro paradigmático até então hegemônico, no processo produtivo e
nos processos organizativos do trabalho.
Em
matéria de nível e de qualidade, resultados inéditos são alcançados, seja na natureza e consistência
dos materiais utilizados, seja na qualidade técnica de sua performance, seja na eficácia dos procedimentos de gestão, seja
ainda nos indicadores de produtividade, o que se reflete sob as mais variadas
formas, inclusive... nas altas taxa de lucro, para a felicidade geral do grande
Capital! Reviravolta saudada como uma grande
revolução, associada à terceira revolução tecnológica.
Avanços
que, por vezes, se manifestam como positivos, pelos benefícios que
proporcionam. Como não saudar, por exemplo, no âmbito das ciências da saúde,
relevantes achados no efetivo e eficaz combate a tantos males? Em outras áreas,
também, reconhecemos resultados encorajadores. São fartas as matérias e
divulgações, saudando com euforia tais conquistas. Bem menos difundidos, porém
– por incômodos ao Mercado - são alguns
questionamentos e indagações necessários sobre o sentido e o alcance de muitos
desses achados científico-tecnológicos. Questionamentos tais como:
- Todas essas conquistas se
refletem em ganhos efetivos para o conjunto da Humanidade
e do Planeta?
- Qual o impacto relevante da
maioria desses achados sobre a superação das profundas e crescentes
desigualdades sociais e dos profundos males sociais que campeiam, sob várias
formas (concentração de riquezas e de renda, gastos escandalosos em armamentos
bélicos e no narcotráfico, desemprego estrutural, sucateamento ou desmonte dos
serviços públicos essenciais, crescente empobrecimento das maiorias, manutenção
ou aumento do déficit de saneamento, de habitação, aumento da riqueza de bancos
e de transnacionais feito à custa da miséria de multidões ...)?
- Em benefício de que(m) e contra
que(m) vários desses achados implicam?
Poderíamos
estender os questionamentos. Fazemos questão de expressar nosso sentimento de
satisfação, em relação a vários benefícios resultantes de recentes avanços
científico-tecnolóicos. nossa firme posição de apoio e incentivo a toda
pesquisa, a todo achado científico-tecnológico que implique a melhoria da
qualidade de vida dos Humanos e do Planeta. Ao mesmo tempo, fazemos questão de
manifestar nossa indignação e nossa firme oposição a supostas conquistas
que, não apenas se traduzam em
malefícios para os Humanos e para o Planeta, como também se revertam em
instrumentos a serviço do aumento das desigualdades sociais e em desmedida
agressão ao Plante.
Na verdade, a
despeito de tantos desses avanços, o que se tem observado é o agravamento da
precarização da vida para expressivos setores da população submetidos ao
desemprego estrutural, ao sub-emprego na hipertrofia da economia informal, ao
aviltamento dos salários, ao exacerbado déficit de moradias ou expansão de
cômodos indignos de serem habitados por humanos, à altura do início do terceiro
milênio da era cristã...
Nesse sentido,
resulta amplamente relevante o papel das universidades, especialmente das
universidades públicas.
Pensar a formação do Brasil e dos brasileiros - a
conformação de estruturas e subjetividades que demarcam nossa especificidade
enquanto Povo-Nação - exige também a leitura das respostas que emergem
historicamente no interior desta sociedade autoritária, no bojo de um processo
tenso e contraditório, inaugurando práxis
políticas que sinalizaram/sinalizam novas possibilidades de se viver em
sociedade. Em outros termos, implica em resgatar a trajetória de construção e
exercício da política na contraface da dinâmica instituída, conferindo o status de categoria analítica a
movimentos sociais e atores coletivos lançados ao ostracismo pela concepção
hegemônica. Estes, no entanto, se constituem enquanto
protagonistas/construtores da perspectiva societária cidadã, no seus
repertórios de lutas e utopias. Trata-se aqui do exercício de recuperação de
uma memória que se recusa a ser autoritária, contrapondo-se a uma “história
oficial” que privilegia somente “(...) as ações vindas do Alto, minimizando as
práticas de contestação e de resistência social e popular (...)”, segundo Chauí (1987:51).
Registramos, neste sentido, uma outra história - olvidada
pela memória oficial em suas estratégias de esquecimento e desligitimada pelos
setores que impuseram sua hegemonia -, concedendo o direito à fala a outras
vozes que ecoaram em terras brasileiras.
A matriz histórica violenta e o conjunto de ideologias e concepções
institucionalistas que secularmente a formataram – remodelando o seu perfil e
desaguando na ideologia de Segurança Nacional e no ideário neoliberal
contemporâneo - não se consolidaram sem resistências. Estas se constituem
enquanto respostas sociais a uma ordem que se impôs historicamente - respaldada
na violência estrutural e estatal em suas diversas facetas - atravessada pela
tentativa permanente de sua legitimação na “produção da índole pacífica,
através do sujeito inerte” (Samet,1993:48) e na passividade, despolitização e
fragmentação dos tempos atuais[2].
Isto porque, nas palavras de Carvalho (1997:11):
Todo sistema de dominação, para
sobreviver, terá de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda que
seja a apatia dos cidadãos.
Neste percurso interpretativo nos deparamos o tempo todo,
segundo o registro de Calado (2000:14):
(...) com uma tensão dialética entre as
forças hegemônicas e suas estratégias de dominação, de um lado, e, do outro, as
diferentes manifestações de protagonismo dos Movimentos Sociais Populares.
Isto porque a história de “construção da brasilidade
excludente”[3] é –
no seu contraponto – também a história de resistência a esta construção de
múltiplas e variadas formas. Demarcamos a compreensão de resistência em nossa
análise não em seu sentido amplo e difuso de diferentes manifestações -
explícitas ou ocultas - em diversas facetas dos cotidianos, investigadas por
Chauí (1987) no interior da cultura popular, mas sim na sua dimensão de ações
deliberadas de atores coletivos em razão de suas demandas e interesses
históricos frente ao Estado. Registramos, neste sentido, as lutas inauguradas
com a recusa dos “negros da terra” - nomeados “índios” - aos grilhões, suas
revoltas e fugas e o “deixar-se morrer” nas redes, conforme o instigante relato
de Ribeiro (1995); também as revoltas escravas e o surgimento dos quilombos -
dos quais o mais importante foi de Palmares – ainda que derrotados pela ação
repressiva de particulares a soldo do governo, expressam com veemência a recusa
às senzalas e pelourinhos.
Nesta linha de raciocínio, destacamos dentre as revoltas
políticas que se sucederam em fins do séc. XVIII, a Conjuração Baiana (1798)-
conhecida como Revolta dos Alfaiates – que envolveu escravos, artesãos,
militares de baixa patente, quase todos negros e mulatos, na luta contra a
escravidão e o domínio dos brancos (Carvalho, 2001:24). Assim, já no período
colonial, começa a se delinear o esboço de uma sociedade política cuja
formatação vai inscrever-se no campo de uma resistência permanentemente
sufocada pelas elites. Constatamos, já aqui, conforme apontava Ribeiro
(1995:26) aquela:
(...) brutalidade repressiva contra
qualquer insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não
admite qualquer alteração da ordem vigente.
Muitos e importantes movimentos se inscrevem nesta mesma
linha de resistência: o movimento de Canudos, a Revolta da Chibata, o
anarco-sindicalismo, e tantos outros que – resguardadas as especificidades
organizacionais/reivindicativas e os contextos históricos diferenciados –
convergirão, no fundamental, na recusa à exclusão social, no interior de uma
sociedade atravessada pela opressão econômica e o exercício de uma violência
estatal endereçada aos “indesejáveis”, na ótica do sistema de dominação de
classe em suas diversas fases. Ainda que não tenham se constituídos como
hegemônicos, demarcam, no entanto, o campo da resistência como o de luta por
direitos, tanto na zona rural quanto nos centros urbanos no curso do processo
de modernização conservadora que começa a se delinear no Brasil nas primeiras
décadas do séc. XX - concomitante ao processo de industrialização - e superação
de uma economia, até então baseada nas atividades mercantis do latifúndio
monocultor/exportador.
Resgatar a história desses movimentos e suas lutas, dos
atores que protagonizaram resistências - inclusive ao preço do próprio sangue –
constitui importante exercício de uma memória que reconstrói a história dos
vencidos. Implica na reatualização de um passado, em fazê-lo presente com sua
lógica e seus sentidos, permanências e rupturas, enfatizando a afirmação
histórica do “direito de ter direitos”. Trata-se, portanto, de recuperar essa
memória e o sentido do “direito ao passado como dimensão da cidadania”, nas
palavras de Paoli (1986:26-27), pois este:
(...) compreende o resgate dessas ações e
mesmo de suas utopias não realizadas, fazendo-as emergir ao lado da memória do
poder e em contestação ao seu triunfalismo.
Chauí (1984:17) coloca a necessidade de:
(...) desconstrução da memória,
desvendando não só o modo como o vencedor produziu a representação de sua
vitória, mas, sobretudo, como a própria prática dos vencidos participou desta
construção.
Neste sentido, feito o registro de lutas que demarcaram o campo
da resistência coletiva no decorrer de nossa história, vamos nos ater à
dinâmica contemporânea de sua afirmação, a partir da problematização conceitual
dos movimentos sociais, a análise da emergência dos “novos movimentos” no
Brasil (anos 70), na perspectiva de identificar seu estatuto político.
Movimentos
Sociais: delimitando um conceito
A conceituação de movimento social implica na verificação
da existência de uma certa polissemia, dada a “multiplicidade de interpretações
e enfoques” e a “diversidade de paradigmas explicativos” que foram se
delineando no mundo acadêmico - em âmbito mundial -, sobretudo a partir dos
anos 60 (no Brasil, na segunda metade dos anos 70) quando são elevados ao status de categoria analítica (Gohn,
2000:10), em razão de sua emergência na cenário sócio-político. No entanto, -
faz-se mister registrar - sua presença têm marcado milenarmente a história das
sociedades. Resgatar estas origens é reavivar a memória das vozes e atores
coletivos em suas inúmeras manifestações de resistência. Podemos remontá-las às
revoltas escravas na Roma Antiga ou descobri-la nos “ecos libertários de
heresias medievais na contemporaneidade”, como o faz Calado (1999) ao analisar
alguns movimentos do período.
Estudiosa a décadas da temática/problemática dos movimentos
sociais, Gohn nos oferece em “Teorias dos Movimentos Sociais” interessante recuperação/sistematização
dos principais paradigmas existentes, analisando-os em suas
divergências/convergências explicativas. Destaca a especificidade da realidade
latino-americana – particularmente a brasileira - nos seus diversos cenários,
reforçando a necessidade da criação de ferramentas conceituais e metodológicas
adequadas às lutas sociais que aí se desenvolvem e aos novos atores que
emergem. Situa a análise dos movimentos sociais no contexto das múltiplas
transformações em curso no mundo contemporâneo nos impasses, desafios e
paradoxos postos pela dinâmica capitalista em curso.
Neste sentido - respaldados na proposta
teórico-metodológica apresentada por Gohn (2000:241-247), que articula
elementos macro e micro de análise -, vamos situar os movimentos sociais como
“processos sócio-políticos e culturais da sociedade civil, num universo de
forças sociais em conflito”. Pressupondo, portanto, a historicidade de uma práxis coletiva e a produção de uma
identidade comum, realçamos - stricto
sensu - a concretude e especificidade dos movimentos sociais no universo de
sua heterogeneidade, nos seus recortes temporais e espaciais determinados, bem
como a esfera própria de sua atuação. Conformam – no espaço instituinte - um
campo político (o que não impede articulações em outras esferas). Demarcamos
também uma perspectiva dialética de análise, inserindo estes atores coletivos
na dinâmica mais ampla do conflito e da luta social em diversas frentes,
transcendendo o campo de classes e espraiando-se para diferentes dimensões das
subjetividades e carências/demandas coletivas.[4] Neste sentido, a categoria
gramsciana do campo de forças nos possibilita a inteligibilidade dos atores e
projetos que disputam a cena política e a força motriz que os anima:
(...) a categoria fundamental é a de força
social, traduzida numa demanda ou reivindicação concreta, ou numa idéia-chave
que, formulada por um ou alguns, e apropriada por um grupo, se torna um eixo
norteador e estruturador da luta social de um grupo -–qualquer que seja o seu tamanho
- que se põe em movimento (GOHN, 2000 248).
Nesta linha de raciocínio - delineando os contornos
exigidos por nosso recorte temático - a categoria movimento social é percebida,
como produção privilegiada, ainda que não exclusiva, das não-elites, dos excluídos
da ordem social e/ou política, portadores de necessidades não respondidas e
reivindicações de inclusão social efetiva, “(...) inserindo-as na esfera
pública da política” (GOHN, 2000:252), através do exercício da cidadania
coletiva na luta por direitos.
Do ponto de vista metodológico, enfatizamos o que a autora
chama de “repertórios de demandas e reivindicações” que se constroem a partir
da pluridimensionalidade das carências de determinada classe ou segmento
social, traduzidos na práxis coletiva de suas
lutas e articulações.
A memória das lutas de resistência está carregada de
energias utópicas norteando a práxis
coletiva na direção do não-lugar perseguido. Conformam, assim, “projetos de
utopia”, constituindo repertórios que:
(...) são uma reinvenção da realidade, têm
um ideal a atingir, vão além do possível de ser feito no momento (...) Elas
geram ideologias, movimentos e novos valores (GOHN, 2000:256).
Utopia em nossa abordagem tem, portanto, a conotação de
busca do inexistente, construção possível de uma outra forma de ser e estar na
sociedade, “horizonte de sentido”, a partir da ação coletiva. Sinaliza “outros
mundos”, perseguidos na práxis. Nos
referimos, assim, tomando como referência Lowy ao discutir a conceituação de Mannheim
(1992:13):
(...) aquelas idéias, representações, e
teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente. Têm,
portanto, uma dimensão crítica ou de negação da ordem social existente e se
orientam para sua ruptura (...).
O autor vai entendê-la como uma “visão social de mundo”-
distinta das visões ideológicas - ancorada na criticidade, recusa do existente,
subversão do presente e direção para outras possibilidades de existência.
Faria (1994:73-74) ao precisar sua compreensão de utopia,
assentada na idéia de “provisoriedade” – presente - e “factibilidade” – futuro
– vai caracterizá-la como:
(...) um horizonte de sentido para as
práticas políticas e para o alargamento dos espaços públicos da palavra e da
ação. Originando-se nas condições históricas e materiais (...) a utopia assim
concebida é a possibilidade do diverso e original, identificando o que falta ou
que não se fez nas organizações socio-econômicas e político-institucionais de
onde nascem a opressão, a exploração e a degradação da dignidade humana.
Os repertórios e projetos de utopia a que nos referimos
demarcam o significado específico de cada movimento e embasam as razões de sua
existência. Neles se revelam as ideologias que dinamizam as demandas e
reivindicações dos movimentos, a partir de um ”conjunto de crenças, valores e
ideais”, podendo ser captadas “por meio da análise dos discursos e mensagens
dos líderes e de toda produção material e simbólica dos movimentos” (GOHN,
2000; 258). O paradigma ideológico alimenta a práxis coletiva, gera uma cultura política - “viva e operante” -
que se “constrói a partir da experiência vivenciada no cotidiano”, configurando
um projeto sociopolítico ou cultural que dá sentido ao movimento, conformando
sua identidade enquanto “processo
interativo” em diferentes articulações e conjunturas e cenários sociopolíticos
(Gohn, 2000:255-256).
Vamos, na sequência, nos debruçar sobre os “novos
movimentos sociais”, buscando identificar o estatuto político, que os
caracteriza e distingue, na complexidade do contexto de sua emergência.
Os Novos
Movimentos Sociais
O golpe militar de 1964 suspendeu direitos civis e
políticos, perseguindo, encarcerando, torturando, exilando, desaparecendo e
eliminando lideranças sociais e políticas, consoante sua estratégia de garantia
da Segurança Nacional, através da implantação do terror, a interdição do espaço
público e o cerceamento das manifestações populares. Pontuamos igualmente,
referenciados em Moreira Alves (1984), uma tensão dialética existente entre
Estado e oposição, implicando em redirecionamentos e distintas institucionalidades.
Cabe-nos agora enfocar a “novidade” que emerge – pujante - no interior da
sociedade brasileira nos anos 70: os chamados “novos movimentos sociais”.
Em linhas gerais, o cenário político do período é marcado –
no plano internacional - por profunda crise do modelo kenesyano de gestão econômica, particularmente na versão do Welfare state, concomitante a um
processo cada vez mais acelerado de avanço tecnológico e – no plano nacional –
pelos sinais de esgotamento do modelo econômico e de militarização da vida
social e política, quando “novos atores sociais entraram em cena” (SADER,
1988). Emergem como portadores do desafio de “(...) promover o alargamento da
política, ou seja, a democratização da sociedade civil” (DINIZ, 1997:07). São
“novos”, portanto, em seus repertórios reivindicativos resignificados de
direitos, democracia e cidadania e na especificidade das bandeiras levantadas
na luta por igualdade social e política e o direito à diferença. Nas diversas
facetas de sua articulação, colocam na agenda política todo um universo de
carência/demandas das classes populares – “perigosas” na acepção ideológica da
construção da brasilidade excludente – e de setores importantes da classe
média, com um forte cunho de resistência à violência institucional, à exclusão
estrutural e opressão econômica.
Paoli enfatizará a categoria direitos - associada à de
cidadania - como fundamento da práxis
destes movimentos:
Os direitos – e o direito de tê-los –
impuseram-se nestes anos como a pedra angular que referenciava a novidade do
ato popular no contexto da cultura política autoritária brasileira, e que
permitia tanto a capacidade de rebelar-se contra esse autoritarismo como a de
quebrar as relações hierárquicas, desiguais de interlocução entre o cidadão
comum e o estilo dos governantes.
Com efeito, no bojo de suas lutas se manifestará a
recusa/negação da “cidadania concedida” a que se refere Sales (1994), herdada
da relação “Casa Grande e Senzala” e reforçada pelo poder dos “Coronéis“; e da
“cidadania regulada” - inaugurada pelo Populismo autoritário e tutelar do
período Getulista - a partir dos anos 30 (séc. XX), conforme a formulação de
Wanderley Guilherme dos Santos (1992). Outras vontades passam a ocupar a cena
política como negação da tutela total e absoluta do Estado ditatorial como
“vontade soberana da Nação”, reinventando a política.
Oliveira (1999: 60-61) resgata bem este caráter político da
cidadania coletiva dos movimentos sociais no Brasil, ao afirmar que:
Todo o esforço de democratização, de
criação de uma esfera pública, de fazer política, enfim, no Brasil, decorreu
quase por inteiro, da ação das classes dominadas. Política no sentido em que a
definiu Rancière (...): a da reivindicação da parcela dos que não têm parcela,
a da reivindicação da fala, que é, portanto, desentendimento em relação a como
se reparte o todo, entre os que têm parcelas ou parte do todo e os que não têm
nada.
Diniz aponta na mesma direção ao realçar esta “façanha de
fazer política” dos movimentos:
Eles não só questionam a eficácia da
cidadania liberal, como também estão construindo, ainda que nos porões da
hierarquia social, uma nova concepção de cidadania e de democracia referenciada
não só na politização do indivíduo, mas sobretudo na politização da sociedade
(DINIZ, 1997 :04).
Constituem, no dizer de Paoli (1993:25):
(...) a contraface do lado autoritário ou
desagregador da crise brasileira (...) potencial político inovador sobre a
sociedade e a cultura (...).
Potencial político, segundo a autora, que possibilitaria –
numa perspectiva utópica - “quebrar de vez com a cultura política excludente” e
repressiva e - transcender o mero Estado de Direito, descortinando
(...) os horizontes de uma democracia
constantemente renovada em sua legitimidade. É este, a meu ver, o significado
virtual dos movimentos sociais e das instituições civis e políticas que os
acompanham (1994:52).
É nos marcos da luta por direitos, através da participação
cidadã e dinamização permanente do espaço público, que se inscreve o estatuto
político dos movimentos sociais – no universo de sua heterogeneidade -
desafiados nos dias atuais pelos impasses postos pela inserção mais orgânica do
Brasil no processo de globalização da economia – a partir dos anos 90 - e de
subordinação aos interesses hegemônicos dos grandes conglomerados empresariais
e financeiros e seus corolários na vida social e política, particularmente a
erosão dos direitos numa sociedade cada vez mais fragmentada. Neste contexto,
reafirmam o campo da resistência, pois:
À semelhança de outros tempos imperiais
tenazmente enfrentados por figuras, movimentos e grupos sociais, também hoje
nos deparamos com setores da sociedade civil que se batem com valentia, de
corpo e alma, contra formas apuradas e eficazes de exploração (dimensão
econômica), de dominação (dimensão política) e de marginalização/discriminação
(dimensão cultural), características do atual contexto socio-histórico (CALADO,
2000:13-14).
Conclusão
No decorrer deste artigo, procuramos
recuperar a memória dos sujeitos políticos e atores sociais e coletivos que
conformaram em nosso país um campo de resistência à dominação, demarcando um
campo de lutas por direitos. Caracterizamos este campo de resistência como de
luta contra a opressão, recusa à exclusão e ao silenciamentos impostos, de
afirmação cidadã da política.
Contribuíram para a erosão das
bases de sustentação do modelo ditatorial.
impasses colocados pela dinâmica da crise do
capital nos planos internacional e nacional, pelos sinais de crescente
insatisfação de diferentes classes sociais (manifesta inclusive nas eleições
proporcionais de 1974), pela retomada organizativa e mobilizadora de inúmeros
movimentos sociais que aos poucos passarão a ocupar a cena política e outras
contradições que minaram as bases de sua legitimação.
Referências
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enfoque multifacetado. João Pessoa, Idéia.
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CARVALHO, José Murilo. (2001),
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CHAUÍ, Marilena. (1987), Conformismo e resistência - aspectos da
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cultura popular e cidadania na Vila
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GOHN, Maria da Glória. (2000),
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GRECO, Heloísa. (1999), Dimensões fundacionais da Anistia. Belo
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PAOLI, Maria Celia. (1993), Movimentos sociais: em busca do estatuto
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RESOLUÇÕES. Congresso nacional pela Anistia. São Paulo, 1978-1979, mimeo.
SADER, Eder. (1988), Quando novos personagens entram em cena.
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______ . (1987), Movimentos sociais
na transição democrática. São Paulo, Cortez.
SAMET, Henrique. (1993), A Construção da brasilidade excludente.
In: DOPS, a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro.
[1]* Sociólogo e Educador Popular,
docente-pesquisador trabalhando atualmente na FAFICA, em Caruaru – PE.
Professor aposentado da UFPB (João Pessoa), onde, além de atuar nas turmas de
Graduação do Centro de Educação, colaborou nos Programas de Pós-Graduação de
Educação, Sociologia e Serviço Social. Membro do Centro Paulo Freire – Estudos
e Pesquisas, tendo organizado e sido co-autor do livro Conferências dos Colóquios Internacionais Paulo Freire. vols. 1, 2
e 3. Recife: Bagaço, 2007. É autor de, entre outros, Direitos Humanos X Capital: potencializando potencializando os movimentos sociais e
organizações de base. João Pessoa: Idéia; Caruaru: Edições FAFICA, 2003.
Tem assessorado movimentos sociais populares e pastorais sociais, no Nordeste.
[2] Cfr. Sader,
Emir. A Hegemonia Neoliberal na América
Latina. In: Pós-Neoliberalismo. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1995, p.36.
[3] Formulação de
Henrique Samet : A Construção da brasilidade
excludente. In: DOPS, a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro, Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro.
[4] Referência aos
“Novos Movimentos Sociais” que
veremos na seqüência.
João Pessoa, 8 de agosto de 2008.
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