terça-feira, 12 de junho de 2018

MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS DO SEGUNDO MILÊNIO: Elementos da contribuição da Idade Média


MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS DO SEGUNDO MILÊNIO:
Elementos da contribuição da Idade Média

Alder Júlio Ferreira Caladoo


            O imaginário coletivo costuma ser mais fortemente sacudido em ocasiões atípicas. Um final de milênio bem se presta como exemplo. Foi assim, ao final dos anos 900. A encruzilhada entre dois longos períodos históricos suscita medos e evoca imagens escatológicas do Dies irae, associado ao Juízo Final. Algo como uma síndrome milenarista.
Semelhante espectro volta a rondar os contemporâneos deste final de milênio. Sombrias evocações voltam à cena e reacendem a atmosfera de medos. Quadro sensivelmente agravado, quando se sabe coincidir com um final de milênio marcado por uma situação de crise generalizada, e sem perspectiva de superação, a curto prazo...
Nas pegadas das e dos que buscam incessantemente ensaiar passos de enfrentamento e de superação à barbárie capitalista que ameaça o gênero humano e a mãe-Natureza, lanço-me também à cata de pistas humanas libertárias, recorrendo ao legado histórico do segundo milênio deixado por vários movimentos e figuras humanas protagonistas, cuja memória subversiva nos ajuda a restabelecer a força da Utopia revolucionária.
Da chamada baixa Idade Média, sobretudo do século XII ao século XV, podemos recolher muitas lições de resistência propositiva. Num período em que a nobreza e a alta hierarquia eclesiástica encarnavam a expressão de um sistema totalitário, nas diferentes dimensões da realidade social, é de se perguntar de onde suas principais vítimas extraíam tanta força para opor-lhe resistência. E, no entanto, lá estavam os Goliardos, jovens rebeldes - tidos por uns como vagabundos, por outros como subversivos da ordem social em vigor – a percorrerem os caminhos da Europa Ocidental, com seus poemas iconoclastas, com suas sátiras mordazes, mas também com suas canções de amor, todos reunidos numa coletânea: os famosos Carmina Burana... Os Goliardos fizeram da poesia sua arma principal, uma forma própria de afirmar seu espírito de liberdade, como mostram as linhas abaixo citadas de um de seus poemas, intitulado “Versos sobre o dinheiro”:

O dinheiro reina, soberano, sobre a terra/ É admirado por reis e pelos grandes/ A ordem episcopal, venal, lhe rende homenagem/ O dinheiro é o juiz dos grandes concílios/ O dinheiro faz a guerra, e quando quer, obtém a paz/ O dinheiro é que faz os processos, para que sua conclusão dele dependa/ O dinheiro compra e vende tudo, dá e toma de volta o que deu/ (...) Graças ao dinheiro, o idiota se torna incontestável falante/ O dinheiro compra médicos, adquire amigos prestimosos/ (...) torna barato o que é caro, e suave o que é amargo.” (ap. Wolff, 1995:62).

            Qualquer semelhança com situações e personagens contemporâneas não é mera coincidência! A exemplo desta, são muitas as poesias de protesto da época. Outra, por exemplo, conhecida como “Canção da camisa”, atribuída a Chrétien de Troyes, por volta de 1180, levanta seu grito contra a situação de exploração de que são vítimas as mulheres tecelãs:

“Nós estamos sempre a tecer panos de seda/ E nem por isso seremos melhor vestidas/ (...) Mas, os nossos salários enricam/ Aquele para quem nós trabalhamos.” (Le Goff, 1983:65)

            Há um leque consideravelmente amplo de grupos e movimentos medievais que apresentam variadas formas de resistência. Além dos já mencionados, há muitos outros, dentre os quais: os Cátaros, os Valdenses, os Begardos, as Beguinas, os Espirituais franciscanos, os Dolcinianos, os seguidores de Wycliffe e Huss, os Anabatistas...
            Tomemos, de passagem, o caso das Beguinas, cuja ação de resistência se dá mais expressamente no plano cultural, a exemplo dos Goliardos. Desejosas de exercitar sua religiosidade de modo alternativo, isto é, por fora do figurino ditado pelas normas das congregações religiosas, as Beguinas trataram de assegurar as condições para, como se dizia à época, “extra religionem religiose vívere”, ou seja: viver a experiência do Sagrado, fora dos quadros institucionais.
            Trataram, por conseguinte, de não aderir a nenhuma congregação, nem à vida em claustro, nem à profissão solene de votos perante a autoridade eclesiástica. Foram viver sua experiência do Sagrado junto aos pobres, a quem se dedicaram, solidárias, em serviços múltiplos, junto aos excluídos da época, junto às “ovelhas sem pastor”: os enfermos, os idosos, os órfãos, as mulheres abandonadas pelos maridos, as concubinas, as vítimas da prostituição...
            Eram mulheres livres, ciosas de sua independência, trabalhavam para se manterem. Independentemente de sua origem social - algumas vinham de condições econômicas privilegiadas -, faziam questão de manter um padrão de pobres como estilo de vida, como testemunho do caráter de sua espiritualidade, em sinal de sua solidariedade aos excluídos da época, e em protesto contra os desmandos e o monopólio clerical da pregação, ao que opunham sua ousadia de pregar publicamente.
Algumas delas se notabilizaram pela sua erudição, como poetisas, como escritoras, a exemplo de Marguerite Porète (francesa, autora de um tratado de espiritualidade escrito em vernáculo, cujas idéias lhe custaram o sacrifício da fogueira pela Inquisição, em 1310), Hadewijch de Antuérpia (a quem se atribui a fundação da língua flamenga escrita). (cf. Falbel, 1977:81; Comblin, 1998:125-129; Rezende, 1999).
Mas, importa sobretudo reter a contribuição do Movimento das Beguinas, autênticas precursoras do Feminismo.
            Séculos depois das denúncias das tecelãs inglesas, a situação das classes populares inglesas continuava tão ou ainda mais grave. Não sendo ouvidos em suas denúncias, os camponeses e os artesãos ingleses não tiveram outra saída, a não ser organizar um levante contra seus cruéis senhores, marchando sobre as principais sedes do poder feudo-monárquico-clerical, tal  como ocorreu ao Movimento dos Trabalhadores da Inglaterra, em 1381, fato precipitado pela famigerada poll-tax, uma decisão do Parlamento inglês de sobretaxar de novo a massa dos trabalhadores. Nessas incursões sediciosas, destacaram-se, entre outras, as figuras de Tylor Wat, que comandou a marcha sobre a Cantuária, e John Ball, um missionário popular ou um pregador itinerante, conhecido por seus sermões inflamados de enorme repercussão popular. Costumava reunir o povo, aos domingos, e pregar assim:

“Minha gente, as coisas não podem ir bem na Inglaterra, nem irão melhorar, enquanto as riquezas não forem postas em comum, enquanto houver nobres e servos, e enquanto a gente não se unir.” (...) “Quando Adão cavava a terra com a enxada e Eva tecia, onde é que estavam os nobres?” (Wolff, 1993:192-194).
           
            Dos rápidos elementos acima registrados acerca da contribuição dos movimentos medievais, vale a pena sublinhar alguns pontos a recolher como inspiração às lutas e aos desafios dos dias presentes.
            Um primeiro ponto que destacaria é precisamente a força revolucionária da experiência (para não dizer: da categoria) de Movimento
Esses levantes, a despeito de haverem sido duramente reprimidos, deixaram suas lições. Quando se afirma que liberdade que se preze não vem de graça, nem como dom dos poderosos, mas, sendo uma conquista, só se consegue muita luta, não é à toa que se diz. A História está aí a atestar... Isso não quer dizer que baste uma única iniciativa, nem que elas sejam todas bem sucedidas. De modo nenhum. É preciso saber que arrancar uma conquista social relevante quase sempre supõe um acúmulo de iniciativas, a maioria das quais frustradas, mas chega um dia em que uma dá certo, e compensa as frustrações amargadas e o alto preço social pago.


João Pessoa, 8 de março de 2001.

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