quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Concepções de Educação Popular e suas interconexões com a Educação de Jovens e Adultos

Uma brevíssima nota sobre o tema proposto talvez nos ajude, a nós, protagonistas de Educação Popular e de EJA, a melhor nos situarmos neste debate recorrente e que se mantém sempre em aberto: eis o intento destas linhas.
Em vão procuraríamos um conceito ou uma concepção pretensamente única de “Educação Popular” (ou de conceitos ou concepções de qualquer outro campo de saber), simplesmente porque se apresentam necesariamente polissêmicos, comportando mais de uma interpretação, de acordo com nossa visão de mundo, com nossa grade de valores, com nossa posição de classe. Assim, é toda realidade social. Situação bem captada, por exemplo, por Antoine de Saint-Exupéry, a quem alude a afirmação cunhada por Leonardo Boff, segundo a qual “Todo ponto de vista é a vista de um ponto.” Com efeito, “Eu sou eu e minhas circunstancias”, como lembrava Ortega y Gasset.
Também sobre “Educação Popular”, encontram-se concepções diversas, algunas até apresentando-se, sob certos aspectos, antagônicas. Vivendo em situações por vezes tão díspares, os grupos sociais e as pessoas acabam introjetando e reproduzindo compreensões distintas de “Educação Popular” e de EJA. A compreensão de “Educação Popular” de uma empresa da construção civil difícilmente coincidiria com a de um sindicato de trabalhadores da construção civil. Enquanto a primeira tem pressa em preparar mão de obra qualificada para suas obras, os trabalhadores, sem se negarem a obter a necessária qualificação, acentuam, antes de tudo, seu empenho em se tornarem Gente, dia após dia, em se tornarem Cidadãos, sujeitos, protagonistas de sua história. E essas perspectivas caminham juntas até certo ponto, daqui para a frente, começam as desavenças. Um lado acentua seu esforço de otimizar lucro, enquanto o outro lado luta por manter e conquistar direitos trabalhinstas e outros.
Esta e outras situações concorrem para o aparecimento de distintas concepções e práticas de “Educação Popular”, ao ponto de se dizer que há “Educação Popular”(EP) para todos os gostos: EP para o povo, em gabinetes, como um pacote a ser servido, como um prato feito, a segmentos das camadas populares, atendendo, sobretudo, aos intereses dos setores privilegiados (Mercado e Estado). Há EP feita para e, até certo ponto, com o povo, isto é: mesclando-se procedimentos e decisões tomados de cima para baixo e outros com participação popular simbólica e superficial; e há, em menor escala, EP protagonizada por membros das classes populares e seus aliados. Esta última é a que melhor corresponde ao legado da Pedagogia de Paulo Freire (e outros clásicos), que nos parece a que somos historicamente chamados a exercitar, à medida que: parte da consciencia do nosso inacabamento; impulsiona-nos a superar nossas limitações pelas vias das relações sociais (da força do mutirão); faz-nos despertar para reconhecer e exercitar nossos talentos; convoca-nos ao exercício do protagonismo cidadão; estimula o desejo de construir uma nova sociedade, alternativa à barbarie do Capitalismo; ajuda-nos a exercitar constantemente a crítica e a autocrítica; incentiva-nos à prática das artes, como excelente espaço de humanização; contribui decisivamente para o contínuo aprimoramento de nossa capacidade de perceber (ver, ouvir, sentir, intuir) coisas novas e grávidas de alternatividade, que antes não percebíamos ou mal enxergávamos; instigaa-nos a trabalhar sempre melhor nosso sentir, nosso pensar, nosso querer, nosso agir, na perspectiva de criar novas relações (anti-classistas, de gênero, de etnia, de geração, de espacialidade, de convivencia amorosa (e não de dominação) com a Mãe-Natureza, com o Sagrado, etc.
Sendo também a EJA um relevante espaço de EP, com esta são construídas múltiplas e fecundas interconexões, das quais sublinhamos algunas, de passagem: interconexões de caráter epistemológico, de natureza política e de feição pedagógica.
No plano epistemológico, ressaltamos o lugar de sujeitos, de produtores de saberes de todos os envolvidos no processo de letramento, desde a alfabetização aos momentos seguintes e ininterruptos. Aqui, formandos e formadores se fazem, ao mesmo tempo, discentes e docentes: todos aprendem uns com as outras, e compartilham seus saberes (para além da educação escolar). Não tanto a partir de temas e conteúdos externos (livros didáticos, em geral), mas a partir da produção, sistematização e discussão de suas próprias experiências (isto é, como sugere a etimologia de “experiencia”: saberes construídos coletiva e pessoalmente desde o chão do (con)vivido, da convivencia). Prática, aliás, comum aos protagonistas da Proposta pedagógica conhecida por “RELEJA” (inspirada nas pesquisas de Conelis e Salete Van der Poel), em que os textos trabalhados são produzidos pelos próprios formandos, enquanto protagonistas de seu processo formativo.
Na esfera política, essas interconexões EP-EJA emergem e se desenvolvem numa perspectiva de inventividade e de alternatividade às distintas instâncias e dinâmicas do sistema imperante, ou seja: o Capitalismo, a) seja em sua vertente mercantilista (o Mercado capitalista, com toda a sua rede de conglomerados transnacionais, grandes empresas, empreiteiras, atuando na produção de armamentos bélicos, no agronegócio, na mineração, na mercantilização da saúde, da educação, no tenebroso mundo dos paraísos fiscais e grandes bancos, até no universo religioso;
b) seja nas distintas instâncias do Estado, sem as quais o Mercado capitalista não conseguiria impor e implementar suas respectivas políticas económicas, goela abaixo da sociedade. A dimensão inventiva que deve permear essas interconexões inspira o permanente esforço, nos espaços de EP-EJA, de irem-se forjando relações alternativas à lógica do sistema hegemônico, ainda que em doses moleculares. Aqui, a palavra de orden é, como costuma insistir o Prof. Ivandro da Costa Sales: “pular fora da lógica capitalista”, desde os espaços minúsculos, no caso, no cotidiano de EJA. Ousar ensaiar passos prenhes de alternatividade, tanto na esfera da produção, quanto no âmbito político, ou ainda na grade de valores e nas relações com a Mãe-Natureza, etc.
No terreno mais diretamente pedagógico, essas mesmas interconexões se dão ou, antes, se constroem em virtude de uma convicção comum: a de que essas relações de alternatividade só se forjam no chão do cotidiano, na rotina do dia-a-dia, inclusive nos espaços de EJA. Aqui se entrelaçam as dimensões “conteudísticas” (os distintos temas e matérias trabalhados) e o jeito de trabalhá-los, o que implica um conjunto de procedimentos que, mais do que “ensinados”, devem ser testemunhados pelos distintos protagonistas envolvidos no mesmo processo formativo. Procedimentos que implicam, por exemplo:
– descobrir e trabalhar adequadamente as potencialidades dos sujeitos envolvidos no processo formativo, bem como seus limites, partindo, por exemplo, de sua história de vida e da memória histórica da humanidade. Nesse sentido, pode ser bastante fecunda a aproximação dos formandos com aspectos biobibliográficos de bons clásicos e contemporâneos;
– instigar a prática de distintas linguagens artísticas (poesía, teatro, música, pintura, escultura, desenho, fotografía, dança, etc., etc., por meio das quais os formandos vão se autodescobrindo em suas potencialidades e limites, em seu processo de humanização;
– a partir da oferta de condições favoráveis (papel do Educador, da Educadora), no incesante aprimoramento de sua capacidade perceptiva (ver melhor, agudização do ouvir, do sentir, do intuir coisas novas, alternativas), ensaiar, não apenas uma leitura alternativa de mundo, mas o exercício de ousar reescrevê-lo, a partir do chão do seu cotidiano.
Trata-se, em breve, como se percebe, de uma proposta de educação omnilateral, na acepção marxiana, à medida que persegue uma formação integral e contínua dos sujeitos implicados no mesmo processo, de modo a contemplar as diferentes dimensões em que os Humanos somos chamados a nos desenvolver. Eis por que tal processo deve implicar múltiplas interconexões, inclusive nos espaços de EJA.

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