sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Teologia da Enxada – 40 anos: Retalhos das comemoraçóes em Serra Redonda e Salgado de São Félix

1. Teologia da Enxada, uma experiência formativa de enraizamento cristão no meio dos pobres
Na segunda metade da década de 1960, nasce, no Nordeste brasileiro (inicialmente, com um núcleo em Tacaimbó – PE e outro, em Salgado de São Félix – PB), uma frutuosa experiência comunitária de formação missionária de e com jovens cristãos do meio popular rural.
Resultou da iniciativa de jovens então, seminaristas do então Seminário Regional do Nordeste, em Camaragibe, na área metropolitana de Recife, com a orientação de um grupo de formadores (Pe. José Comblin – principal sistematizador da experiência -, Pe. René Guerre, aos quais se somariam outros (Pe. Humberto Plummen, os biblistas Carlos Mesters e Sebastião Armando Soares, Pe. Eduardo Hoornaert, o teólogo Luiz Carlos Araújo e outras figuras do ITER), empenhados em ousar ensaiar uma caminho de formação alternativo ao então oferecido.
Buscou-se, a princípio, uma experiência de formação presbiteral especialmente voltada aos valores e aspirações dos pobres do meio rural. Uma formação que correspondesse melhor ao espírito e aos desafios da época, na perspectiva dos apelos do da Igreja dos Pobres, tão fortemente acenada pela Conferência de Medellín (1968).
Vivia-se, então, uma conjuntura de intensa fermentação sócio-histórica, com rebatimentos na esfera eclesial, no mundo, na América Latina e na Brasil. Era o tempo do famoso Maio de 1968, com repercussão no Brasil. Era o tempo pós-Vaticano II, de Medellín (1968). Era também o tempo do endurecimento do regime militar, no Brasil, a partir da decretação do famigerado Ato Institucional n. 5, de dezembro de 1968, que soou como “um golpe dentro do Golpe”, espalhando-se o terror, anos depois, pelo Cone Sul, com seu abominável “rumor de botas” (Eder Sader).
Sob um forte clima de apelo à renovação, na perspectiva do que se chamava à época de “opção pelos pobres”, foi tomada a decisão de se fazer um caminho diferente de formação presbiteral, em que os jovens vocacionados fossem viver em pequenos grupos rurais e urbanos, acompanhados por um formador. Desses núcleos de formação, dois eram os que se localizavam em Salgado de São Félix – PB e o que foi estabelecido em Tacaimbó – PE..
Nesses pequenos grupos, os jovens vocacionados repartiam seu tempo de formação entre o trabalho na roça, junto com a comunidade local, e os estudos dirigidos, acompanhados por um formador ou uma equipe de formadores, além do tempo consagrado à oração e às visitas às casas da comunidade local.
Além desses núcleos iniciais, cumpre assinalar um outro segmento dessa experiência de formação alternativa: a que foi organizada pelo DEPA – Departamento de Pastoral e Assessoria, criado em 1977, com o objetivo de atender a demandas de uma formação presbiteral alternativa, de jovens vocacionados ao presbitério, com o propósito e o compromisso de servir o povo dos pobres no meio rural e nas periferias urbanas. Vários professores do então Instituto de Teologia do Recife (ITER) foram convidados por alguns bispos da região a elaborarem e a porem em prática esse plano de formação, em que, em vez de os jovens vocacionados se afastarem de suas comunidades, era a própria Equipe de formadores quem se deslocava até onde viviam esses formandos, para orientarem esse processo de formação.
No espírito dessa proposta de formação, já não se tratava de ministrar aulas convencionais, como era o feitio dos cursos de Filosofia e de Teologia. Partiam, num primeiro momento, de ajudar os formandos a irem ao povo dos pobres, como seus aprendizes, a verem, a ouvirem, a sentirem o seu dia-a-dia, em casa, no trabalho, sua visão de mundo, suas necessidades, suas alegrias, suas esperanças, seus sonhos. E o faziam por meio de um registro sistemático de tais observações, que eram repassadas aos assessores. A partir daí é que os formadores tratavam de ajudá-los a aprofundarem esses achados, seja do ponto de vista dos estudos bíblicos, seja do ponto de vista do estudo mais crítico da realidade social.
Fecunda experiência formativa que resultou na formação de vários jovens, depois ordenados padres, em Crateús – PB (Pe. Eliésio Santos), em João Pessoa (Pe. Luiz Couto, Frei Anastácio Ribeiro), além de jovens europeus, estudantes de Teologia que também foram ordenados padres (em João Pessoa: Pe. João Maria Cauchi, ordenado antes do DEPA, e Pe. Dario Vaona, aquele de Malta, o segundo da Itália, ambos dedicando seu trabalho missionário a serviço dos pobres do Nordeste. Por essa mesma proposta de formação do DEPA, passaram outros jovens, como Zé Vicente, Crateús, cuja contribuição de compositor das CEBs e da Igreja na Base é amplamente reconhecida.
A partir de 1981, aquela primeira experiência formativa, que se deu inicialmente nos primeiros núcleos de Salgado de São Félix e Tacaimbó, destinada a jovens que se sentissem chamados a um estilo de padre com formação específica para atuarem junto aos pobres do campo, foi melhor sistematizada, sobretudo após o retorno do Pe. José Comblin, exilado por cerca de oito anos no Chile, depois de sua expulsão do Brasil, em 1972.
Em 1980, após um marcante encontro avaliativo da experiência, durante os “anos de chumbo”, encontro que se realizou com o conjunto dos protagonistas, em Itamaracá, foi retomada a experiência, em 1981, desta vez no Avarzeado, uma pequena área rural, de instalações precárias, entre canaviais, localizada no município de Pilões.
A partir de 83, a experiência sofreria alteração. O Vatiacno, após uma primeira aprovação pelo Papa Paulo VI daquela proposta de Seminário Rural, esta foi desautorizada pelo mesmo Vaticano, agora sob o pontificado do Papa João Paulo II, sob o pretexto de que não correspondia à “Ratio Studiorum” (a estrutura curricular de Filosofia e Teologia seguida pela Igreja).
Desaprovação que, a despeito do impacto, teria – de modo aparentemente paradoxal – um efeito muito mais frutuoso: a transformação da proposta, de um “Seminário Rural” para um Centro de Formação Missionária, igualmente destinada a receber e preparar jovens do meio rural para missionarem no mundo rural. Após um cuidadoso processo seletivo, os jovens combinavam trabalho na roça (como ajuda à sua própria sustentação), estudos de Bíblia, Realidade Social e outras matérias diretamente ligadas aos requisitos de ação missionária no mundo rural.
Nessa experiência formativa, foram acolhidos dezenas de jovens do mundo rural, procedentes da vários Estados do Nordeste, além do Pará, de Goiás… O tempo de formação era de seis anos. Os dois primeiros anos, passavam no Centro de Formação Missionária (hoje, Fundação Dom José Maria Pires), em Serra Redonda. Nos dois anos seguintes, eram acolhidos em comunidades rurais, para terem uma formação mais inserida no ambiente próprio do povo dos pobres, sendo acompanhados sistematicamente pela Equipe de Formadores, que para lá se deslocava, para avaliar e propor tarefas formativas. Nos últimos dois anos, os jovens formandos seguiam de volta às suas comunidades de origem, com a missão de ajudarem a fundar novas comunidades e de se tornarem seus animadores.
Com o passar do tempo, a experiência foi sendo enriquecida, sob vários aspectos. Um deles foi a diversificação da proposta, em razão da diversidade de perfis de formandos. Uns sentiam-se chamados à vida contemplativa; outros aspiravam ser missionárias num contexto de família, optando pelo casamento; outros desejavam a vida itinerante de peregrinos; foi também fundado, por demanda óbvia àquela altura, o Centro de Formação Missionária Feminino – o das Missionárias do Meio Popular, com sede em Mogeiro, PB.
Foram igualmente criadas várias associações, com o objetivo de conferir àquelas experiências um cunho de relativa autonomia perante as constantes alterações de humor, conforme a linha do vigário ou do bispo da ocasião. Foram fundadas a Ação da Árvore, com uma séria proposta formativa de cinco anos para pessoas do meio popular, com vocação missionária; a Associação dos Missionários e Missionárias do Campo; a Associação dos Missionários e Missionárias do Nordeste, assim como a criação das Escolas Missionárias nos Estados da Bahia, Tocatins, Piauí, Paraíba e Pernambuco, todas com o acompanhamento direto do Pe. José Comblin e uma equipe de professores e professoras.
Ainda dessa mesma caminhada, fazem parte pessoas – alguns presbíteros, alguns diáconos, religiosas inseridas e leigos e leigas que se acham espalhados pelo Nordeste, no campo e nas periferias urbanas e nas favelas, fazendo parte, do seu jeito próprio, dessas mesmas “correntenzas subterrâneas”, das quais, de vez quando, alguns traços vêm à tona, como em ocasiões como esta. São, em breve, parte viva integrante de uma imensa rede de experiências da chamada “Igreja dos Pobres” ou “Igreja na Base”.
2. Programação da Comemoração dos 40 anos da Teologia da Enxada
Passados quarenta anos, a diversificada e frutuosa experiência da Teologia da Enxada acha-se expandida pelos Estados do Nordeste e fora do Nordeste. No interior do Pará, por exemplo, mora a família de Raimundinho – que, ao lado de Maurício, Francisco, Sitônio, José Florêncio, Benedito, João Araújo, fizeram parte da primeira Turma do Seminário Rural, ainda em Pilões – PB. Outros muitos viriam. São, com efeito, centenas de jovens e de famílias hoje protagonistas dessa multiforme experiência. Ocasião propícia para a) se fazer memória da experiência; b) ensaiar sobre a mesma um olhar avaliativo e de perspectiva; c) celebrar a experiência com espírito ecumênico. É claro que esses momentos não se deram de modo estanque. Havia um entrelaçamento dinâmico desse espaços.
Foi com esse espírito pensada e definida a programação do Encontro.
Dia 9/10: acolhida dos participantes do Encontro e abertura com a celebração presidida por Dom José Maria Pires e bem participada pelos que lá se encontravam. Outros e outras participariam nos dias seguintes.
Dia 10, pela manhã: relatos rememorativos dos primeiros tempos da experiência. Relatos feitos, de forma criativa e bem-humorada, por quatro dos oito ou nove componentes dos primeiros núcleos da Teologia da Enxada: Frei Enoque Salvador, Ivan Targino, João Batista Magalhães e Raimundo Nonato Queiroz. Além destes, também fizeram parte dos primeiros núcleos: José Diácono, João Almeida, João Firmino e “Raumundo”.
E o que foi relatado? Vamos recuperar alguns pontos de cada um.
Frei Enoque Salvador – que reside, atualmente, em Poço Redondo – SE, município do qual é Prefeito. Temperou com bom humor seu relato. com a refinada arte de contador de histórias do povo dos pobres: bom enredo, tom de voz, gestos, movimentação do corpo. Falou por cerca de meia hora. Contou a vida simples que as comunidades levavam em Tacaimbó. Contou como eram organizadas as festas do padroeiro, antes e depois da chegada do grupo de seminaristas. Também, os conflitos com as autoridades, as lutas sindicais, o trabalho.
Ivan Targino mora em João Pessoa, onde é professor de Economia no PPGEc. da UFPB. Sente-se profundamente marcado pela experiência vivida, nos primeiros tempos da Teologia da Enxada. Lembra a vida dura da enxada, sobretudo para ele, de classe média, tendo que enfrentar as lides do campo. Lembra, com muito senso de humor, episódios pitorescos. Dá especial acento na voz, quando lembra o profundo testemunho evangélico das pessoas simples do campo, na região de Salgado de São Félix, como o de um agricultor que se privava de vender o leite de suas vaquinhas, para fornecê-lo às famílias pobres da região.
Raimundo Nonato Queiroz – Desde o início do funcionamento do CFM, em Serra Redonda, aí reside (com sua esposa Cida e seus dois filhos, juntamente com a família Madruga-Gilma e suas duas filhas). Integrou o núcleo de Tacaimbó – PE. Da rica experiência comunitária em Tacaimbó, com a ajuda de Marlene, destacou animação da organização popular, sindical, a animação da luta partidária, inclusive com candidato próprio – o Prof. Antônio Guedes, um dos professores de Realidade Social, no Seminário Rural – encabeçava a chapa da Comunidades. Recordou como as caminhavam juntas as comunidades de três dioceses: Caruaru, Garanhuns e Pesqueira.
João Batista Magalhães – Reside atualmente no Sítio Catita, em Colônia Leopoldina – AL, mais precisamente no Mosteiro Fraternidade do Discípulo Amado. Fez parte do núcleo de Salgado de São Félix, juntamente com Ivan Targino, José Diácono, João Almeida. Convidou Socorro para destacar com ele alguns pontos daquela experiência: a importância da animação trazida por aquele grupo de seminaristas, as novenas, a força da Palavra, a animação para a Juventude e para toda a comunidade da região, a vida de trabalho na roça.
À tarde do mesmo dia 10, os participantes foram distribuídos em cinco grupos, para trabalharem cinco oficinas temáticas: Movimentos Sociais, Política, Igreja, Família e Formação. Cada oficina contou com a participação de uma média de 20 pessoas. No dia seguinte, foram socializados os resultados das oficinas, sintetizados nos seguintes pontos e desafios:
– Movimentos Sociais: o desafio de construir a unidade, para além de suas bandeiras específicas; o enfrentamento da mídia convencional precisa ser fortalecido pela busca e socialização de fontes alternativas impressas ou na internet.
– Política: sente-se o esgotamento dos partidos convencionais. Os partidos perdem sua força transformadora. É preciso ir atrás de formas alternativas de se fazer Política. Quem ainda continua militando nos partidos é instigado a ir percebendo seus limites.
– Igreja: o grande desafio é manter firme a prioridade de ir às ovelhas desgarradas. Às pessoas mais afastadas que as paróquias não atingem. Trabalho de visitas às casas do campo e das periferias urbanas, em atitude de escuta e de solidariedade. Ajudar o pessoal a participar da organização em comunidades.
– Família: destacou-se o desafio do acompanhamento das crianças e dos jovens. O desafio de a família intervir positivamente na sociedade. Não limitar o trabalho da família só ao lar. Acompanhar o que se passa na sociedade.
– Formação: Não podemos nos conformar só com uma história do passado e ficarmos vivendo da saudade. É preciso calibrar rumo e refazer caminhos. Isso passa por um processo de formação que deve ser priorizado.
(Obs. Os resultados foram apresentados na parte da tarde do Domingo.)
Dia 11 – Manhã:
A bela manhã do Domingo foi iniciada com uma celebração de profundo significado, no contexto daquele Encontro: o convidativo ambiente (ao ar livre): o sol, a brisa, as plantas, os pássaros, a disposição das pessoas em volta, o clima de acolhimento, o fazer memória, as penetrantes leituras, a partilha da Palavra, a inspirada e profética homilia feita por Dom Sebastião Armando, bem dentro do espírito da Teologia da Enxada, em breve, todo o processo daquela abençoada celebração.
Em seguida, foram anunciadas por João Batista três falas que buscariam fazer, cada qual a partir de seu acompanhamento, uma leitura da experiência da Teologia da Enxada: Dom Sebastião Armando, Frei Carlos Mesters e a Irmã Maria Emília Ferreira.
Dom Sebastião Armando – Seu acompanhamento da caminhada da Teologia da Enxada se deu por meio de sua atuação no DEPA – Departamento de Pastoral e Assessoria. Ao lado dos demais integrantes da Equipe do DEPA, tratou de sintetizar a a experiência formativa do DEPA, bem na linha da Teologia da Enxada. O DEPA recebia apelos de alguns bispos do Nordeste (Dom Antônio Batista Fragoso, bispo de Crateús; Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba…), em busca de um processo formativo para alguns de seus seminaristas, vocacionados ao Presbiterado, sem que estes tivessem que se afastar da convivência em suas respectivas comunidades.
Uma formação que já não se fizesse no estilo convencional – de aulas expositivas, numa sucessão de “disciplinas” teológicas, recheadas de filigranas com pouco ou nulo interesse para os povo dos pobres. Aceito o convite, a Equipe passava a acompanhar esses vocacionados, para quem a Equipe propôs uma experiência alternativa de formação. Já não se tratava mais de lhes ministrar aulas convencionais, a partir de componentes curriculares habituais. Em vez disso, a Equipe lhes propunha, de início, um sistemático exercício de observação da vida do povo: casa/família, trabalho, alimentação, relações com a natureza, religiosidade, lazer, etc.
À medida que eram estimulados a ver, a ouvir e a sentir em sua convivência com o povo dos pobres, tratavam de registrar em seus cadernos. Nos encontros seguintes, a Equipe, cada membro a partir de sua especialização, iria ajudá-los a fazer uma leitura crítica daqueles registros com os desafios da realidade econômica, política, cultural, bem como a confrontá-los com a Palavra de Deus, daí buscando recolher pistas de ação pastoral e de intervenção a serem partilhadas na realidade de suas comunidades.
Eram poucos os formandos dessa experiência alternativa. Dom Sebastião Armando lembra que sua esposa Madalena costumava observar, meio interrogativa, a quantidade considerável de formadores para o processo formativo de tão poucos vocacionados… Ele e a Equipe, contudo, estavam convencidos do acerto da proposta: apostar na qualidade do processo formativo. Aposta que, tempos depois, se confirmaria exitosa, pelos frutos colhidos. Nesse processo formativo, foram ordenados presbíteros Pe. Eliésio Santos, de Crateús; Pe. Luiz Couto, de João Pessoa; Frei Anastácio Ribeiro, da CPT da Arquidiocese da Paraíba. Pela mesma formação, passaram igualmente figuras como Zé Vicente, de Crateús, hoje um festejado compositor, apreciado por tantas comunidades espalhadas pelo Brasil,
Frei Carlos Mesters – Sua leitura da experiência da Teologia da Enxada se fez a partir, em parte dos contatos freqüentes com a Equipe do DEPA, e, em parte, pela sua atuação no CEBI, do qual é um dos fundadores.
A exemplo da proposta feita ao DEPA, lembrou que, por intermédio de um de seus confrades carmelitas, Frei Domingos Fragoso, foi informado de que, em Crateús, havia uma vigorosa experiência de CEBs, que recebia todo o apoio do seu bispo, Dom Antônio Fragoso. As comunidades de Crateús tinham sede de um estudo orante da Bíblia. Certa vez, Frei Domingos informou ao irmão bispo da atuação do biblista Frei Carlos Mesters. E sugeriu que o irmão o convidasse. “Se ele vier prá cá com interesse em ensinar, que não venha. Se for para aprender com o povo dos pobres daqui, será bem-vindo.” Foi feito o convite.
Pensando em ajudar as comunidades, em sua busca de maior intimidade com a Sagrada Escritura, Frei Carlos preparou umas duzentas páginas escritas a mão. Lá chegando, comunicou sua intenção de curso. “Não, Frei Carlos, não é bem isso que a gente quer, não.” Resultado: teve que abandonar todo o seu esquema prévio, e partir das demandas levantadas pela própria comunidade local.
Foi numa dessas ocasiões, em Crateús, que Frei Carlos Mesters vai escrever um de seus mais marcantes textos, Seis Dias nos Porões da Humanidade, que a Vozes publicou em 1977. Anotações escritas em apenas dois dias, de densa experiência de escuta, resultante de uma visita pastoral à comunidade do povoado de Areia Seca, em Crateús.
Frei Carlos concluiu sua profética reflexão, remetendo-nos à última frase do Antigo Testamento, do livro de Malaquias: “Eis que Eu vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia de Iahweh, grande e terrível. Ele fará voltar o coração dos pais para os filhos, e o coração dos filhos para os pais, para que eu não venha ferir o país com anátema.” (Ml 3, 23-24).
Irmã Maria Emília Ferreira – Atualmente, reside em São Paulo. É membro da Congregação das Cônegas de Santo Agostinho. Da Teologia da Enxada, ela foi uma das primeiras pessoas a encontrar, ainda quando adolescente a estudar em colégio de freiras, ao Pe. José Comblin, então recém-chegado a Campinas – SP, quando era capelão do referido colégio. Anos mais tarde, a Irmã Maria Emília acompanharia mais de perto em Serra Redonda e em outras cidades, a caminhada da formação missionária.
Sua fala parte de quem mais de perto acompanhou as origens da Teologia da Enxada, que continua acompanhando. Desde as experiências vivenciadas nos dois núcleos iniciais e, em seguida, a do Seminário Rural e do Centro de Formação Missionária.
Preferiu situar sua fala a partir de sua formação acadêmica como Psicóloga, focando as lições que recolhe da aproximação com as pessoas consideradas loucas. Estas que dão seu recado, e se vão. Quem puder entendê-lo, muito bem. Não tratam de impor-se, nem de impor suas idéias. Vivem mais na gratuidade da vida.
Seu jeito próprio, embora pouco ou em nada apreciado, é portador de sinais. É preciso fazer-nos um deles ou delas para captarmos seus ensinamentos. Não dá para fazer uma leitura mecanicista e imediatista do que nos dizem. Precisamos decodificar suas palavras, seus gestos. Nem sempre somos capazes.
Algo semelhante se dá com a caminhada dos protagonistas da Teologia da Enxada. Vivem em outro mundo. São considerados como estranhos, loucos mesmo, em relação à grade valores predominantes. Os loucos nos ajudam a compreender melhor por outra ótica.
Na tarde do Domingo, o primeiro momento foi reservado à apresentação dos resultados vindos das oficinas. Já os apresentamos, antes. Em seguida, passamos a escutar a reflexão de Dom José Maria Pires, uma das principais figuras de referência da Teologia da Enxada, dada sua reconhecida participação avaliada como decisiva na evolução da mesma experiência.
Dom José Maria Pires – Bispo emérito da Arquidiocese da Paraíba, hoje residindo em Minas Gerais, animando uma comunidade paroquial – donde a alusão ao “bispo que virou padre…” A ele se devem a acolhida e o entusiástico apoio ao processo formativo da Teologia da Enxada. Já era bispo, quando foi transferido par João Pessoa, em 1966. Não demorou a entrosar-se bem com seus colegas bispos, como Dom Helder e outros da região. Também, não tardou a ir se enraizando na vida do povo dos pobres, e a compreender suas lutas e esperanças, e a com ele solidarizar-se, em distintos momentos. Um deles foi por ocasião do episódio de Alagamar.
Quando soube da presença maciça de uma força policial lá fincada, com o objetivo de proteger uma propriedade, de lá expulsando antigos posseiros, não hesitou em procurar seus colegas bispos Dom Helder Câmara (Olinda e Recife), Dom Francisco Austregésilo Mesquita (Afogados da Ingazeira), Dom Manuel Pereira (de Campina Grande), para irem em defesa do povo. E, ao chegarem, não hesitaram em tomar, cada uma, uma vara, e pôr-se a tanger o gado que estragava a lavoura dos pobres posseiros.
Dom José também houve por bem manifestar seu carinho pastoral por algumas figuras do episcopado brasileiro e da caminhada da Igreja dos Pobres, destacando em cada uma delas elementos de sua trajetória profético-pastoral, bem como sua contribuição à caminhada da Igreja dos Pobres: Dom Helder, Dom Fragoso, Dom Francisco Austregésilo, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, Pe. José Comblin, Irmã Agostinha Vieira de Melo, entre outas.
Ao rememorar traços fundamentais da experiência da Teologia da Enxada, em especial a partir da fundação do Seminário Rural e do CFM, compartilhou momentos significativos desse esforço coletivo, com suas tentativas, com suas conquistas e algumas frustrações que, depois, se tornariam frutuosas, a exemplo da desaprovação por Roma da continuidade do Seminário Rural, em seguida transformado na abençoada experiência do Centro de Formação Missionária.
Muito relevante, a iniciativa conjuntamente tomada, de dar seqüência à caminhada, tomando em consideração o novo contexto,com seus velhos e novos desafios. Após a fala de Dom José Maria, e um breve intervalo, João Batista coordenou esse momento de caráter decisivo. Diante dos desafios apresentados, inclusive por ocasião das oficinas, e reforçados nas falas dos diferentes convidados, como prosseguir, daqui para a frente?
Tomaram-se algumas decisões, em plenário:
– que a cada dois anos seja realizado um Encontro geral, para avaliar, celebrar e reorientar passos da caminhada;
– que uma Equipe de doze pessoas ficaria com a tarefa de se reunir e esboçar um plano de formação para os novos tempos.
Ainda no Domingo à tardinha, chega o Pe. José Comblin. Por conta de desencontro de calendário – já se havia comprometido em participar, em Salvador, do Congresso “Transformar a Missão” -, só lhe foi possível chegar àquela altura. Ainda à noite do Domingo, já estava a postos, fazendo sua primeira reflexão para os participantes.
Nem todos puderam participar a tempo inteiro. Uma dessas pessoas foi a missionária Mônica Muggler, uma das formadoras do Centro de Formação Missionária Feminino, em Mogeiro, do qual resultaria a bela experiência das Missionárias do Meio Popular, que Mônica também anima.
Dia 12 – Salgado de São Félix
Por volta das 9 horas, de diferentes localidades, lá iam chegando os participantes a Salgado de São Félix. De início, eram convidados a se dirigirem a uma casa simples, numa rua descalça, onde foram acolhidos pela família local os seminaristas iniciantes da experiência da Teologia da Enxada: João Batista Magalhães, José Diácono, Ivan Targino, entre outros.
À medida que iam chegando, as pessoas eram acolhidas com muita alegria pelo pelo pessoal da casa, bem como pelos vizinhos. Lá estava preparado um saboroso e surtido café da manhã para os participantes. Quanta alegria daquela gente simples, em especial quando abraçavam aqueles seminaristas, hoje já de cabelos brancos! Alegria também pelo reencontro de figuras tão caras, como Dom José Maria, Pe. José Comblin, Dom Sebastião Armando, Frei Carlos Mesters, João Batista, Ivan Targino, José Diácono, Raimundo Nonato…
Após a visita àquela casa, que tanto impacto causava sobre os visitantes, e após o café que lá foi servido, os participantes foram chamados a se posicionar na rua, preparando a procissão. Antes, porém, foram chamadas a ficar na calçada em frente da casa aquelas figuras de referência da caminhada, cada uma se apresentando e dizendo uma palavra de saudação aos presentes.
Em seguida, caminhamos todos em procissão, em direção à Matriz, onde foi concelebrada – inclusive por alguns padres da caminhadas ordenados por Dom José Maria – a Missa de encerramento. Matriz lotada. Gente em pé, pois era grande a multidão, e não havia assento para todo o mundo. Uma celebração compartilhada, na emoção e nas imagens fortes. Coube ao Pe. José Comblin fazer a homilia. Ele já havia saudado brevemente os participantes, antes da procissão. Tinha evocado alguns avanços que o povo em caminhada havia feito, e por isso estava celebrando. “O nosso povo poderia ter conquistado mais, se tivesse gritado mais forte.” Nas mínimas ocasiões, o profeta não perde oportunidade. Também na homilia, apesar da dificuldade de ouvi-lo, para quem estava mais distante do altar (dificuldade de som mais empolgação das pessoas). Mas, em uma palavra, tratou de lembrar que não valia a pena ficar na saudade do passado. Importa seguir caminho, participar das lutas presentes. Tornar vivo e atual a mensagem de Jesus, ajudando a fortalecer a caminhada libertadora do Povo de Deus.
Quanta emoção, já nas despedidas da celebração, ouvirmos o Hino de Alagamar, executado pelo Coral formado por pessoas de Alagamar! Se pessoas como Dom José não costumam verter lágrimas, em semelhantes ocasiões, não descartaria que naquela ocasião tivesse feito…
Do Encontro participaram pessoas de distintas denominações, além dos católicos e católicas, vindas da Bahia (vários grupos da Associação dos Missionários e Missionárias do Campo); de Sergipe (idem); de Alagoas (de Colônia Leopoldina – AL); de Pernambuco (o bispo anglicano Dom Sebastião Armando, vários membros do Grupo de Peregrinos e Peregrinas do Nordeste, membros da Igreja Batista de Olinda, além da rápida passagem de alunos e alunas da FAFICA, no sábado); do Maranhão; do Piauí; de São Paulo; de Minas Gerais…
Uma programação criativa e envolvente. Feita em mutirão, com o protagonismo de todos.
O encerramento se deu com a confraternização num almoço simples e saboroso, preparado com carinho pela Comunidade de Salgado de São Félix.
A ESPERANÇA DOS POBRES VIVE!
João Pessoa, 20 de outubro de 2009
Obs. Para ver fotos do Encontro, digitar a seguinte página:
http://picasaweb.google.com.br/torquatope/CFM#

(21-10-2009)

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