Especialmente em razão do seu potencial crítico-transformador, vê-se, de vez em quando, a Educação Popular de referencial freireano, alvo de manobras neutralizantes ou cooptativas por parte do sistema hegemônico, ora por meio dos sedutores apelos do seu Mercado, ora por meio de iniciativas do seu Estado. Não é, pois, a primeira vez, nem será a última. Os contextos de crise do Capitalismo, a esse propósito, despontam como especialmente favoráveis, como sucede atualmente.
Tempos conturbados, esses! A velhos desafios, ainda mal ou não resolvidos, agregam-se novos, de igual ou superior complexidade. A par de conquistas memoráveis, algumas delas hoje sob graves ameaças pela voracidade do Capitalismo, sucessivas crises aprofundam as desigualdades sociais inerentes ao seu modo de produção, ao seu modo de consumo e ao seu modo de gestão societal amplamente hegemônicos, ainda que em crise de difícil reversão. Se, com efeito, há cinco anos – como acaba de denunciar OXFAM, acreditado órgão não-governamental -, 388 pessoas detinham uma fortuna correspondente aos bens de metade da população mais pobre do mundo, eis que, hoje, tais pessoas não passam de 62! O fato horrendo é que apenas 1% dos mais ricos vem concentrando mais riqueza do que 99%! Situação esdrúxula! Resulta daí que o mundo – e o Brasil não é uma ilha… – enfrenta nova iminência de crise aguda semelhante à que se deu em 2008, em consequência de uma insana conjunção de fatores, tais como: desaceleração da economia chinesa, acentuado descenso do preço do barril de petróleo, reedição da sufocante política monetária dos Estados Unidos, com grave incidência nas moedas dos países ditos emergentes, continuidade do cenário explosivo da economia europeia, entre outros. Enquanto isso, o Brasil segue, em 2016, mergulhado numa de suas mais graves crises, econômica, ética, política, hídrica, sanitária, educacional, de segurança pública, tributária e, não menos, de nefasta política de endividamento, em que sua dívida pública demanda cerca de 500 bilhões de Reais só de juros…
Percebe-se, assim, que o sistema moribundo ainda encontra forças para retardar o nascimento do novo sujeito histórico, carregado de alternatividade. Nesse quadro por vezes confuso, o próprio nascituro, não raro, atraído pelos sedutores apelos e caminhos do sistema moribundo (fundamentalmente composto por seu Mercado e respectivo Estado), hesita em irromper do velho útero societal. Entre avanços e recuos – hoje em triste descenso das forças mais vocacionadas a protagonizar tais mudanças, consola-nos observar que parte dessas forças, parteiras do novo, segue firme, em suas “correntezas subterrâneas”, apesar e para além de suas insuficiências, a lançarem sementes de alternatividade, quanto ao rumo e quanto aos caminhos de alternatividade.
Resulta, pois, normal, neste quadro sócio-histórico, especialmente em tempos de mudança de época, a disputa de paradigmas, em todos os campos. Não é diferente em relação à Educação Popular. Por mais reconhecido que se mostre, seu legado – inclusive por correntes que, expressamente ou não, a pretendem superada, não deve ser algo petrificado, monolítico, até em respeito a suas mais venerandas figuras referenciais, Paulo Freire inclusive, (para mencionar apenas uma figura brasileira da fecunda tradição latino-americana e caribenha da Educação Popular).
É inerente à boa vertente (digo “boa” para distinguir de correntes de Educação Popular feitas para todos os gostos, até contra o povo…) sua consciência de inacabamento, donde o empenho em constante renovação. Mas, não uma renovação qualquer, refém do gosto da moda, cujo “novo” desponta, desde a origem, desprovido de qualidade socioambiental e dos mais caros fundamentos ético-políticos e epistemológicos da Educação Popular. Seu empenho se dá na busca incessante de, partindo de um diagnóstico objetivo de sua realidade concreta, avançar em direção a patamares superiores, por meio das transformações necessárias, vale dizer: em direção a um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, em harmonia com a Mãe-Natureza. Não faz parte dessa gloriosa tradição contentar-se com mera diagnose. Busca incessantemente enfrentar e superar os desafios de toda ordem, em busca de rumos e caminhos compatíveis com seus postulados.
A Educação Popular digna dessa fecunda tradição latino-americana e caribenha, sempre aberta a dialogar com outras tradições, em bases de igualdade e respeito mútuos, segue sua caminhada, atenta e respeitosa de sua densa memória histórica, comprometida com os processos de libertação de suas gentes, empenhada em ousar passos de alternatividade que dêem razão e sentido à sua utopia em permanente construção, marcada por sua incessante busca orientada em direção a um horizonte transformador de humanização do ser humano como um todo e de todos os seres humanos, em harmonia com a Natureza e com toda a comunidade dos (demais) viventes, que se faz processualmente (portanto, historicamente situado e datado, em meio aos entrechoques conjunturais/estruturais), de cuidadosa costura integrativa dos múltiplos fios de sua pujante diversidade. A tal enunciado de marcas da Educação Popular latino-americana e caribenha cabem algumas explicitações.
= A Educação Popular parte da consciência de inacabamento do conjunto dos humanos, inclusive de sua condição de educandos-educadores – À diferença dos demais animais, que já nascem programados, os humanos vêm à luz incompletos, inconclusos, mas vocacionados a se completarem, ao longo de sua existência, ou, ao menos, a se tornarem menos imperfeitos. Eis por que não lhes basta “sentir” seus limites, mas também tomarem consciência de sua inconclusão, como condição de se porem em busca incessante da superação processual dos seus limites.
= Tem consciência de sua relatividade e de seu caráter processual – A trajetória existencial dos humanos se dá em meio a situações contraditórias, em meio aos entrechoques históricos, não se tratando de algo nada linear, mas sempre nos marcos da relatividade. Seu longo aprendizado nunca acontece de uma vez para sempre ou na totalidade. Vai se construindo, dentro das condições históricas que lhe são dadas. O conhecimento que vai adquirindo, em sua trajetória, revela-se sempre parcial, limitado, provisório, e portanto sempre mutável, de acordo com a consciência de realidade que vai adquirindo, por meio dos mais distintos conhecimentos – mitológicos, filosóficos, artísticos, científicos e outros. E cada um desses conhecimentos também resulta relativo, conforme a bela expressão utilizada por Antoine de Saint-Exupéry – “Todo ponto de vista é a vista desde um ponto.”
= Busca superar suas insuficiências por meio da relacionalidade – Tomando consciência de seus limites – sem o que não seriam capazes de realizar adequadamente seu processo de humanização -, os humanos se põem em busca de superação de suas insuficiências, à medida que, rompendo seu isolamento, se põem em relação social. É no seio da sociedade (comunidade, família, associação, etc.) – e só por esta via -, que os humanos vão sendo capazes de ir superando seus limites, suas insuficiências. Como também lembra Paulo Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, todos nos educamos em comunhão.” Trata-se, porém, de uma superação nunca feita uma vez para sempre: ela vai acontecendo, ela vai se fazendo, ao longo da vida. Alguns desafios são aqui superados, mais adiante outros vão surgindo…
= Exercita-se como eterna aprendiz de suas raízes históricas, razão por que tanto cultiva sua memória histórica – Faz parte dos protagonistas da Educação Popular nutrirem-se continuamente da rememoração histórica de seus feitos, dos seus antepassados e dos acontecimentos-chave de sua trajetória. E aqui não se trata de nenhum culto ao saudosismo, à reverência do passado pelo passado ou coisa que o valha. O propósito central é, ao mergulhar em suas raízes históricas, buscar delas extrair lições para o presente, consciente de que debalde se pretenderia reeditar os passos do passado para resolver os enigmas e desafios presentes. Trata-se de se inspirar do seu espírito, como fonte renovadora e revitalizadora para o enfrentamento exitoso dos desafios de hoje.
= Nela têm lugar privilegiado seus clássicos e referenciais contemporâneos – Do saudável exercício de sua memória histórica, ao lado das lutas e feitos dos antepassados, também faz parte seu apreço aos clássicos e contemporâneos – mulheres e homens – a quem muito deve de sua construção. A Educação Popular dispensa especial apreço aos clássicos, em geral, e em especial aos latino-americanos e caribenhos. Autores tais como Marx, Rosa Luxemburgo, Gramsci, José Martí, José Carlos Mariátegui, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Rosa Maria Torres, Oscar Jara, Carlos Rodrigues Brandão, Ernani Fiori, Carlos Núnez Hurtado, João Bosco Pinto, Balduino Andriola, Ana Maria Saul, Paulo Rosas, Osmar Fávero, João Francisco de Souza, Ivandro da Costa Sales, Cornelis e Salete Van der Poel, dentre tantas outras figuras referenciais.
= Articulando os tempos da vida (passado-presente–futuro),os protagonistas da Educação Popular cuidam de adequar suas tarefas educativas presentes tanto ao passado quanto ao futuro (por força de sua utopia)- Sempre atentos e vigilantes aos múltiplos sinais da realidade, em que estão inseridos, tratam de enfrentar velhos e novos desafios, buscando articular adequadamente lições do passado (dos feitos, das lutas, dos escritos de seus antepassados, clássicos e contemporâneos, ante as urgências e dilemas atuais, com vistas a compatibilizar suas ações éticas, políticas e pedagógicas, de modo coerente com o sentido de suas apostas. Entendem que não lograrão alcançar horizonte de Liberdade que não se faça por caminhos igualmente de liberdade.
Nesta mesma linha, não raro, surgem obstáculos não desprezíveis, sobretudo, por se ter que marchar à contracorrente, seja do Mercado, com toda a sua carga de sedução, seja do Estado, dadas as artimanhas e estratégias de cooptação oferecidas… E não são poucos os que se deixam por eles seduzir… Eis por que as forças e os sujeitos comprometidos com essa linha de Educação Popular empenham-se em avançar com e para além dos seus clássicos, exercitando continuamente seu permanente estado de busca, por meio da leitura e interpretação dos sinais dos tempos (paradigma indiciário).
Sucede que essa busca incessante não se faz em “céu de brigadeiro”. Dá-se em meio às mais complexas adversidades, inclusive ao- interno de seus protagonistas, parte dos quais, por vezes fascinada por apelos inebriantes apresentados pela aliança Mercado-Estado, se lança com tal avidez de pretensa “renovação”, que extrapola os limites dos fundamentos da Educação Popular, contribuindo, objetivamente, antes para a sua desfiguração do que para a sua renovação. Aqui, também, não se pode excluir a incidência de projetos pessoais ou de pequenos grupos, ainda que defendidos em nome da Educação Popular. Vejamos alguns exemplos desses riscos de desfiguração da Educação Popular, no atual contexto, por meio de algumas ponderações e questionamentos:
* Não é de hoje que o Estado investe maciçamente – e vai seguir investindo – na formulação de projetos e programas de “Educação Popular”. Nada a objetar, por inútil (afinal, isto faz parte de sua estratégia de cooptação de setores das camadas populares e seus ditos representantes), quanto à sua função de controlar o sistema de ensino, em todas as esferas de poder e modalidades. O problema reside do lado das forças e sujeitos que se querem comprometidos com a Educação Popular na linha aqui tratada. Por outro lado, sendo, a Educação Popular “um modo de atuar, de sentir, de pensar e de comunicar” (Ivandro Sales), sua prática se dá, em tese, nos mais distintos espaços, inclusive nos espaços e instâncias adversos, tudo dependendo do modo como aí se enfrentam as práticas e estratégias das forças adversárias. Faz sentido, para as forças protagonistas de alternatividade, apostarem nas instâncias governamentais (e do Mercado) como formuladoras, como planejadoras, como executoras, como avaliadoras idôneas da Educação Popular?
* Como manter com o Mercado e com suas instâncias governamentais uma posição crítica, de modo a evitar sucumbir as suas propostas?
* Como se posicionar frente ao sistema hegemônico, tendo que com ele se relacionar, sem sucumbir às suas estratégias?
* Será que não se tem apostado abusivamente em iniciativas aliancistas (ou de “parceria”) com as instâncias governamentais, ainda que sejam sobejamente conhecidos seus frutos? Até que ponto seguir-se investindo as melhores energias criadoras em sucessivas e estéreis “conferências” (nacionais e internacionais) não tem atendido mais a interesses ou projetos pessoais ou de pequenos grupos, ainda que feito em nome da Educação Popular?
* Diante de tantos sinais, será mesmo coerente com a Educação Popular seguir priorizando os espaços governamentais ou é chegada a hora de reaver a necessária autonomia, condição de exercício de Educação Popular, na perspectiva das classes populares?
* Por que, em vez de seguir apostando no que não tem dado certo, não nos voltarmos a ensaiar passos de alternatividade, por meio de uma proposta de Educação Popular, concebida, planejada, executada, avaliada junto com o conjunto de seus protagonistas do campo e da cidade, em todas as suas fases, e de modo a privilegiar seu processo organizativo e seu processo formativo?
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