quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Mudança de época: impasses, desafios, prospectivas…

Nesses últimos anos, tenho andado mais antenado, mais atento ao que se tem chamado de “mudança de época”. Sem qualquer apego a expressões de efeito, tenho percebido que esta nada tem a ver com modismos ou com uma certa síndrome do novo como sinônimo apenas do mais recente, sem atinar para a qualidade desse “novo” na acepção de alternatividade à ordem imperante. À medida que busco – e não estou só, claro! – compreender a natureza da crise societal em curso, no Brasil e alhures (e venho investindo nisto, desde a segunda metade dos anos 90), e perseguir possíveis saídas, tenho percebido que a coisa é mais complexa do que as meras alterações conjunturais de décadas e até de séculos precedentes. Em suma, percebia que já não se tratava de simples mudanças próprias de uma dada conjuntura. Trata-se, de fato, de uma “mudança de época”! Esta pode até comportar – e comporta, a meu ver – elementos também conjunturais, mas suas raízes mais fundas devem ser buscadas alhures.
Sucede que, a despeito de reiteradas afirmações de que os impasses (econômicos, políticos, culturais) que hoje enfrentamos, já não mais dizem respeito, como costumava acontecer a diferentes conjunturas, a um mero contexto de mudança, a um tempo em que se demanda mudança aqui e ali, o fato é que, mesmo ao interno das forças historicamente encarregadas de protagonizar mudanças estruturais, as ações destas seguem dando-se como se não estivéssemos diante de desafios próprios de uma mudança de época. Não se tem dado conta devidamente de que se trata de algo mais grave, característico apenas de certas épocas, na história. A nossa é bem típica desse desafio de gigantescas proporções.
O propósito dessas linhas é de realimentar a discussão desses desafios, buscando problematizar rumos e caminhos que teimosamente seguem sendo perseguidos, a despeito de cujos resultados se mostrarem reiteradamente inócuos, não merecendo o devido enfrentamento. Problemas e mais problemas se acumulam cujas saídas só podem ser encontradas graças a um novo modo de produção, um novo modo de consumo, um novo modo de gestão de sociedade, que se façam em harmonia com o Planeta, com os humanos e com toda a comunidade dos viventes. No esforço de contribuir para essa discussão, cuidamos de tecer essas linhas em três momentos: 1) partimos de constatações – e até abstratamente reconhecidas, isto é, sem o devido enfrentamento; 2) cuidamos de refrescar nossa memória histórica, atendo-nos a exemplos emblemáticos de ontem, e que remanescem molecularmente em dezenas de experiências espalhados pelas “correntezas subterrâneas”; 3) partindo de elementos já presentes nessas experiências moleculares grávidas de alternatividade a essa ordem imperante, em busca de avançar para além delas, potencializando-as para o enfrentamento exitoso de tantos novos desafios, não bastassem os velhos que seguem a desafiar-nos…
I) Uma crescente sucessão de sinais de esgotamento do modelo atual…
Impulsionados pela gravidade e frequência dos fatos, em grande parte, protagonizados pelas principais forças políticas de referência (partidos, sindicatos, movimentos populares), em parceria com setores econômicos mais vorazes, finalmente uma pequena parte das forças que se proclamam de esquerda, emite sinais de seu despertar, de forma ainda tímida, da gravidade e da magnitude dos problemas em que andam envolvidos. De um lado, observa-se, a justo título, certa desconfiança em relação à eficácia antes atribuída a estratégias e procedimentos tradicionais de se enfrentar velhos e novos desafios. Por outro lado, porém, resistem a reconhecer que, feitas bem as contas, ainda é muito pouco o que tem mudado significativamente a este respeito. E aqui, não hesitam em usar e abusar do seu recorrente álibi: comparar com governos precedentes, evitando, a todo custo, comparar 1) com as efetivas potencialidades do País (sexta maior economia do mundo: isto não é pouca coisa!) e 2) comparar com seus propósitos de origem (ensaiar passos rumo a uma nova sociedade, projeto fundamental do PT, da CUT e de outros sujeitos coletivos do final dos anos 70/começos dos anos 80.
Na esfera econômica, por exemplo, por mais que se digam “contrários” ao modo de produção capitalista, na prática, não raro, se tem apelado para sucessivos remendos intra-sistêmicos. Isto feito, não apenas pelos setores dominantes – é seu papel, afinal de contas! -, mas também por amplas parcelas das forças históricas que costumam protagonizar mudanças expressivas. Não é raro deparar-nos com segmentos de movimentos sociais arraigadamente a reforçar as instâncias governamentais, sob a alegação (falaciosa, ilusória!) de que é preciso tentar mudar o sistema, desde suas instâncias internas. “Vamos mudar porque nós, lá, faremos diferente”… E não poucos se apressam a “mostrar” a eficácia dessas estratégias, apontando conquistas recentes, não alcançadas por governos precedentes. Aqui “esquecem” alguns fatos incômodos:
– o de que tais conquistas devem merecer reconhecimento, aplausos, mas estes seriam bem maiores, caso o Brasil não fosse a sexta maior economia do mundo, vale dizer, dotado de um potencial raríssimo, em matéria, por exemplo, de biodiversidade com seus extraordinários biomas; de terras agricultáveis em grandes extensões; de singulares potencialidades hídricas; um subsolo cobiçadíssimo… Se países como tantos da África ou da Ásia conseguem alcançar semelhantes conquistas de caráter compensatório (superestimadas, em vista do nosso potencial), é claro que o impacto do nosso reconhecimento teria que ser bem maior. Mas, diante das nossas potencialidades econômicas…
– “esquecem-se”, também, especialmente, de conferir o tanto do bolo orçamentário que tem sido destinado às camadas populares em comparação com as privilegiadíssimas fatias concedidas, de mil e uma forma, ao grande capital, em especial o setor financista… Basta examinar a evolução da dívida pública (ver várias análises feitas por Maria Lúcia Fatorelli, a este respeito)… Não é só. Que tal conferir outras formas de apropriação escandalosa das riquezas do País, tais como: renúncia fiscal, sonegação fiscal, a profundamente injusta estrutura tributária, a ausência de tributação das grandes fortunas, a remessa de lucros… De tudo isto somado resultará a conclusão de que, comparado o este total com a soma dos “mensalões”, dos “petrolões” e similares, estes passam a ser comparativamente insignificantes…
Do ponto de vista mais diretamente político, o cenário não é tão diferente. Ao contrário, acha-se dinamicamente articulado. Aqui encontramos a mesma resistência em reconhecer os crescentes estragos e em mudar de atitude. Inclusive da parte de forças historicamente comprometidas com profundas mudanças. A despeito de sucessivas evidências, no Brasil e fora dele, em flagrante oposição às apostas teimosamente reiteradas, eleição após eleição, segue-se investindo pesado nessa via, com a agravante de um alinhamento “tático” (?) com as instâncias governamentais, “novos” espaços que abrigam não poucos dirigentes de movimentos sociais populares, sindicais… Mais: diferentemente de outros tempos, em que se zelava pela autonomia, tem sido cada vez mais explícito o apoio às forças palacianas e seus aliados, com suas estratégias e táticas bizarras, expressão e resultado de um aviltante aliancismo… Um dos resultados: a renúncia, na prática, a uma pauta própria de lutas, estas substituídas por um aguerrido empenho em seguir a pauta ditada pelos aliados…
No plano da cultura, igualmente, há sinais evidentes de perda de rumo e caminhos… e desvios. Se a árvore se conhece pelo fruto, o que se pode esperar de forças sociais, antes comprometidas com mudanças substantivas, hoje já quase nada mantendo de suas iniciativas organizativas, formativas e de mobilização, tais como: fundação e alimentação de núcleos, de círculos de cultura, de formação alternativa, de alternância de cargos e funções, de autofinanciamento, entre tantos outros instrumentos próprios dessas forças.
O amplo abandono dessas práticas acabaria levando – como vem levando – a muitos dos vícios organizativos presentes, bem como da renúncia a seguir buscando rumos alternativos (novo modo de produção, novo modo de consumo, novo modo de gestão de sociedade), em harmonia com o Planeta, com os humanos e com a comunidade dos viventes, por meio de caminhos compatíveis com esse rumo.
Uma formação alternativa continuada, por exemplo, nos teria alertado para os constantes sinais de esgotamento, no Brasil e no mundo, do modelo democrático representativo, não importando quem sejam os ocupantes palacianos. Nem as recentes graves ocorrências, no Brasil e fora do Brasil recentes ou ainda em curso, a evidenciarem o crescente fosso – irrecuperável – entre ditos “representantes” e os cidadãos comuns – nem isto tem ajudado a muitos a despertarem do seu torpor. A tendência lastimável segue sendo a de jogar todas as fichas no atual sistema. A ausência de formação continuada, da parte das bases e dos dirigentes, implica, por exemplo, a acomodação à estrutura organizativa das sociedades por meio dos Estados nacionais. Deixa-se de ver, por exemplo, que estes são entes históricos. Fundados no início da Modernidade, há cerca de cinco séculos, cumpriram – bem ou mal – com sua função. Hoje, porém, já não são mais capazes de responder aos desafios da atualidade. Mas, quem encontra tempo de pesquisar, de ousar dar passos em direção ao algo alternativo? Qual partido, qual sindicato ou mesmo quais movimentos sociais vêm investindo nisto como prioridade?
II. Para ensaiarmos passos de alternatividade, não precisamos partir da estaca zero: refrescando nossa memória histórica…
“Mudança de época”, dizíamos, não é modismo nem produto de fascínio de jogo de palavras. Vivemos um tempo de mudanças generalizadas de caráter estrutural, seja na esfera econômica, seja na esfera política, seja na esfera cultural (paradigmas seculares são afetados). Tudo (ou quase tudo) precisa ser reinventado: a organização da produção, o estilo de vida, o modo de organizar as sociedades, as relações com o Cosmo. Isto, é claro, não se faz numa década. Demandará, talvez, séculos! Como se deu em semelhantes épocas. Ocorre que, para que se ouse dar passos nessa direção, há que se começar desde já, ou tais mudanças não se darão jamais. Aqui não se parte da estaca zero. Já contamos com elementos inspiradores, graças a experiências moleculares recentes e atuais, que nos inspiram a dar passos para frente. E não se trata, tão pouco, de pretender-se voltar às experiências do passado. Estas são revisitadas no sentido tomado por Eduardo Galeano, que costuma lembrar que “o passado tem muito a dizer ao futuro.” Com efeito, recolhemos, sim, de experiências do passado recente, inclusive, vários elementos promissores, dos quais aqui destacamos, de passagem, aqueles de caráter organizativo, os de feição formativa e os de ordem mobilizadora.
Elementos de caráter organizativo – Ao buscarmos, desde já, ensaiar passos de alternatividade ao “sistema totalitário mercantil” em curso, em incessante busca de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo, de um novo modo de gestão de sociedade, em harmonia com a dignidade do Planeta, dos Humanos e de toda a Comunidade dos viventes, a forma organizativa assume aí particular relevância. E aqui, não precisamos, como acima dito, partir da estaca zero. Vale a pena, a esse respeito, recapitular pontos de alternativa contidos em experiências moleculares recentes e atuais, observáveis nas “correntezas subterrâneas”. Por ex., qual era a forma organizativa normalmente seguida no que se convencionou chamar de “Igreja na Base”?
Convém relembrar, de passagem, o significado da expressão “Igreja na Base”. Antes dela, uma outra que teve – e tem – muita acolhida, e significando a mesma coisa – é a expressão “Igreja dos Pobres”, cunhada pelo Papa João XXIII, ainda na primeira metade dos anos 60. Ao lado desta expressão (“Igreja dos Pobres”), também se tem trabalhado com “Igreja na Base”, expressão nascida na América Latina, sob a irrupção de Medellín (1968), de Puebla (1979), para designar uma rede de experiências eclesiais (em especial, no interior da Igreja Católica, mas também aparecendo em outras Igrejas cristãs, em especial as componentes do CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), fortemente influenciadas pela Teologia da Libertação, e que compreendia um vasto conjunto de organizações eclesiais protagonizadas pelas bases. Nelas fazem-se presentes leigas, leigos, religiosas, religiosos, diáconos, padres, bispos, pastores. Dentre elas, podemos destacar:
* as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base, acontecimento que irrompe na América Latina, em especial no Brasil, em meados dos anos 60, compreendido como “Um novo jeito de ser Igreja” ou, de modo mais ousado, na expressão atribuída a Dom Pedro Casaldáliga, “Um novo jeito de toda a Igreja ser”.
* as PCIs – Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular -, protagonizadas por Religiosas (contando também com Religiosos, em menor quantidade), que, rompendo profeticamente o conforto e a segurança dos conventos, dos colégios e casas assistenciais, preferiram (e, ainda que em menor número, ainda preferem) experienciar a insegurança dos pobres, compartilhando solidariamente suas condições, suas lutas, suas dores e suas esperanças. Foram iniciadas na primeira metade dos anos 60;
* várias Pastorais Sociais: CIMI (Conselho Indigenista Missionário, fundado em 1972); CPT (Comissão Pastoral da Terra, fundada em 1975); CPO (Comissão Pastoral Operária, fundada em 1976); PJPM (Pastoral da Juventude do Meio Popular, fundada em 1978); Pastoral dos Pescadores, Pastoral da Mulher Marginalizada; Pastoral Universitária, Pastoral da Criança e Adolescentes…
* alguns movimentos eclesiais tais como: ACR (Ação dos Cristãos no Meio Rural, sucessor da JAC – Juventude Agrária Católica), o MTC – Movimento dos Trabalhadores Cristãos, dentre outros, são igualmente parte componente da mesma “Igreja na Base”.
Ressalvadas suas respectivas especificidades, que pontos organizativos comuns apresentam tais experiências? Destaquemos as principais:
– investem no protagonismo do conjunto de seus participantes, e não apenas de um ou de um pequeno grupo. Quando se reúnem, preferem a circularidade do ambiente, isto é, dispõem em círculo as cadeiras, de modo a que todos se sintam na roda, vendo-se e ouvindo-se uns aos outros, sem necessidade de um “chefe” a ditar-lhes ordens;
– apostam no funcionamento do coletivo em pequenos grupos, comunidades, conselhos ou núcleos. Estes agem, ao mesmo tempo, de modo autônomo e interconectado aos demais núcleos e respectivas instâncias. Aqui se discutem seus problemas, são tomadas e encaminhadas deliberações das quais todos se sentem corresponsáveis;
– há o hábito do rodízio periódico de ocupantes de cargos de coordenação: em geral, não se permite que as mesmas pessoas se perpetuem em seus respectivos cargos ou funções. Aposta-se na alternância por força da qual, quem tem cargo de coordenação, uma vez cumprido seu período, volte à base, e quem é da base seja eleito para a coordenação;
– há o cuidado de manter uma caixa comum, que ajude no cumprimento dos compromissos organizativos, sem precisar depender apenas de instâncias oficiais;
– na escolha de delegados e delegadas para representar o núcleo perante outras instâncias, cultiva-se o cuidado de que o delegado/a delegada, antes de seguir adiante, exponha o que vai defender na outra instância, no sentido de que seja fiel ao que foi decidido coletivamente em assembleia, e não o faça por conta própria.
III. AVANÇAR PARA ALÉM DAS EXPERIÊNCIAS MOLECULARES
As experiências acima ilustradas constituem apenas um aperitivo, um convite para ousarmos avançar para além delas, em busca de responder, à altura, aos gigantescos desafios próprios de uma mudança de época. A despeito de seu caráter molecular, as experiências acima apenas tangenciadas ajudam-nos a avançar para além delas, à medida que, partindo delas, ousarmos ensaiar passos mais decisivos, prenhes de alternatividade ao atual modo de produção dominante. Neste tópico, tratamos de focar três aspectos desafiantes: a) Por um novo modo de produção; b) Por um novo modo de consumo; e c) Por um novo modo de gestão de sociedade, feito em harmonia com o Planeta, com os Humanos e com toda a Comunidade dos viventes.
a) Por um novo modo de produção – Os exemplos já mencionados, ainda que de passagem, são suficientes para nos convencer do caráter perverso e irrecuperável do modo de produção capitalista, tal sua natureza destrutiva das condições de vida no Planeta, ferindo de morte a humanidade e a comunidade dos viventes, à medida que:
– trata-se de um sistema em que o lucro vem acima da vida;
– de um sistema em que o Planeta, os Seres Humanos, os demais viventes e todos os bens da natureza são convertidos em mera mercadoria;
– em que os Humanos se tornam coisificados – tanto os que oprimem quanto os que são oprimidos; tanto os exploradores quanto os explorados; tanto os que marginalizam quanto os que são marginalizados.
Convencidos, pois, de que tal sistema não nos serve, que outro somos instados a tentar?
Tendo em vista que o atual modo de produção se faz pela inseparável combinação entre o Mercado capitalista e o Estado e respectivas instâncias, resta-nos ousar ensaiar passos na construção de um novo modo de produção alternativo a esta ordem imperante.
Um primeiro passo para tanto é reconhecermos que tanto o Mercado capitalista quanto o seu Estado são experiências históricas que, a exemplo de tantas outras, tiveram sua gênese, seu desenvolvimento, durante determinado período, e que depois passaram a dar sinais de caducidade. Não podem e não devem ser mais tomados como experiências ou como entes eternos.
Não sendo este, o modo de produção que nos satisfaz, o quê dizer de um modo de produção alternativo? Que características deveria comportar? Que organizações deveria oferecer? Que tipo de formação teria a ver com ele? Que perfil de militância ou de militantes ou protagonistas deveria trabalhar?
Quanto ao aspecto organizativo, ao contrário do atual, o novo modo de produção alternativo há de se fundar, não em gigantescas instâncias ,como as das grandes corporações, os grandes empreendimentos estatais, os projetos faraônicos, tais como : gigantescas hidroelétricas, obras de transposição e similares, todas profundamente nocivas ao meio ambiente, a diversas populações indígenas quilombolas de pescadores, de camponeses, de povos tradicionais. Os grandes projetos de mineração constituem uma prova cabal dos profundos estragos sócio-ambientais, observáveis no Brasil, na América Latina e em diversas partes do mundo. Sob a falácia ou alegação da ideologia do progresso a qualquer custo, os grandes beneficiários – senão os únicos – são as grandes empresas, as grandes corporações transnacionais conluiadas com os dirigentes dos respectivos Estados.
Ao contrário de semelhantes estratégias logísticas e infra-estruturais, um novo modo de produção alternativo ao que aí está, funda-se, antes, na aposta em projetos propostos, discutidos e deliberados pelo conjunto da sociedade, a começar pelas populações mais diretamente envolvidas. Estas, a começar pelas melhores tradições indígenas alimentadas pela cultura do Bom Viver (“ Buen vivir”), tendem a investir em pequenos projetos em profunda harmonia com seu Meio Ambiente, até porque vivem um estilo de vida marcado pela alegria da convivência fraterna cujas necessidades materiais se acham comparativamente a distâncias astronômicas das “necessidades” características da cultura do consumismo própria do modo de produção capitalista. Aí se vive feliz com pouco, ou mais precisamente, com o suficiente para uma vida humana plena e em harmonia com o Planeta.
Num modo de produção alternativo que buscamos construir, o foco organizativo brota do movimento que parte das pequenas comunidades, dos conselhos populares, dos núcleos de trabalho, dos ciclos de cultura, organizados a partir de sua autonomia que se dá, ao mesmo tempo, de modo interconectado com suas respectivas instâncias regionais, nacionais, internacionais, nas diversas esferas da realidade ( econômica, política e cultural).
b)por um novo modo de consumo – Um modo de produção alternativo não se restringe apenas ao processo de produção. Este vem organicamente articulado a um modo alternativo de consumo, bem como a um novo modo de gestão societal. Impraticável é tentar um novo modo de produção que não se apoie organicamente num novo modo de consumo. Vale dizer: o necrófilo gigantismo dos empreendimentos e dos projetos capitalistas acabam sendo a “única” maneira de viabilizar o atendimento das crescentes demandas tomadas como “necessidades” criadas, incorporadas e reproduzidas
( portanto, “naturalizadas”) pela grande maioria do conjunto da sociedade. Observe-se, ainda, que o atendimento regular e crescente a tais “necessidades” é alimentado e realimentado de forma crescente por alguns expedientes de grande alcance, não apenas econômico, mas também político e cultural, tais como:
– crescente degradação das condições sócio-ambientais – Quem pode calcular os impactos gigantescos, tantos deles irreversíveis, produzidos pelos projetos megalômanos (grandes hidrelétricas, grandes projetos de mineração, grandes obras de transposição, etc.) sobre o Meio Ambiente: biomas, florestas, rios, fontes, aquíferos, animais, plantas, etc, bem como sobre as populações direta ou indiretamente atingidas? E aqui não se trata de nenhum “achismo”: basta ouvir ou ler os relatos de numerosos representantes de populações atingidas, por ocasião de muitos seminários de avaliação organizados por várias organizações e movimentos sociais do campo e da cidade.
– a cultura do desperdício – Não bastassem os impactos destrutivos das grandes obras de infraestrutura do capital e do Estado, importa avaliar ainda os profundos estragos, a eles associados, decorrentes de uma cultura do desperdício. Tem sido esta uma prática habitual de grandes parcelas da população, incentivadas inclusive pela propaganda de mercado, seja de forma expressa, seja de forma subliminar. Ou não é assim que se passa com a água? Em plena crise hídrica (e não propriamente por falta de água mas sobretudo pela má gestão dos bens hídricos), será aceitável, que no Brasil, o índice de desperdício de água alcance escandalosos 37%? E o quê dizer do índice de desperdício de alimentos? Como encarar o desperdício de energia a cada momento observável, quase por toda parte?
– cultura do endividamento como resposta à síndrome do consumismo – A ideologia do progresso, marca registrada do capitalismo, tem necessidade de apelar para o consumismo coletivo e individual generalizado. Pela lógica da publicidade e da propaganda, difundem-se as “necessidades” do Mercado, ávido de lucro e mais lucro, como se fossem necessidades reais para os diferentes públicos, do infantil ao do idosos, atraindo especialmente o público de adolescentes e jovens. Cresce sua cobiça pela aquisição de bens supérfluos. Sob a pressão da moda comandada pela mídia comercial e pelas próprias redes sociais, não poucos se sentem “obrigados” a vestir ou a usar produtos da moda, podendo ou não podendo adquiri-los. Não podendo, o próprio Mercado lhes vem em socorro para supostamente “facilitar” a vida, e haja cartões de crédito e de débito em “n” prestações. Quando mal esperam, eis que se acham enforcados de dívidas… Tanto melhor para o Mercado.
– resultados funestos da cultura do consumismo – Esse consumismo desenfreado torna nossos jovens e adultos mais felizes? Não é o que se constata. Ao contrário, deles o que mais se escuta é uma sucessão de queixas e de males, dos quais a depressão desponta como um dos resultados mais expressivos, ao lado de dezenas de doenças que superlotam clínica, hospitais, etc.
c) por um novo modo de gestão societal – Organicamente articulado ao modo de produção e ao modo de consumo, também irrompe um novo de gestão de sociedade, que já não se faça sobre os fundamentos e os valores do Mercado e do Estado e suas respectivas instâncias. Quê traços comportaria um novo jeito de gerir as relações sociais econômicas, políticas e culturais que almejamos construir, já a partir de experiências moleculares recentes ou em curso?
Um dos traços distintivos desse novo jeito de gestão inspira-se fundamentalmente na recuperação e aprofundamento do sentido do Público, hoje praticamente desfigurado, em que pese a ocorrência abusiva do termo “público” (escola pública, universidade pública, hospital público…). Não raro, sob tal adjetivo, escondem-se mil formas de privatização dos bens e serviços públicos. Com frequência, utilizam-se tempo, serviços, recursos de instituições ditas públicas para atendimento de interesses de pessoas ou de pequenos grupos, em prejuízo da própria sociedade, especialmente das classe populares. Tão difusas têm sido essas práticas que se tornam, com frequência, “naturais” ante parcelas majoritárias da população. Isto é bem traduzido pelo famigerado “jeitinho brasileiro”: tirar vantagem em tudo – das filas ao trânsito; dos atendimentos a conquista desleal de privilégios.
Tais práticas são expressão e produto das próprias instâncias organizativas do Mercado e do Estado. Este também funciona como um suporte essencial para viabilizar o cumprimento das políticas econômicas e sociais ditadas pelo Mercado. Salvo exceções, os aparelhos do Estado( o Executivo, o Legislativo e o Judiciário) funcionam nesta direção. Assim também a estrutura partidária e a estrutura sindical, sempre com raras exceções.
Há de se perseguir um novo modo de gestão de sociedade, começando por apropriar-nos de experiências exitosas recentes e em curso, ainda que de forma molecular, à medida que
– formos capazes de investir nossas melhores energias criativas numa cultura consultiva, ou seja, baseada em conselhos populares autônimos e interconectados as suas diversas instâncias regionais, nacionais e internacionais;
– formos capazes de criar mecanismos que combatam a tendência de hierarquização da velha sociedade em que cabe sempre a um chefe ( individual ou pequeno grupo) apontar soluções e caminhos a serem assumidos pelo conjunto da sociedade, permitindo, ao contrário, o exercício de protagonismo a o conjunto de cidadãos e cidadãos;
– formos capazes de fazer valer o mecanismo de alternância de cargos e funções;
– formos capazes de alimentar uma cultura de autonomia financeira para assegurar o cumprimento das atividades, sem dependência de forças estranhas ao controle interno da sociedade;
– formos capazes de assegurar permanentemente ao conjunto dos membros de nossa sociedade uma formação integral do ser humano como um todo e de todos os seres humanos, num esforço permanente de exercitar, de forma integrada, memória histórica, práxis e utopia.

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