O título deste texto corresponde ao tema proposto pelo MPA (e acolhido de bom grado), na esteira de outras inquietações pertinentes, como objeto de reflexão e ação pelos protagonistas do Movimento. Acolho a proposta como um mote do Repente, e, a partir dele, cuido de propor um roteiro de problematização e de provocação ao tema, com o propósito de suscitar pontos que me parecem relevantes e oportunos, no atual cenário da sociedade brasileira, em especial, de suas forças transformadoras das quais o MPA segue buscando fazer parte, de modo crítico-propositivo.
Para qualquer movimento popular que se preze, resulta vital a questão do método de organização, de formação e de intervenção na realidade social, bem como na trajetória de seus membros. Por isso mesmo, seu método não deve ser entendido como algo à parte de sua visão de mundo, de suas referências teóricas. A isto buscarei estar atento, nas linhas que seguem. Vou distribuir esta reflexão em três tópicos necessariamente interconectados: rápidas considerações sobre alguns desafios da atualidade para as forças de transformação social; que tipo de formação melhor corresponde ao perfil das forças sociais, a exemplo do MPA, em sua luta por uma sociabilidade alternativa à que aí está; e que tipo de método melhor se adequa ao trabalho de base, nessa perspectiva.
1. Alguns desafios que rondam nossa atualidade
Não é segredo que, mais do que uma época de mudança, estamos vivendo uma “mudança de época”, com profundas repercussões, não apenas nas mais variadas esferas da realidade, como também comportando distintos sentidos que a expressão pode implicar ou que podemos atribuir-lhe. Tal fenômeno impacta, por certo, todo um modo de produção, de circulação, de consumo, de gestão de sociedade e de convivência com a Mâe-Natureza. Suscita profundos impactos decorrentes da reestruturação produtiva como da reorganização dos processos de trabalho. Aqui recomendo vivamente o vídeo/documentário “da servidão moderna”, acessível por Youtube).
Tal “mudança de época” compromete mortalmente, pelo menos a médio prazo, o lugar atribuído aos Estados nacionais, durante séculos, como se fosse a única forma possível de se organizar uma sociedade que se queira alternativa à ordem vigente. Por tabela, afeta mortalmente a lógica da democracia representativa ou a objetiva abdicação de protagonismo cidadão, com consequência direta na organização partidária convencional, etc. Mas, sobretudo, aponta para a inarredável necessidade de se reinventar o fazer-Política, inclusive por meio de uma dinâmica alternativa de organização societária, alternativa à lógica do Mercado capitalista e do Estado. E não apenas do Estado capitalista: os Estados socialistas, com raríssimas exceções, têm dado sobejas provas de sua incapacidade de fazer a transição para uma sociedade sem classes. Como dizia a famosa personagem do filme “Queimada”, José Dolores, “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.”
Não se diga que isto seja devaneio. Lembremo-nos do velho alerta, de que, fazendo jus e uso de sua condição de inventividade, os seres humanos estão à altura dos desafios que lhes são historicamente colocados. Basta que observemos as lições da História, em distintas épocas. Por que abdicar de nossa vocação histórica à Liberdade, ainda que tal projeto nunca se complete de todo satisfatoriamente? Aqui me vem o belo poema de Eduardo Galeano sobre a linha do horizonte, que nos anima a seguir caminhando.
Ousar o novo (no sentido do alternativo), e já ensaiando passos concretos nessa direção, desde que impregnados de sementes de alternatividade, constitui tarefa irrenunciável do processo de humanização, sobretudo quando se tem certeza da caducidade dos caminhos que vimos trilhando, há tanto tempo. Até podemos não saber bem como chegar à sociedade que almejamos, mas não nos resignamos a tentar, a ensaiar passos, nessa direção, inclusive cometendo erros. Só acerta quem está disposto a buscar, buscar e buscar, sempre, recolhendo lições dos próprios equívocos aos quais não escapa quem ousa caminhar por caminhos ainda não trilhados…
Aqui me restrinjo especificamente ao desafio do esforço de construção de uma nova sociabilidade, alternativa ao Capitalismo, e que faça jus aos sonhos mais generosos da humanidade, em relação amorosa com a Mãe-Natureza. Trato de sublinhar algumas tendências equivocadas, mas que seguem amplamente hegemônicas, inclusive entre forças e organizações de base de nossa sociedade, buscando aqui fazer com elas um contraponto, do ponto de vista de quem aposta numa sociabilidade alternativa ao Capitalismo, mas, por isso mesmo, a ser construída alternativamente, não apenas no que concerne ao seu horizonte, mas também na práxis cotidiana dos seus protagonistas, convencidos de que horizonte de Liberdade se alcança apenas por caminhos também de Liberdade. Vejamos, então, algumas dessas teses equivocadas ainda amplamente hegemônicas.
– Só alcançamos uma nova sociedade, após a derrocada da sociedade presente – Em situação ordinária, tal afirmativa não mereceria grande estranhamento. Com efeito, o advento de uma nova sociabilidade é incompatível com o presente modelo de sociedade. Estamos de acordo quanto à necessidade de superação do atual modelo de sociedade. Um modelo alternativo comporta, portanto, o enfrentamento do tipo atual de sociedade e a sua derrocada. Onde, então, aparece nossa crítica? No fato de que, à falta de se trabalhar criativamente no desenho da nova sociedade, como condição indispensável para a verdadeira superação da velha sociedade, acaba-se, não raro, adiando o necessário esforço de visibilizar, já de agora, a expressão de sinais concretos de alternatividade no estilo de vida dos protagonistas. Ou seja: não vale tudo deixar para depois da derrocada do velho regime, para, só a partir de então, cuidar-se de construir os novos valores, as novas atitudes, compatíveis com a nova sociedade.
Seria demasiado tarde! Esse filme já vimos… Ou a busca de nos tornarmos – incessantemente e desde já – novas mulheres e novos homens começa a ser visibilizada, a cada momento, por atitudes compatíveis com a nova sociedade, ou em vão lutamos por uma nova sociabilidade. São fartos os exemplos que bem ilustram, ao longo de décadas de experiências de sociedades socialistas, que não conseguiram fazer a transição para uma sociedade sem classes (e, portanto, sem Estado). E já não convence o argumento de que isto não se deu, graças apenas a fatores externos, por mais que reconheçamos o peso efetivo destes. Em outras palavras: em vão nos entregamos à tarefa de derrubar a atual sociedade, sem que, ao mesmo tempo, nos empenhemos, dia após dia, no esforço ininterrupto de nossa própria transformação em novos homens, em novas mulheres.
– O exercício crítico é a condição suficiente de formação da boa militância – Eis outra importante afirmação que segue sendo requisito essencial: é inconcebível pretender-se uma sociabilidade alternativa, preterindo-se a formação crítica dos protagonistas. Por outro lado, tomada isoladamente, tal afirmação implica reducionismo, sob vários aspectos. Os exemplos nos falam de modo mais convincente. Quem de nós não conhece militantes intelectualmente bem dotados, com admirável capacidade de desmontar as armadilhas do sistema capitalista. Mas, quando se trata de investir em atitudes propositivas ou mesmo em saídas, mostram suas fragilidades: são críticos mas não propositivos. Mais. Exercitar com competência a crítica, sem o simultâneo e contínuo exercício da autocrítica resulta comprometer – ou até negar – a qualidade da crítica. Exercitar a crítica, com postura ética, implica, antes mesmo de lançar a crítica “ad extra”, colocar-nos, primeiro, como alvo da referida crítica.
– Contra não importa o quê, temos que defender os nossos incondicionalmente – Aqui reside uma fonte relevante de reiterados e graves equívocos. Sucumbir a uma postura de defesa incondicional, sob a alegação de que cumpre ser fiel aos “nossos”, seja qual for a situação, implica um grave equívoco ético, que tem provocado constantes estragos ético-políticos, em não poucos episódios protagonizados por figuras do campo de esquerda. Para se defender “os nossos”, em qualquer situação, vale tudo, tudo é permitido. Neste caso, a própria causa revolucionária resulta preterida por tal postura. Acaba-se assegurando fidelidade aos amigos, mesmo estes encontrando-se em situação eticamente indefensável, e, por via de consequência, abandonando-se a própria causa revolucionária, que tem na verdade sua cláusula pétrea: “Só a verdade é revolucionária”.
– “Uma vez dirigente, sempre dirigente” – Por razões óbvias, isto é posto em prática, mas pouco ou simplesmente não verbalizado. Pelo contrário, até se ensaia “falar-se” em rodízio, mas de boca para fora. Na prática, coordenadores/dirigentes de há dez, vinte anos ou mais seguem compondo a direção, ainda que em cargos variados. Cria-se, com isto, objetivamente, uma casta privilegiada, em nome do bom andamento do movimento… Um dirigente, se já foi base algum dia, isto ficou para trás definitivamente, sob as mais distintas alegações.
– A sobrevivência do nosso movimento passa pelo recebimento de recursos de outras fontes – Na trajetória de um movimento, pode haver situações excepcionais que o levem a apelar, sem jamais comprometer sua autonomia, a fontes legitimamente aliadas, sempre com o compromisso de, tão logo vencido esse período de exceção, retomar seu caminho de autofinanciamento. É praticamente impossível a um movimento popular com projeto alternativo de sociedade que seja capaz de assegurare sua autonomia, se depende de outras fontes de financiamento. Pior ainda, quando essas fontes têm a ver com o Mercado ou com o Estado. Sábio é o adágio popular: “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão.” Na história de lutas dos movimentos sociais com esse perfil, são incontáveis as experiências de aposta e zelo pela sua autonomia, recorrendo a vários meios de caixa comum, com esse propósito.
– Só se enfrenta a classe dominante com êxito pela via militar – Ontem mais do que hoje, mesmo assim segue forte a aposta no argumento militarista, mesmo já não enfrentando as condições, por exemplo, da ditadura empresarial-militar. E por essa via, em vez de se priorizar todo um processo de formação humanizadora, não raro, sucumbe-se ao apelo privilegiado às armas, à luta armada, com a agravante da tendência frequente de confundir-se revolução com luta armada, esvaziando-se o essencial do significado de Revolução. Resultado: de posse das armas, os dirigentes, uma vez instalados em postos de relevância, fazem prevalecer suas decisões, nem sempre pela força de seus argumentos…
– Só com formação política dos dirigentes, podemos assegurar um movimento capaz de enfrentar os desafios do Capitalismo – Com frequência, escutams algo parecido. É claro que a afirmação comporta boa dose de razão. É, com efeito, irrenunciável a formação política, não apenas de dirigentes, mas do conjunto dos protagonistas, a começar de sua base, de onde devem vir, em regime de alternância, seus coordenadores e dirigentes. O problema não reside aqui. Sucede que, diferentemente de outras conjunturas históricas, em que a formação estritamente política dos protagonistas deu conta, hoje enfrentamos uma realidade nova, bem mais complexa e desafiante, a não demandar mais a mera formação estritamente política, mas, antes, uma formação integral de sua base e de seus dirigentes. A isto voltarei no tópico, a seguir.
2. Que tipo de formação se faz necessário aos protagonistas de hoje, na perspectiva acima assumida?
Não se tem conhecimento de movimento social algum (com perfil de lidar com projeto de sociabilidade alternativa, que tenha prosperado, sem apostar a fundo no processo formativo de seus membros. Sem qualquer demérito para a educação formal, importa ter presente que dela aqui não se trata. Sendo o Estado o órgão responsável pela organização, pelo controle, pela avaliação do sistema de educação escolar (da educação infantil à pós-graduação), seria ingênuo, da parte dos movimentos sociais com perfil acima mencionado esperar que o Estado dê conta da formação de seus membros. Sendo o Estado um componente essencial (ao lado do Mercado) para a realização dos interesses da classe dominante, não constitui tarefa sua favorecer a formação das forças que buscam sua superação. Daí não haver escapatória para os movimentos sociais populares, senão a de assumirem seu próprio processo formativo, desde a concepção, passando pelo planejamento, a implementação, a metodologia, a avaliação…
Importa ao processo formativo protagonizado pelos movimentos sociais, antes de tudo, formar Gente, diferentemente do sistema oficial, que se empenha em formar para o Mercado. Formar Gente é bem mais complexo! Que requerimentos, então, supõe um projeto de formação protagonizado pelos movimentos sociais populares? Vejamos alguns deles.
Diferentemente da educação escolar, que se dá num período determinado (5, 10, 15 anos…), uma formação alternativa a esse sistema há que ser assumida permanentemente e de forma incessante. Educação continuada! Formar Gente supõe assegurar condições favoráveis aos formandos de aprimorarem sua capacidade perceptiva: ver mais e melhor o que antes enxergavam mal ou não enxergavam; ouvir coisas novas; sentir, intuir situações ainda não vivenciadas; exercitar um outro olhar sobre a realidade, sobre o mundo, sobre si mesmo, sobre si mesma.
Trata-se de uma experiência formativa que parte do reconhecimento ou da tomada de consciência dos próprios limites e potencialidades. Parte da consciência do próprio inacabamento, da própria finitude. Limte que vai sendo superado à medida que se vai apostando na relacionalidade, na força comunitária. Só através da vida grupal é que se vai tendo condição de reconhecer melhor os próprios limites, e, ao mesmo tempo, dar passos rumo à superação de tais insuficiências. Aqui, também, importa ter presente o caráter processual da formação. Ela vai-se dando numa caminhada, num processo, dentro de conjunturas e, portanto, assumindo um caráter de relatividade. Disposição sempre deve haver de chegar cada dia mais perto do horizonte almejado, sabendo-se, porém, que não se alcança tal horizonte, de forma completa, mas aproximativa.
No curso desse mesmo processo formativo, aprende-se melhor a lidar com a memória histórica. Tomar consciência de que, sendo seres históricos, portamos raízes de nossos ancestrais, razão por que buscamos recuperar e celebrar a memória de nossa Gente, suas lutas, suas conquistas, suas derrotas, seus saberes secularmente acumulados, nos distintos continentes e no Brasil. Uma memória subversiva, que nos ajuda sobremaneira a manter acesa nossa chama revolucionária, nossos compromissos de classe, nosso empenho em ajudar a transformar o mundo, a sociedade, a partir de nossa própria transfformção, dia após dia.
Trata-se de um processo formativo que nos dispõe a ir-nos processualmente tornado Gente, e, por isso, comprometidos com a busca de formação omnilateral, isto é, sempre em busca de trabalhar, em nós e nas demais pessoas e grupos, as distintas dimensões em que somos chamados a crescer, a processar nosso desenvolvimento. Dimensões que incluem as relações sociais de gênero, de etnia, de geração, de espacialidade. Um processo formativo que nos dê condições de ir além da mera cognição, do mero desenvolvimento de nossa capacidade intelectual, à medida que nos dispõe a articular adequadamente nosso sentir, nosso pensar, nosso querer, nosso agir, nossa postura comunicativa, nossas relações com a Mãe-Naturez, nossas relações com o Sagrado.
3. Como articular esses desafios e esse tipo de formação com o Trabalho de Base, no presente contexto da sociedade brasileira?
É supérfluo dizer que não se trata aqui de pretender-se oferecer qualquer receita. Isto é incompatível com o que entendemos por Educação Popular. Juntos, a partir das experiências concretas vividas junto a movimentos sociais populares e outras organizações de base de nossa sociedade, buscamos pistas que nos sejam úteis ao nosso propósito. Para tanto, cuido, primeiro, de reavivar o que estou aqui a entendendo por “trabalho de base”, e, em seguida, à luz do que antes vem sendo refletivo, ousar sugerir algumas pistas, nesse sentido.
Por Trabalho de Base podemos, também, entender uma dimensão inicial do processo formativo das classes populares, focada no despertar da consciência crítico-transformadora dos protagonistas recém-chegados e inseridos nos mais variados campos das lutas populares, no âmbito dos movimentos sociais e sindicais ou de outras organizações de base de nossa sociedade. Trata-se aí de assegurar condições e passos favoráveis ao desabrochar da consciência crítica e do compromisso com a causa de emancipação da Classe Trabalhadora, em vista do fortalecimento de sua condição de sujeito de transformação social, na perspectiva da construção de uma sociabilidade alternativa ao Capitalismo, em suas mais diversas esferas (social, econômica, política, cultural…).
Obra coletiva, mas também pessoal, o Trabalho de Base é expressão de muitos e múltiplos protagonistas, trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, cidadãos e cidadãs procedentes de espaços diversos, com sua diversidade de gênero, de etnia, de situação geracional (jovens, adultos…), de variada situação de escolaridade, com suas diversas escolhas ético-religiosas, etc., todas características relevantes a serem tomadas em conta no processo formativo. Processo no qual trabalham, ao mesmo tempo, formandos e formadores, trabalhando os mais diversos temas e questões da realidade concreta, cada qual com seu aporte específico, em que todos se fazem aprendizes uns dos outros, umas com as outras. Para tanto, o método, o jeito de trabalhar é decisivo. Não basta que tenham em comum o mesmo horizonte a ir-se alcançando. Importa, também, que os caminhos e a postura dos protagonistas se façam compatíveis com o respectivo horizonte. Horizonte de Liberdade só se alcança também por caminhos de Liberdade!
Com relação às pistas e passos a propor, trato de distribuí-los em três sub-tópicos: os que dizem respeito aos desafios organizativos; os que se acham mais ligados ao processo formativo mais diretamente; e os que dizem mais diretamente respeito à intervenção massiva (mobilização). Convém lembrar o que já foi antes assinalado, quanto às conexões orgânicas entre os três tópicos e os três sub-tópicos destas linhas.
Quanto às pistas e passos de caráter organizativo – Desde os primeiros contatos, da parte de quem tome a iniciativa, é fundamental que cada passo, cada gesto (desde a preparação dos primeiros contatos, coletivos ou pessoais, ao primeiro encontro, etc.), se tenha o cuidado de impregná-los com as características gerais da proposta de trabalho. Isto é, os membros encarregados, formadores ou não, de realizar Trabalho de Base, devem expressar em cada gesto seu sinais da totalidade da Proposta formativa. Não basta contentar-se com sublinhar o horizonte, aonde se deseja chegar, mas também dar testemunho dos caminhos, por minúsculos ou moleculares que sejam, compatíveis com esse horizonte. Encarnar o Projeto Popular alternativo em cada gesto é que vai convencer, com eficácia, os que estão chegando…
* Partir da história de vida e da experiência concreta dos recém-chegados – Passo que nos remete, por exemplo, à fecundidade dos freireanos Círculos de Cultura. Criar condições favoráveis para que esses novos protagonistas digam sua palavra, contem sua história, relatem e compartilhem suas experiências, seus saberes prévios. Aqui o papel do Formador/da Formadora é menos de falar (até pode falar o necessário), e bem mais o de observar, ouvir, escutar, anotar elementos-chave do percurso e do perfil dos participantes dessa plenária ou reunião ou encontro inicial.
Passo importante para se colher as informações básicas sobre o perfil dos novos protagonistas. A partir dos elementos recolhidos/anotados em uma ou tantas outras reuniões, tem-se mais condição de se levantar o perfil individual e coletivo da turma contatada. Perfil que vai ajudar profundamente nos desdobramentos ulteriores do Traalho de Base.
* No caso de vir a ser adotada o formato de um Círculo de Cultura, nos encontros seguintes, convém, antes mesmo, de situar os desafios mais diretos do Movimento, trabalhar temas, questões, palavras geradoras colhidas anteriormente. Provocar debate, rodas de intervenção por parte dos participantes. Só que aqui não basta apelar para a fala oral. Há que se buscar outros recursos artísticos: desenhos, contação de estória, encenação, música, poesia, cordel, repente, cartazes, trabalhos manuais reveladores dos talentos dos participantes que, na maioria, nunca antes haviam tido sequer a consciência de seus respectivos talentos e saberes…
* Criar condições de desenvolvimento progressivo da capacidade perceptiva dos participantes, no que diz respeito mais diretamente à realidade social – Só a título de ilustração (sem pretender reeditar a experiência), nos anos 80, no contexto da Teologia da Libertação, da chamada “Igreja na Base” (CIMI< CPT< CPO, etc.), um material que marcou muito foi o recurso às charges, às histórias em desenho, como os utilizados numa cartilha intitulada “Zé Brasil descobre a sociedade”. Quem sabe, não seria o caso de recoorer, não à mesma cartilha, mas de elaborar uma outra, com charges, a partir das histórias de vida, das experiências concretas parilhadas, nos iniciais, nos círculos bíblicos... Em breve, propõe-se fazer aqui um esforço inicial de análise de conjuntura em mutirão, com a efetiva participação dos presentes. * Envolvimento progressivo dos participantes em atividades ao seu alcance - Já iniciado o processo organizativo, por meio inclusive da experiência de Círculos de Cultura ou outras iniciativas semelhantes, os protagonistas aqui envolvidos já começam a sentir-se chamados a fazer intervenções concretas, de acordo com suas atuais possibililidades. Jà não basta o debate, sem ser seguido por ações concretas. É hora de ir progressivamente fazendo propostas para os participantes. Tarefas que possam ser realizadas em equipe (da qual participem pessoas mais experientes junto com pessoas iniciantes), bem como de acordo com as características pessoais dos participantes. Apenas o começo. Isto não significa que, em algumas ocasiões, para determinadas tarefas, não devam ser convidadas também pessoas com talento aparentemente pouco compatível. É a prática que vai mostrar isto mais claramente. Desde que se faça o trabalho em equipe, o desempenho concreto de cada participante é que vai dizer se valeu ou não valeu a pena sua participação. Resulta sempre algum aprendizado. * De animador de experiências locais a animador/animadora de experiências organizativas em outros âmbitos - Em distintas situações de avaliação, não é raro perceber-se o enorme bem que resulta a um(a) militante inicial circular como animador(a) de distintas experiências locais e em outras regiões. Por razões óbvias, isto lhes confere um aprendizado mais denso, porque a partir de uma diversidade de situações trabalhadas. Uma tarefa pode, inclusive, a de animar a formação de conselhos populares, núcleos ativos do Movimento. Núcleos que funcionam com sua autonomia, mas, ao mesmo tempo, sentindo-se interconectados, não apenas com outros núcleos similares, mas também vivamente interagindo com outras instâncias organizativas do Movimento. Uma rede viva e vivificante de conselhos ou núcleos a interagirem e a tomarem parte efetiva nas decisões do Movimento. * Zelar, desde cada núcleo ou conselho, pela sua autonomia relativa e, ao mesmo tempo, pela sua interconexão ativa com outras instâncias do Movimento – O exercício da autonomia relativa de um movimento não começa nas instâncias de coordenação/direção. Surgem desde as bases do movimento, desde os núcleos. Em verdade, são estas instâncias de base que vão assegurar a observância da autonomia nas instâncias de coordenação/direção. O mesmo vale para a necessária interconexão das diferentes instâncias. E esses procedimentos se materializam igualmente por iniciativas bem concretas. Por exemplo, no caso do exercício de autonomia – que garante a todo o Movimento não se transformar em correia de transmissão ante forças do Mercado ou do Estado -, isto se viabiliza graças a tantas iniciativas forjadas desde baixo, principalmente quando se trata do autofinanciamento. Cuida-se, aqui, de empreender com criatividade e lucidez iniciativas voltadas a arrecadar recursos próprios para a realização de suas atividades. Exemplo que acaba repercutindo positivamente sobre outras instâncias, e, sobretudo, influenciando práticas nessa direção. Isto se faz com critérios objetivos. Não se trata de isolar-se de ninguém. Pode-se, sim, conversar com quaisquer interlocutores – governos, partidos, sindicatos, igrejas... -, mas sem nunca perder sua autonomia, sua capacidade crítica de expressar as linhas-mestras do seu Projeto. À medida que se vai cedendo, mesmo no pouco, vão-se abrindo brechas para aumentar o grau de concessão até perder, de vez, a autonomia, sua identidade. * Assegurar condições para que aí prospere a alternância de cargos e funções - Em vão se espera pela boa vontade de dirigentes ou coordenação para se realizar o rodízio ou alternância de cargos e funções. Ainda que houvesse boa vontade da parte deles, este não seria o caminho desejável. Há de se criar condições coletivas de observância do rodízio, independentemente da boa ou mã vontade dos dirigentes. Isto se faz à medida que, desde os núcleos, exige-se que quem for eleito para um período de coordenação/direção, tão logo se vença seu período de gestão, volte para a base. Quão revolucionário é este princípio, quando concretamente posto em prática. + Quanto às pistas/passos de caráter formativo - Em vez de pontuar uma ampla série de passos específicos (cf., por ex., http://www.consciencia.net/educacao-popular-como-processo-humanizador-quais-protagonistas/ , cuido de sintetizar em três pontos axiais: = Buscar manter aceso o horizonte de nossa caminhada – Não conseguimos ir longe – pois logo nos perdemos pelo caminho -, se hesitarmos quanto ao rumo que somos historicamente chamados a perseguir. A cada dia, temos que reacender esse compromisso inarredável, de seguirmos na construção de uma nova sociedade, de mulheres novas e de homens novos. Sociedade justa, solidária, fraterna, livre, plural, buscando a unidade na diversidade, desde os minúsculos gestos do dia-a-dia, sem esperar (em vão) que, primeiro, “derrubemos o sistema”, para só cuidar disto a partir daí. = Priorizar o exercício da memória histórica dos “de baixo”- Ao longo da História, há um extenso acervo de experiências a recolher dos diferentes povos, das incessantes lutas de resistência e propositivas dos “de baixo”, a merecerem, não apenas registro, como também tornarem-se alvo de análises e avalição para os movimentos de hoje. E aqui não se trata de pretender-se reeditar esses feitos, mas de recolher deles inspiração, intuição para o enfrentamento exitoso dos desafios de hoje. Especialmente, os bons clássicos – mulheres e homens – constituem uma fonte na qual/da qual somos instigados a beber. Não é por acaso que o exercício da mística tem sido um momento tão precioso para os protagonistas dos movimentos sociais e das organizações de base de nossa sociedade. Do exercício dessa memória subversiva recolhemos força e entusiasmo para seguir lutando em busca da construção de uma nova sociabilidade, bem como para renovar nossos compromissos de classe. = Alimentar continuamente nossa práxis, indo além de uma proposta formativa estritamente política, assumindo-se uma proposta formativa omnilateral – Mantendo firme o compromisso de formar politicamente nossa moçada, cumpre ir além de uma formação estritamente política. Com uma agravante: o próprio campo político tem, não raro, sofrido reducionismo, à medida que se tem restringido apenas às relações Sociedade – Estado, sem a devida atenção a outras relevantes formas de manifestação da Política: as relações sociais do cotidiano! Aqui ajudaria enormemente a priorização da recuperação do significado do Público (de “populus”, povo, popular), pelo qual tanto se empenharam sujeitos históricos de reconhecida referência da Classe Trabalhadora, como a Comuna de Paris. Ou seja, temos necessidade de aprofundar nosso olhar da Política, indo além das relações Sociedade-Estado. Mas, isto não é tudo. Se tudo passa, de algum modo, pela dimensão política, bem sabemos que a Política concerne à dimensão cidadã do ser humana. E, além dela, há tantas outras dimensões a serem igualmente trabalhadas: espacialidade, ecologia, gênero, etnia, geração, subjetividade... E aqui não se trata de se empreender uma reflexão estritamente conceitual, mas de exercitar nas relações concretas do dia-a-dia cada uma delas e a relação delas, em seu conjunto. * - Quanto às iniciativas de mobilização – Uma marca indelével de todo movimento social digno deste nome é, por certo, sua capacidade de visibilizar, perante o conjunto da sociedade, sua capacidade de organização e traços de seu processo formativo. As mobilizações constituem, pois, um traço determinante da configuração de um movimento social popular, especialmente empenhado na construção, com as demais forças parceiras e aliadas, de um projeto alternativo de sociabilidade. Por outro lado, já não surte efeito aventurar-se em qualquer tipo de mobilização: mobilizar-se por mobilizar-se, sem ter algo de impactante a apresentar ao conjunto da sociedade. Em outros termos, a mobilização só dá seus frutos quando se consegue ressoar o acúmulo organizativo e formativo do movimento. Daí a necessidade de trabalhar-se essa tríplice dimensão: a organizativa, a formativa e a de mobilização. Todo tempo é, em tese, tempo de mobilização, entendendo que é parte constitutiva de qualquer movimento mostrar suas bandeiras de luta, as bandeiras de lutas da Classe Trablhadora. Mas, não se faz mobilização exitosa, de qualquer modo. Requer-se, como se sabe, um acúmulo de lutas prévias, passando por debates e reflexões críticas e autocríticas, Requer-se a formação de aliança com protagonistas dos “de baixo”, de modo a romper a correlação de forças frequentemente desfavorável. Nesse sentido, me vem ao espírito a fecundidade da realização, em Brasília, em agosto de 2012, do Encontro Nacional dos Trabalhadores do Campo e dos Povos das Florestas e das Águas (cf. http://terradedireitos.org.br/en/2012/08/24/declaracao-do-encontro-nacional-unitario-dos-trabalhadores-e-trabalhadoras-e-povos-do-campo-das-aguas-e-das-florestas/ ) como ilustração de uma mobilização bem sucedida e com intensa sensibilidade aos reais desafios da conjuntura, mantendo-se aberto ao espírito classista, em sua saudável diversidade. Concluindo essas linhas Segue insubstituível o Trabalho de Base para todo e qualquer movimento social popular que se disponha a caminhar fiel aos interesses da Classe Trabalhadora, entendida esta na necessária atualização de seu sentido, conforme os desafios presentes e a nova configuração do perfil dos “de baixo”. Sem trabalho de base, em vão se procura mudar a sociedade, na perspectiva da construção de uma sociabilidade alternativa. Trabalho de base a ser realizado à luz dos instrumentais teórico-metodológicos disponíveis na atualidade, sem abrirmos mão da genial intuição de bons clássicos e contemporâneos cujo legado deve fazer parte do processo formativo permanente dos protagonistas – mulheres e homens – dos movimentos sociais do campo e da cidade, que se mantêm atentos e empenhados na construção de uma sociabilidade alternativa ao Capititalismo e seus aliados. Três elementos foram sublinhados, em nossa provocação acerca do trabalho de base: o desafio organizativo, o processo formativo e os espaços de intervenção e mobilização. Elementos cuja eficácia reside, sobretudo, na sua interrelação. Num momento crucial, qual o em que vivemos, resulta fundamental aos movimentos sociais – do campo e da cidade – voltarem a priorizar radicalmente no investimento na formação de seus militantes – de direção e de base. Sem tal priorização, resultará frustrada toda tentativa exitosa de luta pela mudança do atual modo de produção, de circulação, de consumo e de gestão, em sua relação amorosa com a Mãe-Natureza.
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