A(s) crise(s) continua(m) devastadora(s), com seus efeitos multiplamente perniciosos, nocivos aos humanos e, por conseguinte, também à natureza. Há, no Brasil e em sua escala global, uma confluência de fatores – econômicos, políticos, culturais, socioambientais – em sua raiz. Fatores dinamicamente entrelaçados. Aqui, vamos destacar apenas dois aspectos de suas manifestações: quanto ao seu conteúdo: seu caráter ético-político e quanto a um âmbito específico: sua dimensão interna às organizações de base de nossa sociedade.
Seguem frequentes e copiosas as análises, focando sob distintos aspectos, do quadro atual, no Brasil, na América Latina e no mundo, produzidas pelas diversas forças sociais representativas dos distintos segmentos e classes sociais. As análises procedentes de setores das esquerdas se apresentam a focar os mais diversos ângulos da crise. Não me consta, contudo, a propósito destas forças, que seus textos se reportem à incidência de fatores internos a essas mesmas forças, na produção da crise analisada, salvo uma ou outra exceção. Eis um campo a merecer um debate mais consistente, com o qual me interessa tentar contribuir. As linhas que seguem, vão nessa direção.
Não temos tradição de exercício de autocrítica. Se, em tempos outros, isto não chega a ser um lugar comum, entre nós – para dizer o mínimo – menos ainda tem sucedido, no curso das últimas décadas. Temo-nos revelado peritos na produção de críticas aos adversários. Quando se trata, porém, de nos colocar também como alvo de nossa própria crítica, a coisa muda de figura. Isto me faz lembrar uma palavra de autocrítica expressa, ainda no final dos anos 80/ começos dos anos 90, por parte de Fernando Cardenal, então Ministro da Educação da Nicarágua, no tempo da Revolução Sandinista, por ocasião dos reveses eleitorais sofridos. Dizia, então, Fernando Cardenal, ao refletir sobre a derrocada do processo eleitoral sofrida pela Revolução Sandinista, da necessidade de não se contentar com as análises avaliativas dos “fatores externos”, ou seja, das forças adversárias. Era preciso, também, dar conta de uma autocrítica…
É claro que autocrítica não dispensa a necessidade da crítica às forças adversárias. Sucede que, ao não se fazer também a autocrítica, vamos descobrir, perplexos e atônitos, que parte dos feitos e fatos que atribuíamos às forças adversárias, também tinha lugar entre nós… Assim sendo, recusando-nos a exercitar a autocrítica, parte dos problemas que dizemos pretender combater, simplesmente não será objeto de apreciação e, portanto, de retificação de nossa parte. Isto é: tudo continuará acontecendo como dantes…
Uma postura alternativa a esse ciclo vicioso enuncia-se na disposição de ousar empreender passos alternativos em direção ao exercício de autocrítica. Mas, sob que aspectos, isto seria possível? Vejamos algumas situações e passos possíveis, nessa direção.
1. Aposta descabida na força transformadora do Estado
Inclusive entre forças da esquerda partidária, em fins dos anos 70/começos dos anos 80, era relativamente forte a convicção acerca do papel do Estado. Este era avaliado como um dos componentes essenciais do sistema capitalista, em parceria com o Mercado capitalista. Se não nulas, eram parcas as apostas no Estado como espaço favorável às atividades militantes de transformação social. Não podia ser assumido como parceiro! Quando muito, a depender da conjuntura, poderia comportar espaços marginais de negociação, podendo até chegar a assumir algum espaço em seus respectivos aparelhos, desde que se tivesse claro seu caráter de força componente do sistema que se tinha como inimigo da Classe Trabalhadora. Tal análise foi ficando para trás, à medida que tais forças passaram a se dar bem nos processos eleitorais, o que implicou, entre outras consequências, o quase completo abandono das lutas sociais pelos seus militantes, agora ocupados com os negócios do Estado, em todas as suas esferas de poder. Eis uma decisão grave que se acha na raiz dos desmandos sucessivos que se vêm produzindo. Sobre este ponto, já tive várias oportunidades de escrever, razão por que me permito apenas enunciar aqui este ponto.
2. Exercício equivocado das relações afetivas, no âmbito da militância
Como é sabido, as relações afetivas sempre tiveram e continuam a ter um lugar fundamental no processo de humanização, inclusive no seio das forças sociais de transformação. Por outro lado, nem sempre isto se dá de modo desejável. Observam-se sérias dificuldades de se lidar com as relações afetivas, em distintas situações. Uma delas tem a ver com uma tendência forte, entre as forças de esquerda, de se atribuir as relações de amizade ou de parceria uma observância (quase) incondicional. Quando se trata de reconhecer e de tomar posicionamento ético frente aos malfeitos dos “nossos”, constatamos uma tendência generalizada ao silenciamento que , não raro, se transforma em cumplicidade. Diante de críticas levantadas pelos adversários, passa-se a responder com uma sistemática negativa atribuindo a culpa aos “inimigos de classe”. A partir daí, fecha-se questão, fazendo-se ouvidos mocos ao conhecido aforisma atribuído a Aristóteles: “amicus Plato, sed magis amica veritas.” ( “Platão é meu amigo, porém mais amiga é a verdade”). A este mesmo propósito, assim se pronunciou Giuglio Girardi: “ Toda obediência incondicional a quem quer que seja torna-se um ato de imoralidade.”
3. Desprezo ou tratamento equivocado dos múltiplos sinais e da memória histórica
Até pelo recuo ou abandono da aposta no processo formativo contínuo, cai-se, não raro, em equívocos graves resultantes do desprezo ou do insuficiente apreço pelos constantes sinais emitidos pela realidade em sua dinâmica característica, bem como pela memória histórica. Com relação aos primeiros, tal é o apego à rotina burocrática e seu ritmo próprio, que já não se dispõe de tempo (ou de prioridade) para seguir atento e vigilante aos sentidos emitidos pelos sinais cotidianos procedentes da dinâmica social. E por isto se vai pagar um preço terrível, depois. O mesmo se diga em relação à memória histórica, inclusive ao cultivo dos bons clássicos, não para tentar copiá-los, mas para retomar seu espírito, diante dos novos e velhos desafios. Uma das consequências, por exemplo, é não mais se dar atenção a uma prática usual e fecunda de outros tempos: a do critério de julgar-se um escrito, por exemplo, a partir de seu alcance no tempo, do teste do tempo. Um bom escrito, salvo exceções, passa pelo teste do tempo, pelo menos em suas linhas fundamentais. Isto quer dizer: ao tomarmos em conta o respeito e a influência de um ou uma analista tem muito a ver com sua consistência no tempo, ou seja, o que se escreveu há cinco, dez anos e mais, segue vigendo, em seus traços fundamentais. Hoje, não é bem isto que se dá. Ao contrário, continuam a ser prestigiados acriticamente analistas que hoje afirmam coisas fortemente distantes do que o faziam, há dez, vinte e mais anos. Não raro, os fatos são muito similares, mas, por conta dos novos autores, outra é a posição desses analistas. E, mesmo assim, seguem sendo a principal referência para amplos setores de esquerda – partidária, popular, sindical, eclesial, acadêmica…
4. Superdimensionamento das conquistas eleitorais, tomando-se como referencial, não o projeto de transformação social, mas a agenda dos adversários precedentes…
“Ah! Mas, no Governo X, as conquistas sociais foram retumbantes, incomparáveis com os feitos obtidos no Governo Y”. E isto é verdade! O problema surge, a partir do momento em que começamos a fazer perguntas do tipo: “Nesse alvissareiro período de conquistas pelo Governo X, que percentual das verbas orçamentárias foi destinado às camadas populares do campo e da cidade e, por outro lado, que percentual dessas mesmas verbas foi destinado aos setores privilegiados (banqueiros, agronegócio, indústria automobilística, empreiteiras, etc.), por meio dos mais diversos artifícios de política econômica?
5. Abandono de práticas alternativas habituais
Ao rememorarmos práticas e atividades características das origens de parte das forças progressistas ( movimentos populares, pastorais sociais, esquerda partidária…), constatamos o progressivo distanciamento dessas práticas, por essas mesmas forças, durante as últimas décadas. Como em textos recentes já tivemos oportunidade de rememorar essas práticas, que nos baste agora apenas enunciá-las:
* A priorização da criação e manutenção dos núcleos.
* Exercício colegiado das direções.
* Cultivo das práticas de autofinanciamento.
* Exercício do mecanismo da alternância de cargos e funções.
* Cuidado com o processo formativo de bases e dirigentes.
* Combate ao culto à personalidade e aos pequenos grupos como únicos sujeitos de decisão.
* Priorização dos interesses classistas, aos quais ficavam subordinados os interesses de cada categoria.
* Cultivo da autonomia frente às forças representativas do Capital: o Mercado e o Estado
* A priorização da criação e manutenção dos núcleos.
* Exercício colegiado das direções.
* Cultivo das práticas de autofinanciamento.
* Exercício do mecanismo da alternância de cargos e funções.
* Cuidado com o processo formativo de bases e dirigentes.
* Combate ao culto à personalidade e aos pequenos grupos como únicos sujeitos de decisão.
* Priorização dos interesses classistas, aos quais ficavam subordinados os interesses de cada categoria.
* Cultivo da autonomia frente às forças representativas do Capital: o Mercado e o Estado
Diante do exposto, faz-se urgente reaver, por meio da autocrítica ( pessoal e coletiva), rumo, caminhos, posturas, à altura dos desafios hoje enfrentados. Talvez o maior deles aponte para a necessidade de retomar, ainda que em bases novas, o processo formativo contínuo de bases e de coordenadores dessas organizações, movimentos populares, associações de nossa sociedade.
Por que dizemos: ”em novas bases”? Pelo fato de que, diante dos novos e complexos desafios, o tipo de formação assegurado em décadas passadas – formação política – já não resulta suficiente. Por duas razões:
– primeiro, porque a chamada “formação política”, oferecida em décadas passadas, comportava quase sempre apenas as relações Sociedade-Estado. Ora, convém lembrar que a Política vai bem mais além do que a relação Sociedade-Estado, à medida que também se faz presente e atuante nas relações do quotidiano;
– depois, pelo fato de que, mesmo na hipótese de uma abordagem mais completa do campo da Política, este não é tudo, donde a necessidade e urgência de se associar à dimensão política diversas outras dimensões igualmente indispensáveis do processo de formação, na perspectiva de uma educação integral, capaz de trabalhar as relações sociais de gênero, de etnia, de espacialidade, de gerações, ecológicas, filosóficas, etc
– primeiro, porque a chamada “formação política”, oferecida em décadas passadas, comportava quase sempre apenas as relações Sociedade-Estado. Ora, convém lembrar que a Política vai bem mais além do que a relação Sociedade-Estado, à medida que também se faz presente e atuante nas relações do quotidiano;
– depois, pelo fato de que, mesmo na hipótese de uma abordagem mais completa do campo da Política, este não é tudo, donde a necessidade e urgência de se associar à dimensão política diversas outras dimensões igualmente indispensáveis do processo de formação, na perspectiva de uma educação integral, capaz de trabalhar as relações sociais de gênero, de etnia, de espacialidade, de gerações, ecológicas, filosóficas, etc
João Pessoa / Olinda, 14 de dezembro de 2015
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