quarta-feira, 6 de julho de 2016

Algumas linhas sobre a Semana Teológica em Homenagem ao Pe. José Comblin, realizada em João Pessoa, na UFPB, de 26 a 29/10/2011

DIA 26/10/2011:
Num clima de muita esperança, e com a presença de dezenas de pessoas, inclusive de membros dos órgãos promotores do evento (Grupo Igreja dos Pobres; Nòs Somos Igreja; Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, da UFPB), foi aberta pelo Pe. Josenildo de Lima a Semana Teológica em memória do Pe. José Comblin.
No mesmo auditório da Reitoria da UFPB, onde há oito anos, o Pe. José recebera o título de “Doutor honoris causa”, Pe. Josenildo deu as boas-vindas às pessoas presentes, e anunciou e convidou a comporem a Mesa e a contribuírem, na primeira noite, Mônica Muggler e Eduardo Hoornaert, com a tarefa de compartilhar aspectos da vida e da obra de Pe. José Comblin.
1. Mônica Muggler, missionária do meio popular, há cerca de vinte e cinco anos, tendo acompanhado de perto o Pe. José Comblin, nas últimas décadas, inclusive em suas constantes viagens de trabalho junto às escolas de formação missionária, espalhadas pelo Nordeste. Coube-lhe comparitlhar aspectos fundamentais da vida do Pe. José, dos quais destaco os seguintes:
– Tarefa difícil, a de falar sobre a vida de Pe. José. São múltiplos os aspectos a considerar, dados inclusive seu movimentado percurso de peregrino e sua longevidade (ele partiu aos 88 anos).
– Não se propõe, aqui e agora, fazer sua biografia convencional. Pode-se até encontrar dados seus, inclusive pela internet. Prefere destacar pontos que considera menos conhecidos e mais densos de sua vida, de modo a sublinhar aspectos como sua condição de peregrino e seu olhar.
– Pe. José nasceu na Bélgica (1923). Era o mais velho de cinco filhos. Seu pai era funcionário público, em Bruxelas, atuando no Ministério das Colônias. Pe. José achava interessante o fato de que seu pai, embora funcionário do Ministério das Colônicas, nunca haver visitado as colônias (o Congo belga, por ex.).
– Além de ser o mais velho, apresentava o perfil de um filho exemplar. Nas travessuras das crianças, sua mãe costumava dizer-lhes; “Vejam o comportamento de José!”
– Desde cedo, mostrou-se um aluno exemplar, muito aplicado, e bem reconhecido entre seus colegas e professores, pelo seus talentos.
– Cedo entrou para o Seminário. Fez seu curso no Seminário Universitário. Em seguida, fez seu doutorado ainda muito jovem. Ordenado padre em 1947, passou a ser um dos quatro vigários de uma Paróquia, em Bruxelas. Ficava impaciente por ter pouco trabalho a fazer como vigário, conforme o ritmo então costumeiro. Sentiu que aquele mundo já não o atraía como missionário.
– Não hesitou em partir da Europa, assim que lhe surgiu a oportunidade. O Papa Pio XII estava solicitando às dioceses padres para irem para a África e América Latina para combater o perigo comunista…
– Chegou ao Brasil, juntamente com outros colegas, em 1958. Ele ficou em Campinas. Ficou como capelão de uma comunidade religiosa. Começou a lecionar Ciências e Francês. Logo passou a ser assistente da JOC. Em 1962, recebe convite para ir ensinar na Universidade Católica, no Chile, até ser convidado por Dom Helder, a vir ser seu assessor, em Recife. Foi professor no ITER. Ajudou Dom Helder, a partir de 1965, tendo dele assumido várias tarefas. Até ser expulso, em 1972, tendo que voltar a morar no Chile, desta vez, em Talca, a convite de Dom González, que nele confia e nele reconhece um teólogo criativo e comprometido com a causa dos pobres.
– Em Talca, vai ocupar-se sobretudo da formação dos jovens do meio rural, propondo a criação – como o faria também no Nordeste brasileiro – de um seminário rural. Aí vive até 1980, quando é expulso pela ditadura Pinochet.
– No tempo em que fica em Talca, também segue viajando, com certa frequência, ao Equador, mais precisamente a Riobamba, a convite de um dos bispos que mais admirava, Dom Leonidas Proaño, o grande defensor dos povos indígenas.
– Impactado pela crueldade das ditaduras militares na América Latina, assumiu o compromisso de estudar mais a fundo a questão militar, na América Latina. Vai até pesquisar nos Estados Unidos, onde encontra uma farta bibliografia sobre os problemas militares no continente. É dessas pesquisas que vai reusultar um de seus livros-chave sobre a ideologia da segurança nacional, em cujo estudo foi um dos pioneiros.
– De retorno ao Brasil, em 1980, encontra dificuldades de para aqui trabalhar, por conta de sua expulsão (do Brasil e do Chile). Para contornar essa dificuldade, tem que entrar no Brasil como turista – portanto, sem visto permanente. A cada três meses, tinha que deixar o Brasil, ficando numa fronteira com o Uruguai ou com a Argentina, de onde marcava encontro com seus amigos brasileiros, em função de suas novas atividades.
– Em 1980, consegue reunir um bom número de colaboradores e colaboradoras, no Nordeste, para dar sequência à Teologia da Enxada (nos termos do livro do mesmo nome, publicado pela Vozes, em 1977).
– Em 1981, começa a experiência do Seminário Rural, no Brasil, mais precisamente no Avarzeado, município de Pilões. Experiência que, pelas pressoões de Roma, não se manteria, enquanto Serminário. Graças à acolhida e ao efetivo apoio de Dom José Maria Pires, converte-se numa frutuosa experiência, tendo prosseguimento agora, a partir de 1983, sempre com a presença do Pe. José, no Centro de Formaçao Missionária, em Serra Redonda, onde em companhia de uma Equipe de Formadores e Formadoras, eram acolhidos jovens do meio popular de vários Estados do Nordeste e até do Pará, de Goiás…
– Dessa experiência nasceram iniciativas distintas, conforme os carismas dos jovens formandos, inclusive das moças que também tiveram seu espaço de formação missionária (as Missionárias Populares), em Mogeiro. Entre outras iniciativas, nascem: a da Associação dos MIssionários e Missionárias do Campo, a da Asscccoiaçao da Árvore (em Bayeux, onde Pe. José vai residir por vários anos, até sua partida para Barra, acolhido que foi por Dom Frei Luiz Cappio); a dos contemplativos (Serra do Catita, Colônia Leopoldina – AL), entre outras.
– Durante todo esse tempo, Pe. José não cessava de peregrinar pela América Latina – Equador, Colômbia, o próprio Chile, El Salvador, onde por várias vezes esteve a participar de seminários em memória de Dom Oscar Romero, inclusive na UCA, em companhia e Jon Sobrino e outras figuras de teólogos e teólogas latino-americanos.
– Com relação ao olhar de Pe. José, é de se destacar a maneira como ele observava cada pessoa com quem se encontrava. Um olhar de observador perspicaz, atento a preciosos detalhes. Fazia amigos, e era muito fiel às suas amizades, fazendo questão de visitar o maior número possível, sempre a manifestar um testemunho de solidariedade e de estímulo.
– A exemplo de Dom Helder, enxergava as pessoas como projeto, chamando a atenção para suas potencialidades, despertando seu protagonismo.
– Estava sempre disponível a quem dele se aproximasse, em especial os pobres.
– Teve uma dedicação especial às Escolas de Formação Missionária, nas quais fazia questao de estar presente em cada uma, quando dos módulos dos cursos periódicos, viajando de carro.
– Mônica também cuidou de relatar aspectos relevantes do processo de construção de seu livro inacabado, abordando a presença do Espírito Santo na Igreja. Sobre seus escritos póstumos, ela encontrou vários arquivos, cada um trazendo parte da obra incompleta. O que se devia ao seu hábito de estar sempre a renovar a redação de seus escritos. Foram, por isso, encontrados umas quatro versões de seus escritos, com variações, desatacando a distinção entre fé e religião, entre a tradição do Evangelho e a tradição religiosa, os desafios atuais da teologia contemporânea…
– Seus escritos póstumos devem ser publicados,com uma apresentação feita por Dom Luiz Cappio, pela Editora Paulus, que se comprometeu em publicar seu livro, desde que até 500 páginas.
2. Eduardo Hoornaert é historiador e teólogo, co-fundador e ex-coordenador da CEHILA – Comisión de la historia de la Iglesia latinoamericana (inclusive da CEHILA Popular). Eduardo tem uma vasta obra publicada (em livros e artigos publicados no Brasil e no exterior). Reside atualmente em Salvador, há uns 16 anos, após haver trabalhado em Fortaleza, por mais de uma década; em Recife (como professor no ITER, inclusive no período do Pe. Comblin), além de ter sido na Paraíba (Bayeux) sua primeira experiência de trabalho. A exemplo de Pe. José Comblin e de um pequeno grupo de outros colegas padres belgas, chegou ao Brasil, em 1958. Coube-lhe compartilhar elementos preciosos da obra de Pe. José. Ofereceu um resumo por escrito de sua fala, que disponibizamos, mais uma vez.
LER JOSÉ COMBLIN (1923-2011)
1. Hoje, um sentimento de urgência toma conta de nós. Percebemos que nunca na história um grupo tão minúsculo de pessoas comandou, por meio da grande mídia, a vida da quase totalidade da população mundial. Desse modo universaliza um tipo de ditadura que a maioria das pessoas não percebe. A TV instalou-se na vida das pessoas e gerou um tipo de pensamento confuso. Não se revelam os labirintos do poder. Os noticiários são sistematicamente mentirosos (acerca de Kadaf, Saddam Hussein, etc.) enquanto mantêm silêncio acerca do que é realmente importante (as ‘primaveras’ que se espalham pelo mundo).
Hoje, ter um mestre como Comblin é um privilegio. Pois é raro encontrar pessoas que superam a condição de ‘inteligência confusa’ e dizem as coisas com uma clareza meridional. Os livros desse mestre constituem um tesouro a ser explorado. Quando as coisas mudam com rapidez (como agora), necessitamos urgentemente de pensadores a nos indicar caminhos possíveis, no exato momento em que vivemos. Nosso mestre faleceu antes de tomar conhecimento das primaveras que se iniciaram em janeiro 2011 na Tunísia. Como ele teria comentado isso (como comentou o bolivarianismo)?
2. O que ler de José Comblin? Recomendo ler principalmente acerca de três temáticas, mas sei que com isso nem de longe estou esgotando a riqueza da produção intelectual do mestre. Eis os 3 temas: ‘espírito santo’, ‘povo de Deus’, ’método pedagógico’. O mais importante é o tema ‘espírito santo’, que será abordado amanhã. Só quero lembrar aqui que a ‘obra grande’ (opus magnum) de Comblin comporta 5 livros escritos ao longo de 25 anos (entre 1982 e 2007): Tempo de ação (1982); A força da palavra (1986); Vocação para a liberdade (1999); O povo de Deus (2002), A vida em busca da liberdade (2007). Os três últimos talvez sejam os mais interessantes para as novas gerações (Paulus, SP). O miolo do pensamento de José Comblin está aí.
3. O que quero aprofundar mesmo hoje são os dois temas restantes. Primeiramente o do povo de Deus. Aos 35 anos, Comblin percebe que o povo de Deus (da paróquia de Bruxelas) não é mais o povo de Deus. ‘Aqui não tem mais o que fazer’ (o cristianismo engolido pela burocracia corporativa do clero). Ele parte para o Brasil em busca do povo de Deus. E o encontra. O Brasil o fascina e transforma. Ele é como Paulo fariseu que abandona Israel, mas permanece fariseu. O padre José abandona a igreja, mas permanece padre. Ele enxerga a igreja além da igreja, fica alegre com o ‘subsistit’ de Lúmen Gentium (Vaticano II) e mais ainda com o ‘pacto das catacumbas’ no final do concílio (1965). Quando Dom Helder lhe pede um texto para Medellín 1968, ele ‘manda brasa’ (tenho comigo um exemplar original da ‘wikileaks’ desse texto para a grande imprensa). Esse texto vai além do cristianismo, além da religião, alcança diretamente os grandes problemas que afligem a humanidade. É baseado numa das leis fundamentais do povo de Deus, a desobediência. As leis foram criadas para que os pobres fiquem calados. Aplicando as leis não se consegue nada. É preciso infringir as leis.
4. Penso que, mais importante que Comblin teólogo (conselheiro de bispos), é Comblin pedagogo. A teologia da enxada é um método pedagógico que excede de longe as experiências concretas de Salgado de São Félix e Tacaimbó. É o método Paulo Freire aplicado à formação de agentes de pastoral. Comblin figura ao lado de Paulo Freire e de Ivan Illich como expressão de uma pedagogia nova que nasce na AL na década de 1960. A ideia de partir de temas geradores é revolucionária. Existe, mais profundamente ainda, uma conexão entre o ‘método Comblin’ e o famoso método Cardijn (ver, julgar, agir). Partir de temas geradores é o mesmo que partir do ‘ver’ para depois ‘julgar’ (conferir com bíblia) e ‘agir’. Nesse método está o valor permanente de Medellín 1968. Se compreendemos o método, descobrimos facilmente as adulterações (como Aparecida 2007: como dizer que a igreja é missionária se ela, na realidade, se articula por meio das paróquias e dos sacramentos?). Pois o método pedagógico da teologia da enxada está baseado no ‘amor desordenado’. Por amor, Deus renuncia ao seu poder e decide criar o homem livre, o que acarreta necessariamente o pecado (o abuso da liberdade). Em outras palavras, Deus ‘cria’ a possibilidade do pecado quando ele decide criar o homem livre. Daí o desfecho incerto da história humana e a luta que ‘sempre continua’. A história pode dar certo ou resultar em catástrofe. Pois o amor não fundamenta a ordem, mas a desordem. O amor quebra toda a estrutura da ordem. O amor fundamenta a liberdade e, por conseguinte, a desordem.
Eduardo Hoornaert, João Pessoa, DIA26/10/2011.
DIA 27/10/2011
Nesta noite, tivemos a alegria do reencontro e da confraternização com familiares, amigos e amigas de Dom Fragoso, este pastor e profeta dos pobres, um dos amigos próximos de Pe. José Comblin. Este, em suas peregrinações, também conheceu a frutuosa experiência da Igreja de Crateús.
Como estava previsto, tivemos o lançamento, na Paraíba, do filme/documentário “Dom Fragoso”, de cerca de uma hora e vinte minutos de duração.
Contamos também com a presença do cineasta Francis Vale e do Prof. João de Lima, que, antes e depois da exibição do documentário, trataram de introduzir e apresentar o documentário, bem como, após o filme, de travar um diálogo com os presentes.
Foi para nós um momento de memória especial sobre a densa experiência da Igreja de Crateús, animada profeticamente por Dom Fragoso e sua aplicada Equipe de animadores e animadoras.
O documentário mostra diferentes ângulos da vida de Dom Fragoso, sempre no meio do povo dos pobres. Apresenta vários trechos de sua fala, gravados pouco antes de sua partida (12 de agosto de 2006).
Muito impactantes os distintos depoimentos de pessoas simples da região de Crateús, que com ele conviveram e partilharam momentos indeléveis de luta, de esperança, de alegria. Os camponeses, as mulheres do Projeto Ninho, a atuação dos leigos e leigas, a firmeza da Equipe de Coordenação dos distintos trabalhos – eis apenas alguns dos aspectos observáveis no documentário.
Acabo de receber de Frei Hugo Fragoso, OFM, um dos irmãos de Dom Fragoso, o texto que segue abaixo, recuperando aspectos preciosos da biografia de Dom Fragoso. Agradecemos a Frei Hugo pela partilha.
Na mesma ocasião do lançamento do filme/documentário, também se achavam presentes, além de Frei Hugo, seu irmão-caçula, João Fragoso, na companhia de Melânia e de outros familiares e amigos próximos, a exemplo da Irmã Ana Vigarani, que o acompanhou durante décadas, em seus trabalhos pastorais e de evangelização, em Crateús, e na Comunidade de Laranjeiras, no bairro José Américo, em João Pessoa, onde, já bispo emérito, passou a viver, como um irmão entre os irmãos e irmãs, de 1998 a 2006. Segue o texto proposto por Frei Hugo.

Dom fragoso: um profeta em tensão
Entre o profetismo e as estruturas institucionais de igreja
Por Frei Hugo Fragoso, OFM
O futuro bispo Dom Fragoso nasceu na serra do Teixeira, no alto sertão paraibano. Trazia ele no sangue o grito da fome de um povo, martirizado pela seca, pelas injustiças sociais, e pela politicagem grupista. Este grito perpassará toda a sua caminhada, como força propulsora de sua voz profética.
O menino Antônio Fragoso entrou no seminário de João Pessoa pela porta da cozinha. Seu pai não tendo condições financeiras de pagar a mensalidade exigida, fragosinho foi admitido aos estudos, na qualidade de empregado, trabalhando na portaria, como menino de recados e de afazeres domésticos. Nesse trabalho em seus primeiros anos de seminário, pôde ele sentir a humilhação discriminatória, por que passavam os filhos de pais pobres, face aos seminaristas de famílias que tinham recursos para pagar a mensalidade. E isso contribuiu para um dos enfoques de sua voz profética, a interpelar as próprias estruturas da instituição eclesiástica.
O Padre Fragoso, depois de sua ordenação, foi nomeado apóstolo dos operários, sendo-lhe confiado o encargo do Círculo Operário de João Pessoa. No Círculo Operário, logo se fez sentir a sua ação profética. Pois, ele percebeu que o círculo operário era um “movimento para operários”, e não “um movimento de operários”. Situava-se numa linha assistencialista com alguns elementos promocionais, mas não dava aos operários a autonomia de decidir sua própria caminhada. E o Pe. Fragoso transitou para a ação católica, em seu segmento de Juventude Operária Católica (JOC). Ali ele se constiuiu, no testemunho do fundador da JOC, Pe. José Cardijn,como uma das grandes vozes proféticas do mundo operário brasileiro.
O Pe. Fragoso foi então consultado pelo núncio apostólico, para ascender à cátedra episcopal. E a resposta do Pe. Fragoso foi reticente, alegando ele ao núncio sua dificuldade em aceitar a púrpura episcopal, pois ela o distanciaria dos operários. E o núncio o tranquilizou: “você vai ser bispo dos operários!”
Ao aceitar o episcopado, entre cujas funções específicas estava a de “manter a instituição”, ele assim se expressou na manifestação que lhe fizeram os seminaristas de João Pessoa, no dia de sua ordenação episcopal. Ao receber grandes aplausos dos seminaristas “por causa de suas idéias”, ele lhes deu esta resposta emblemática: ”minhas idéias, minhas idéias pessoais, vocês podem rasgar e jogar na cesta do lixo. Mas a orientação de minha igreja, de nossa igreja, vamos acatá-la respeitosamente”.
É que ele não via a igreja como um bloco monolítico, mumificado numa instituição, porém como algo em contínua construção, sob a ação do Espírito Santo. E o Espírito Santo recorria, dizia D. Fragoso, a mediações humanas, não apenas do magistério institucional, mas a todos os membros da Igreja. E proclamava ele: “ que certeza tenho eu, como bispo diocesano, de ser iluminado com exclusividade pelo espírito santo, quando ele me ilumina pela mediação dos leigos, das religiosas, do povo de Deus da igreja de Crateús?”
E aí estava a tensão mais profunda de seu profetismo, a interpelar a instituição eclesiástica.
Passo expressivo de sua caminhada episcopal foi sua nomeação para bispo de Crateús, em 1964, em plena “revolução militar”. Ao chegar à cidade de Crateús, ele teve de observar o ritual inicial de passar pelo quartel do exército, para “o beija-mão”. Mas no dia seguinte, após as longas cerimônias de posse, houve um banquete de 200 talheres, digno de um bispo da instituição eclesiástica. Após, o longo tempo do banquete, e depois de uns cinco discursos, já quase às 4 horas da tarde, chegou a vez de D. Fragoso falar, e apresentar sua carteira de identidade. Ele começou dizendo que iria ser breve, e que queria agradecer em primeiro lugar às cozinheiras, que prepararam aquele gostoso banquete, mas que estavam até aquela hora esperando que terminassem o discursos, para poderem matar a fome. E em seguida, apresentou seu projeto episcopal:”eu não vim para Crateús ser um construtor de civilização, mas sim um humilde servidor do povo de Crateús para que ele possa construir autonomamente o seu destino!”
E depois de anos e anos a proclamar sua voz profética em ressonância internacional e amordaçamento nacional, ele teve de moderar a sua voz profética. Foi quando da prisão e tortura de seu auxiliar Pe. Geraldinho. Diante de sua prisão e tortura, D. Fragoso assumiu uma atitude de perplexidade, dizia ele sentidamente aos mais íntimos: “se eu continuar com a veemência dos meus pronunciamentos, serei aplaudido como herói, e não me irão prender por receio da repercussão nacional e internacional mas irão prender e torturar os meus pequenos auxiliares. Isto é para mim profundamente doloroso. E daí em diante procurou ele atenuar a veemência de sua voz profética.
Depois de 34 anos de ação profética na Igreja de Crateús, ele foi dispensado de sua função institucional de bispo , voltando à plenitude de seu profetismo, sem as amarras institucionais. E sentindo-se totalmente livre, poderia ele exclamar:”ai de mim se eu não falar, quando Deus me manda falar!”
E igualmente sentindo-se apenas sob a vigilância do olhar do supremo juiz, de que se julgava porta-voz, ele exerceu um profetismo de profunda radicalidade, como bem expressou no seu último livro, postumamente editado.
Resumindo toda a caminhada profética de Dom Fragoso, poderíamos a ele aplicar as palavras do Papa João XXIII. Ou seja, quando o profeta Pe. Lombardi, fundador do movimento “por um mundo melhor”, teceu fortes críticas às estruturas institucionais da cúria romana, os cardeais da cúria assumiram atitude imediata de punição àquilo, que eles consideravam um verdadeiro desacato à autoridade. Foi então que o Papa João XXIII, interveio com toda a sua autoridade institucional de Papa:”calma, meus irmãos! Calma! O Pe. Lombardi teceu suas críticas por amor. E todo aquele que nos crítica por amor, deve ser ouvido!”
Dom Fragoso em sua caminhada profética fez todas as suas interpelações à instituição eclesiástica por amor à sua igreja. Aquela Igreja da qual no dia de sua ordenação episcopal, como vimos, ele expressava toda a sua dedicação:”minhas idéias pessoais, vocês podem rasgar e jogar na cesta do lixo. Mas a orientação de minha Igreja, da nossa Igreja, vamos acatar com respeito!”
DIA 28/10/2011
A contribuição de Pe. José Comblin à compreensão da missão do Espírito Santo no mundo foi o tema da terceira noite.
Foram convidaos a comporem a Mesa a Irmã Agostinha Vieira de Melo, Religiosa Beneditina, do CEBI, e o Pastor Luciano Batista de Souza, da Primeira Igreja Batista de Sousa – PB.
1. Em sua exposição, a Irmã Agostinha lembrou as circunstâncias de seu conhecimento do Pe. José Comblin, nos tempos de sua atuação como professora de Bíblia no CFM – Centro de Formação Missionária-, em Serra Redonda, nos anos 80.
Presenteou-nos, em seguida, com a leitura do seu Poema “Apressador de Urgências”, em homenagem ao Pe. Comblin. Um poema de rara beleza, em forma e conteúdo, a retratar com profundidade o perfil de Pe. José. Eis o Poema
APRESSADOR DE URGÊNCIAS
Pela Irmã Agostinha Vieira de Melo*
Olheiro e aprendiz dos sinais dos tempos
E das lutas mais queridas.
Amante e servidos da dama liberdade,
farejador e acolhedor do sopro do Espírito
Crente do pobre-povo-de-Deus…
No trânsito da história
nos antigos e novos rumos das idéias
ele percebe mais, bem mais
do que apenas sinais
vermelhos, amarelos e verdes…
Não se atém nem se retém
aos postos institucionais
Não empaca nos míopes avisos: Errado!Certo!
de cúrias e incúrias.
Vai seguindo
indo e vindo
com sua enxada teológica
revolvendo teologias
cavando e desencavando eclesiologias
no campo, na cidade
com uma simplicidade já euro-nordestina
nas entranhas do Evangelho
Minha gratidão nordestina
cria audácias na imaginação…
Adivinho-o
crítico e amoroso,
sério e de fino humor;
de ouvido afiado
ao que é mais abafado
na dignidade dos pobres.
Movido pelo amor,
apressando as horas daquela urgência
que não permite esperar!
Ao Pe. Comblin,
Na manhã de seus oitenta anos,
Abraço de Agostinha Vieira de Mello
(Extraída do livro A Esperança dos pobres vive!, São Paulo: Paulus, 2003, pp. 213-214)
* Religiosa beneditina, fundadora do CEBI, tem longa experiência de trabalho bíblico com agentes pastoris, lideranças populares e comunidades eclesiais de base. Vive inserida no meio popular em João Pessoa, há mais de 25 anos.
2. O Pastor Luciano houve por bem ler-nos o seu denso texto, que ele distribuiu em três tópicos: uma introdução geral à contribuição teológica do Pe. José, sua contribuição pneumatológica específica e pontos ou aspectos que ele recolhe como desafios de sua leitura.
– A obra teológica de Comblin também passa pela influência de professores de referência e de testemunho, a exemplo de Lucien Cerfaux e Gustave Thils.
– Sua obra comporta uma extraordinária diversidade temática, o que pode ser atestado, seja pelas suas diversas “teologias” (da revolução, da cidade, libertação, da enxada…), seja pela gama de outros temas por ele abordados (a figura de Jesus, cartas paulinas, antropologia cristã, profecia, entre outros).
– Diversidade notável de sua produção, exposta, não apenas em livros (em torno de 70), mas em seus mais de 400 artigos, publicados em diversas revistas de reconhecida qualidade nacional e internacional.
– Nessa produção teológica, Pe. José tido um reconhecimento notável. Mas, é sobretudo no campo da Pneumatologia (o campo dos estudos ligados à missãodo Espírito Santo), que Pe. José se tem revelado portador de uma contribuição toda especial.
– Seus estudos da ação do Espírito Santo no mundo se encontram tanto em livros, quanto em artigos. Mais “remotamente”, pode-se perceber sua intuiçao nesse domínio desde os anos 60, em alguns artigos abordando a presença e a ação do Espírito Santo.
– De maneira mais sistemática, suas inquietações remontam ao final dos anos 70, quando publica um esboço do que se revelaria, nos anos seguintes, seu denso projeto de estudos pneumatológicos (“O Espírito Santo no Mundo”, Vozes, 1978). Nesse esboço, podem ser registradas as palavras-chave, posteriormente desenvolvidas: Ação, Palavra, Liberdade, Povo de Deus, Vida…
– De modo mais sistemático, Pe. José lograria êxito em seu projeto que se materializaria, ao longo de um quarto de século, mais propriamente, de 1982 a 2007, sem esquecer de seu escrito póstumo que, de certo modo, “fecha” esse seu círculo pneumatológico (sobre o Espírito Santo na Igreja).
– Durante esse período, foram publicados:
* “Tempo da Ação” (Petrópolis: Vozes, 1982);
* “A Força da Palavra” (Petrópolis: Vozes, 1986)
* “Vocação para a Liberdade” (São Paulo: Paulus, 1998);
* “Povo de Deus” (São Paulo: Paulus, 2003)
* “Vida com Liberdade” (Paulus, 2007);
– Ao longo dessas publicações, Pe. José trata de:
* ajudar a compreender que a ação do Espírito Santo no mundo vai bem além de sua presença nos espaços eclesiais;
* Nestes espaços, o sentido da presença e da ação do Espírito supera sua atuação para bem além de uma presença estritamente intratrinitária.
* Na compreensão de José Comblin, diferentemente do sentido abstrato e quimérico que, por interesses de poder assumidos e difundidos pela cristandade, se tornaria predominante, o Espírito é a ação, é a força renovadora/transformadora de Deus no mundo, nos povos, nas pessoas.
* O Espírito Santo age na atualização da força da Palavra, do Verbo feito carne, da Palavra feita pobreza.
* Jesus, Palavra incarnada no mundo, entre os humanos, em especial na vida dos pobres, teve um tempo histórico limitado. Sua vida terrena foi rápida, em tempo insuficiente para que os humanos – inclusive os apóstolos – assimilassem tudo o que Ele veio anunciar. É o Espírito que segue a ensinar, a revelar, a inspirar, a encorajar, a incendiar os corações, na perspectiva da realização do Reino de Deus.
* O Espírito Santo torna vivo e presente o legado de Jesus, encorajando seus discípulos e discípulas a darem prosseguimento ao Plano do Pai, anunciado por Jesus, de nos instigar à missão de reunir todo o Povo de Deus, ajudando a tornar Povo toda uma massa espalhada pelo mundo, a viver como ovelhas sem pastor.
* Pela força renovadora do Espírito Santo, somos chamados à Liberdade, nome aliás do que considero a obra-magna de Pe. José, Vocação para a Liberdade (Paulus, 1998), em que Pe. José se inspira principalmente na bela carta de Paulo aos Gálatas.
* A vida para o ser humano requer o exercício da Liberdade. Chamados à vida em plenitude, nós somos chamados a viver na Liberdade, o que é mais exigente do que se espera da vida de outras espécies.
* O Espírito Santo continua a infundir sobre os membros do Povo de Deus os Seus dons: o dom do discernimento, o dom da profecia, o dom da coragem, o dom da criatividade, da capacidade de transformar, para melhor, o mundo, as condições de vida do Planeta e dos Humanos.
– Após as duas reflexões propostas pela Irmã Agostinha e pelo Pastor Luciano, foi a vez de Pe. Josenildo anunciar o momento das intervenções espontâneas de outras pessoas. Antes, tratou de saber, dentre os presentes, quantos confirmariam sua participação no sábado, 29, pela manhã. Ficou, combinado, que o dia do sábado seria de partilhar memória do Pe. José, não apenas com as pessoas presentes nesta noite, mas também com outras pessoas que só pederiam vir no sábado pela manhã.
– Houve intervenões espontâneas e questões dirigidas aos expositores. As questões giraram em torno dos desafios de prosseguir a caminhada, nesses tempos de crise institucional dentro e fora da Igreja, bem como em torno do desafio do futuro do Cristianismo.
Nota: oportunamente, o Pastor Luciano nos dará a alegria de remeter seu belo texto, permitindo que o socializemos para um público mais amplo. AJFC.
DIA 29/10/2011
– Na manhã do sábado, 29, à medida que as pessoas iam entrando no auditório da Reitoria da UFPB, tratavam de sentar-se numa das cadeiras que formavam um círculo.
– Tendo em vista que algumas pessoas presentes no último dia não haviam podido acompanhar as reflexões partilhadas nas noites anteriores, foi iniciada a manhã, com um momento de breve recapitulação dos pontos-chave tratados.
– Foram socializados pelas pessoas presentes distintos momentos de lembranças do Pe. José, suas viagens, seu testemunho, seus amigos e amigas, sua obra, diversas organizações que tiverem nele inspiração direta e por ele foram acompanhadas.
– Com a contribuição de Mônica Muggler, de Pe. Paulo Cabral, de Pe. Hermínio Canova, de vários estudantes trabalhando em projetos de Extensão, de membros de várias comunidades da grande João Pessoa, cuidou-se, além de compartilhar momentos densos da vida e do legado de Pe. José, também de socializar informações sobre o Memorial Pe. José Comblin, cuja abertura está prevista para o dia 19 de dezembro, no Santuário do Pe. Ibiapina, em Santa Fé (município de Solânea, ficando, porém, a cerca de apenas um Km da cidade de Arara.
– Manifestou-se a idéia, logo por todos acolhida, de dar seguimento a esse evento em homenagem ao Pe. José Comblin, todos os anos.
– A Semana Teológica em homenagem ao Pe. José Comblin foi encerrada com um momento de oração, em que todos foram convidados/convidadas a dizer uma palavra acerca daquilo em que crê.
Nota: Foi o que consegui reter, sem registros escritos, consciente das lacunas e imprecisões, pelo que lhes peço desculpas. Outros/outras hão de completar.

João Pessoa, 2 de novembro de 2011

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