segunda-feira, 18 de julho de 2016

DIDAQUÊ: Este documento cristão do século I tem algo a nos dizer, hoje?


Alder Júlio Ferreira Calado

          Tais e tantos são os apelos, as atividades, os valores que se anunciam como cristãos, que se torna cada vez mais complicado o esforço de discernir, em meio a tal diversidade de apelos – e apelos sedutores! -, o fundamental da mensagem anunciada e testemunhada por Jesus de Nazaré. Não bastasse a enorme variedade de templos e expressões religiosas, eis que mesmo no interior das igrejas cristãs históricas, a dúvida se instala.
          É consenso, aqui também reafirmado, que a mensagem de Jesus, graças à natureza do próprio mistério da Encarnação, assume roupagem cultural variada. Inquieta-nos, entretanto, quando em virtude das roupagens atrativas, perdemos de vista o núcleo da mensagem do Evangelho. Eis um desafio também para nós, cristãs e cristãos do início do terceiro milênio.
          Não é a primeira vez na história do Cristianismo em que se dá tal desafio. Em diferentes épocas, isto também foi experienciado. Em todas essas ocasiões, sempre ressoaram vozes proféticas para nos relembrarem os fundamentos, as origens. E tratavam de rememorar os começos das experiências missionárias tão fortemente presentes entre os primeiros cristãos. Em busca de rememorar o núcleo dessas origens, despontam diferentes oportunidades. Uma delas é a que nos oferece a revisitação de um documento referencial do século I, conhecido como a “Didaquê”.
          O que terão a dizer às cristãs e cristãos de hoje sobre um documento do século I? Por que ocupar-nos do passado, se bem outros são os desafios de hoje? Mais de dezenove séculos são transcorridos desde a elaboração da Didaqué, valerá a pena buscar saídas nesse documento para os entraves hoje enfrentados pelos cristãos e cristãs inconformados com as estruturas desse mundo, e que por isso buscam transformá-lo?
Essas e outras perguntas é que nos motivaram a tecer algumas considerações acerca do que pode ser colhido num texto como a Didaquê.
          Iniciamos com uma breve notícia acerca do caráter e da estrutura do documento em apreço que, no tópico seguinte, buscamos descrever e resumir-lhe os pontos-chave. Em seguida, no tópico 3, buscamos examinar suas continuidades e descontinuidades como referência para os dias de hoje. Por fim, no item 4, tentamos examinar em que aspectos a Didaquê implica desafios aos cristãos e cristãs de hoje.
1. Uma breve notícia acerca do caráter e da estrutura da Didaquê 
          Decisiva fonte da fé cristã, a Sagrada Escritura foi sendo escrita e definida, como se sabe, durante um longo período. Na experiência histórica de Jesus, ainda não existia o Novo Testamento. Este foi sendo escrito depois de sua morte e ressurreição, a partir das compilações que foram sendo feitas, por discípulos seus, com base nos diversos relatos comunitários. Relatos muito variados, com base nos quais foi sendo definido o Novo Testamento. Entre esses relatos figuram, inclusive, os escritos apócrifos, termo de origem grega que quer dizer “escondidos”. Escondidos por várias razões, como aponta, por exemplo, o historiador Eduardo Hoornaert (em Origens do Cristianismo. Brasília: Ser, 2002; A Memória do Povo Cristão. São Paulo: Loyola, 1986): além de serem proibidas as práticas cristãs, por se negarem, os cristãos, a prestar culto ao imperador, também pelo hábito então vigente de se destruir documentos dos inimigos ou os escritos com os quais não se concordava. Isto não impedia que os escritos então compilados despertassem um vivo interesse entre os cristãos, quase todos levando uma vida de muita simplicidade. Entre os escritos apócrifos destacam-se evangelhos, cartas, apocalipses e vários outros documentos. Não havia, então, uma definição oficial sobre quais os “verdadeiros” (os canônicos)  e quais os “falsos” ou pouco credíveis. Vários teólogos e vários dos chamados padres da Igreja os aceitavam como válidos.
          Com o decorrer do tempo, boa parte desses documentos findou não sendo incluída no texto oficial do Novo Testamento. Entre eles, a Didaché, que, no entanto, sempre foi uma referência forte citada pelos documentos oficiais da Igreja.
          A palavra “Didaché” (há também quem grafe “Didaqué”, “Didaké, “Didakê”) é uma expressão transliterada do termo grego Διδαχń, que quer dizer instrução, doutrina, ensinamentos pregados pelos doze apóstolos. Embora não haja uma precisão quanto ao ano exato de sua compilação, estima-se tratar-se de um escrito compilado entre os anos 60 e 90 da era cristã. A despeito de figurar no título do próprio documento a menção explícita “Ensinamento dos doze apóstolos”, ou em grego (ΔΙΔΑΧΗ ΤΩN ΔΩΔΕΚΑ ΑΠΟΣΤΟΛΩΝ), estima-se que não tenha sido da autoria direta dos apóstolos, mas uma compilação coletiva elaborada pelas comunidades que viveram próximas dos apóstolos. Constitui um documento dos mais importantes para as comunidades cristãs, não apenas do século I, mas assim também considerado pelas comunidades dos séculos seguintes.
          Compõe-se de dezesseis capítulos de pequena extensão. De fato, não é  um escrito longo. Está contido em poucas páginas. Destaca-se pela sua densidade e pela forma didática de exposição da doutrina cristã, de modo a focar os pontos nucleares da mensagem de Jesus. Apresenta um conteúdo de fácil e direto cotejamento com textos neotestamentários tais como o Evangelho segundo Mateus, o Evangelho segundo Lucas, a primeira Carta de Paulo aos Coríntios, bem como a Carta aos Romanos, a Carta aos Tessalonicenses, a Carta aos Efésios, os Atos dos Apóstolos, a primeira Carta de Pedro, a Carta aos Hebreus, o Apocalipse.
2. Os pontos-chave da Didaquê 
          A “Didaquê” compõe-se de dezesseis breves capítulos, distribuídos em quatro partes. A primeira é intitulada “Os dois caminhos”, e compreende os seis primeiros capítulos que se ocupam, por conseguinte, de definir “o caminho da vida” (“o odos ths zwhs”); e “o caminho da morte” (“tou qanatou odos”); a segunda parte é intitulada “Celebração da vida”, e compreende quatro capítulos, do sétimo ao décimo; a terceira parte intitulada “Vida comunitária”, estende-se do capítulo XI ao XV, enquanto a quarta e última parte, intitulada “Perseverar até o fim” é apresentada num único capítulo, o XVI.
          Tratemos agora de fazer uma sinopse de cada um dos dezesseis capítulos.
          Capítulo I: O capítulo I comporta seis pontos-chave, que passamos a resumir. O primeiro, de tão denso, resume a essência da mensagem cristã: Eis as palavras com que inicia o Documento: “Há dois caminhos: o da vida e o da morte, e muita diferença há entre os dois caminhos.” (1); O caminho da vida consiste em amar a Deus e ao próximo, o que implica não fazer a outrem o que não queremos que nos seja feito (2); Amar os inimigos e perseguidores e por eles orar, e não amar apenas as pessoas que nos amam (3); Afastar-nos dos desejos mundanos, não retribuindo o mal com o mal, mas fazendo o bem. (4); Dar a quem necessita, sem esperar recompensa. Em caso de necessidade, quem tomar de outrem deve ser considerado inocente (“ei men gar creian ecwn lambanei tis, aqwos estai,”) (5);Ter discernimento para saber a quem doar uma esmola. (6).
          Capítulo II: O capítulo II sublinha o cuidado e o carinho que os cristãos são chamados a testemunhar nas micro-relações do cotidiano. Trata de apresentar critérios e princípios a iluminar os procedimentos do dia-a-dia dos cristãos. Vale, a esse propósito, atentar para a visível confluência com os critérios e balizas apresentados no Evangelho segundo Mateus, especialmente os capítulos de 5 a 7. Em outras palavras, este segundo capítulo da Didaché chama nossa atenção especialmente aos nossos procedimentos em relação ao nosso próximo: daí iniciar com essas palavras: “Segundo mandamento da Doutrina”.A partir daí indica um certo número de casos concretos do “caminho da morte”, a serem evitados pelos cristãos:
          A primeira lista (Didaché, II, 2): o homicídio, o adultério, a pedofilia, a prostituição, o furto, a prática da magia e o infanticídio, enquanto o item 3 do mesmo capítulo é acrescido de outras proibições correspondentes ao “caminho da morte”: a cobiça de coisas alheias, o falso juramento, falso testemunho, insulto e rancor.
          E segue a lista até o item 7, exortando os cristãos a não incidirem em procedimentos que conduzem à morte: a indecisão, a falsidade (4); “Não será tua palavra falsa nem estéril, mas completa.” (5); a avareza, o roubo, a hipocrisia, maledicência, orgulho, desejo perverso contra o próximo (6); o ódio ao próximo, mas com a disposição para aconselhá-lo (7).
          Capítulo III: Este também segue indicando procedimentos que conduzem ao “caminho da morte”: a maldade ou o que lhe seja semelhante (1); a cólera, a ambição, a disposição para a discórdia (2); o desejo desgovernado (“epiqumia”), a fornicação, a indecência, o olhar de superioridade (3); práticas que induzem à idolatria tais como a adivinhação, técnicas de encantamento, astrologia (4); prática do engodo ou enganação que conduz ao roubo, avareza, presunção (5); rabugice ou resmungo, blasfêmia, arrogância, fofoca (6); retornando aos conselhos do caminho da vida, recomenda a humildade, pois os humildes herdarão a terra (7); magnanimidade, misericórdia, bondade, concórdia, prudência no falar (8); evitar o auto-elogio e a soberba, devendo ocupar-nos das coisas justas e humildes (9); atribuir antes de tudo a Deus as realizações bem sucedidas (10).
          Capítulo IV:Recordar incessantemente aquele que te fala a palavra de Deus, e prestar-lhe honra, pois de onde ela fala aí o Senhor se acha (1); buscar cotidianamente o rosto dos santos, de modo a repousar em suas palavras (2); não provocar cismas, mas conviver com quem discorda, decidindo com justiça, corrigindo o erro sem condenar os errados (3); não hesitar, sendo teu sim, sim, e teu não, não (4); não se dispor apenas a receber, mas aprender também a dar (5); o ato de dar libera os pecados (6); dar sem murmurar (7); dividir tudo com os irmãos, sem nada reivindicar como propriedade sua, pois se na imortalidade tudo é comum a todos, muito mais deve ser na vida mortal (8); ensinar o temor de Deus aos filhos (9); nada impor por rancor aos escravos (10); que os escravos se submetam ao seu senhor que representa a Deus (11); odiar toda hipocrisia e o que não for agradável a Deus (12). Guardar intactos os mandamentos e as coisas recebidas (13); confessar-nos com os irmãos, e não ir para a oração com coração de perversidade (14).
          Capítulo V: Aqui tem lugar  a caracterização do “caminho da morte”, que é descrito como “cheio de maldições. homicídios, adultérios, paixões, fornicações, roubos, idolatrias, práticas mágicas, feitiçarias, rapinas, falsos testemunhos, hipocrisias, duplicidade de coração, fraude, orgulho, maldade, arrogância, avareza, conversa obscena, ciúme, insolência, altivez, ostentação e ausência de temor de Deus.” (1); o item seguinte lista os que andam por esses caminhos, dentre os quais são mencionados os perseguidores dos bons, os inimigos da verdade, os adeptos da injustiça, os amantes das coisas vis, os ávidos por recompensa, os que não se compadecem pelos pobres e sofredores, os que defendem os ricos e os juízos injustos. (2)
          Capítulo VI: Começa com uma simples exortação, alertando para não permitir que se afaste do caminho do bem, já que o outro não pertence a Deus (1); Para ser perfeito, importa fazer o possível para carregar o jugo do Senhor (2); Deve-se evitar comer tudo o que for sacrificado aos ídolos, o que é considerado como um culto a deuses mortos (3).
          Capítulo VII: Inicia-se aqui a segunda parte da Didaquê, tratando da celebração da vida, ou seja, as celebrações litúrgicas e cúlticas dos antigos cristãos: o batismo, o jejum, a oração, a eucaristia... O capítulo VII trata do batismo, ordenando que se batize em água corrente, com a conhecida fórmula “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. (1). Não se dispondo de água corrente, deve-se batizar com outra água, podendo ser fria ou, na falta desta, água quente. (2). No caso de não haver água corrente, deve-se batizar derramando-se água três vezes sobre a cabeça, pronunciando-se a fórmula conhecida. (3). Antes do batismo, devem jejuar o batizante e o batizando (este por um ou dois dias) e quem mais puder. (4).
          Capítulo VIII: Agora se orienta em relação ao jejum e à oração. Quanto ao primeiro, a Dudaquê determina que os dias do jejum não devem coincidir com os dias do jejum dos fariseus (o segundo e o quinto dias da semana), devendo ser o quarto dia e o parasceve (a sexta-feira, dia da preparação do sábado). (1). A oração é a que Jesus ordenou no Evangelho: o Pai Nosso (terminando com as palavras: “porque teu é o poder e a glória para sempre.” (2). Oração a ser rezada três vezes por dia (3).
          Capítulo IX: O capítulo IX ocupa-se da celebração eucarística (1), para a qual se pronunciam sobre o cálice as palavras: “Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A Ti a glória para sempre.” (2). Em seguida, sobre o pão partido, diz-se: “Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A Ti a glória para sempre.” (3). Depois, se diz: “Do mesmo modo como este pão partido tinha sido semeado nas colinas e depois recolhido para se tornar um, assim também tua Igreja seja reunida desde os confins da Terra no teu Reino, porque tua é a glória e o poder, por meio de Jesus Cristo, para sempre.” (4). O capítulo termina com uma advertência: “Ninguém coma nem beba da eucaristia sem que tenha sido batizado em nome do Senhor, porque sobre isso o Senhor disse: “Não deis as coisas sagradas aos cães.” (5).
          Capítulo X: Encerrando a parte celebrativa, o capítulo X assim orienta sobre a ação de graças, “depois de saciados” (1): “Nós te agradecemos, Pai santo, por teu santo nome que fizeste habitar em nossos corações, e pelo conhecimento, pela fé e imortalidade que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A Ti a glória para sempre.” (2). Graças são rendidas ao Senhor todo-poderoso, criador de todas as coisas, pelo prazer do alimento e da bebida concedido aos homens, mas especialmente pelo alimento e pela bebida espirituais a nós concedidos. (3) O agradecimento ao Pai é feito, antes de tudo, por ser Ele poderoso, a quem se deve a glória para sempre. (4). Segue a oração para que Deus se lembre da Igreja, e a livre de todo o mal, e a aperfeiçoe, e a reúna dos quatro ventos, santificando-a para o Reino que lhe preparou, por seu poder e glória. (5). Que Sua graça venha e este mundo passe. Quem é fiel venha, e quem não é, se converta. Maranatha. Amém.” (6). Enfim, que se deixe que os profetas dêem graças à vontade! (7).
          Capítulo XI: Neste capítulo, inicia-se a terceira parte da Didaquê, acerca da vida comunitária. Quem chega para ensinar o que foi dito antes, deve ser acolhido (1). Deve-se ter discernimento para distinguir os verdadeiros pregadores e os perversos que vêm para ensinar outra doutrina. A estes deve-se evitar, mas aqueles devem ser acolhidos “como se fossem o Senhor.” (2). Os apóstolos e os profetas devem ter o tratamento recomendado pelo Evangelho. (3). Todo apóstolo deve ser recebido como se fosse o Senhor (4). Este deve ficar um dia ou dois; caso fique três, é um falso profeta. (5).Ao partir, o profeta leva só o pão necessário até que chegue a outro lugar. Se pedir dinheiro, é um falso profeta. (6). Pecado imperdoável é pôr à prova ou julgar um profeta falando sob inspiração. (7).  O verdadeiro profeta vive como o Senhor, não apenas fala inspirado. É assim que se reconhece o verdadeiro e o falso profeta (8). O verdadeiro profeta, sob inspiração, manda preparar a mesa, mas dela não come. (9). “Todo profeta que ensina a verdade, mas não pratica o que ensina, é um falso profeta (“πς δ προφτης διδσκων τν ληθειαν, ε  διδσκει ο ποιε, ψευδοπρφτης στ.”) (10). A exemplo do que ocorria aos profetas antigos, será julgado por Deus o profeta que não ensina a fazer como ele faz. (11). Não se deve atender a quem pede dinheiro ou outra coisa, a não ser se pede para outros necessitados. Neste caso, não se deve julgá-lo. (12).
          Capítulo XII: Trata do dever de acolher a quem venha em nome do Senhor, com o necessário discernimento, para evitar-se os aproveitadores (1). A hospitalidade de quem visita deve durar de dois a três dias (2). Em caso de um período longo, supõe-se que o visitante exerça uma profissão e trabalhe para se manter. (3). Caso não tenha profissão, deve-se agir com prudência para que um cristão não viva na ociosidade (4), e caso ele não aceite, deve-se ter cuidado com ele, pois “é um mercenário de Cristo” . (5).
          Capítulo XIII: Trata da sustentação do profeta, pois todo verdadeiro profeta faz jus ao seu alimento (I). Este também é o caso do verdadeiro mestre: como todo operário, é digno do seu alimento. (2). Visto que os profetas equivalem aos sumos sacerdotes de vocês, dêe-lhes as primícias de seus produtos e animais. (3). Não tendo profeta, dêem isso aos pobres. (4). Se fizer pão, proceda do mesmo modo (5).Ao abrir uma vasilha de vinho ou de óleo, dê ao profeta a primeira parte. (6), Enfim, de tudo quanto possui, proceda do mesmo modo, conforme lhe pareça oportuno. (7).
          Capítulo XIV: É consagrado à celebração dominical. A Didaquê orienta que os cristãos se reúnam aos domingos para partilhar o pão e render graças, após haverem confessado os pecados (1). Quem tiver pendência com o irmão, não deve participar da partilha do pão, sem que antes se tenha reconciliado. (2). Oferecer um sacrifício puro, em todo tempo e em todo lugar, é uma exigência d´Aquele rei e chamado o Admirável. (3).
          Capítulo XV: Orienta como deve ser a convivência comunitária/eclesial, recomendando escolher bispos e diáconos dignos, que sejam homens cordatos, desprendidos do dinheiro, amantes da verdade, provados, por exercerem os ministérios de profetas e mestres. (1) Devem ser respeitados com a mesma dignidade dos profetas e mestres. (2). Devemos corrigir-nos mutuamente, em paz, como recomenda o Evangelho. E quem ofender o outro, não seja escutado até que se arrependa. (3). Orar, dar esmolas e praticar outras boas obras, com a discrição recomendada pelo Evangelho. (4). 
          Capítulo XVI: A quarta e última parte da Didaquê, intitulada “Perseverar até o fim” está contida num só capítulo, e distribuída em oito ítens. Importa vigiar, manter acesas as lâmpadas e o cinto no lugar, pois não sabemos a hora em que o Senhor vai chegar. (1). Manter-nos reunidos para verificar o que nos convém, para nos mantermos firmes até o último momento. (2). Nos últimos dias, multiplicar-se-ão os falsos profetas e os sedutores, as ovelhas se transformarão em lobos, e o amor em ódio. (3). “Crescendo a injustiça, os homens se odiarão, se perseguirão e se trairão mutuamente. Então, aparecerá o sedutor do mundo como se fosse o Filho de Deus, e fará sinais e prodígios. A terra será entregue em suas mãos, e cometerá crimes como jamais foram cometidos desde o começo do mundo.” (4). Todos passarão por uma prova. Muitos se escandalizarão e perecerão. Os que permanecerem firmes na fé serão salvos por aqueles que os outros amaldiçoam. (5). Então, aparecerão os sinais da verdade: a abertura do céu, o toque da trombeta e a ressurreição dos mortos. (6). Virá a ressurreição, conforme está dito: “O Senhor virá e todos os santos estarão com ele.” (7). “Então, o mundo verá o Senhor vindo sobre as nuvens do céu.” (8). 
3. Cenário atual: descontinuidades e alguns sinais de continuidades com o espírito da Didaché 
          Em que pese uma considerável e múltipla distância que separa a Didaquê, da época em que foi elaborada, em relação aos dias atuais, vale destacar pontos de continuidade no universo de tantos aspectos de descontinuidade que prevalecem largamente. Comecemos por estes, sublinhando fatos, situações e ocorrências que atravessam as distintas (e complementares) esferas da realidade.
          No plano econômico, as contradições aparecem, a olhos vistos. A crescente supremacia dos grandes conglomerados transnacionais – e o Brasil já conta com um certo número! – a imporem aos Estados nacionais, sobretudo os periféricos, suas políticas econômicas de constante dilapidação do patrimônio público, em favor de um processo de privalização atuando com toda sua voracidade, nos diversos setores da economia. Os banqueiros – reconheceu de público o próprio Presidiente Lula – nunca lucraram tanto... De fato, esses e outros setores privilegiados da sociedade (o agronegócio, por exemplo) têm tido um ritmo considerável de enriquecimento, enquanto as migalhas do orçamento são dirigidas às camadas populares. Como nos governos anteriores, até estas eram ainda mais raras e mais reduzidas, boa parte da população que vem tendo acesso a certas políticas compensatórias do atual Governo, se tem manifestado contente com o desempenho do atual Governo, não sem a fantástica ajuda de um “marketing” político de enorme eficácia...
          Na esfera política, os Estados nacionais – em especial os periféricos – alinham-se ao grande Capital, acatando servilmente as políticas econômicas que lhes são impostas, de cima para baixo e de fora para dentro. Seus parlamentos, se já tinham perdido força nas democracias ocidentais, hoje são meros figurantes ou coadjutores do Executivo que se limita, por sua vez, a cumprir as ordens vindas de cima. Expressão mais forte do pragmatismo como estratégia de poder, o aliancismo tem sido um instrumento que tem desaguado em reiterados descaminhos éticos.
          No terreno cultural, a rede Globo e outras do gênero é que têm ditado as regras para amplas massas da sociedade brasileira. Ao longo de suas respectivas emissões, tratam de fazer a cabeça da enorme maioria da população, dando-se até ao luxo de posar como grandes referências éticas e de cidadania... Seus programas reeditam, com requinte, a velha política romana do pão e circo. Está aí o famigerado “Big Brother” – que alcança recordes de audiência (fala-se em mais de 77 milhões! de seus telespectadores!), a espalhar fofocas e futilidades como o grande produto de fascínio geral. Encabeça, junto com outros programas e outros canais, um enorme rede midiática de consolidação dos valores do Mercado: o consumismo, o individualismo, o imediatismo, a estupidez, o conformismo, a abdicação de qualquer projeto utópico. Quem são hoje as grandes referências para a maioria de nossa juventude?
          As igrejas cristãs – longe de cumprirem seu papel de evangelizadoras da cultura, cada vez mais se acham impregnadas dos valores de Mercado. E não me refiro apenas às bravatas explícitas da Igreja Universal, com sua pomposa programação dirigida aos empresários com seus “Congresso de estratégia da fé para o sucesso empresarial e financeiro”. Outras fazem isso, ainda que de modo sutil... Na Igreja Católica, prevalecem os apelos ao espetáculo, às missas-show, animadas pelos padres cantores, alguns dos quais “precisando” viajar de jatinho nababescamente financiado (circulou até uma notícia dando conta de um contrato de 221 mil reais feito pela Prefeitura de Natal com o Pe. Fábio Melo, para cujo transporte – seu e dos acompanhantes - em jatinho, para o que foi desembolsada a importância de 88 mil reais). Não é por acaso que essas figuras têm espaço escancarado na mídia convencional.
          Não vamos, contudo, esquecer as “correntezas subterrâneas“ que nos enchem de esperança, ainda que se trate de experiências alternativas moleculares. Situam-se um tanto dispersas, aqui e ali, sobretudo em espaços pouco visíveis, pelas periferias urbanas, nas favelas e bairros populares,  e pela zona rural, nos assentamentos e acampamentos. São pequenos grupos, pequenas comunidades inseridas no meio popular. Desses trabalhos no meio dos pobres há tantos relatos edificantes. Vem-me espontaneamente à memória um deles, relatado numa carta profética compartihada por Joseph Bouchaud, com seus 86 anos, padre da mesma congregação de Alfredinho (Fihos da Caridade), que  viveu longo tempo em favelas e bairros populares, na América Latina, na Ásia e na África. Após relatar muito do que viu, ouviu e sentiu no meio dos pobres e sofredores, e de denunciar a postura insensível da própria Igreja, face à realidade concreta dos pobres, conclui propondo a todos – “do cristão de base ao papa” – perguntar-nos: “O quê diria e o quê faria Jesus, se vivesse hoje?”
          Essas “correntes subterrâneas” também se fazem presentes  segmentos de movimentos sociais do campo e da cidade, comprometidos com a construção da alternatividade, seja seguindo lutando pela Reforma Agrária, seja resistindo contra os projetos faraônicos, como o Projeto da Transposição, a construção de gigantescas hidrelétricas na Amazônia como a de Belo Monte, a decretar a morte de povos indígenas e ribeirinhos da região.. São segmentos da sociedade civil organizada, ora despontando de setores marginais de algumas igrejas, ora vindo de setores de alguns movimentos sociais com projeto alternativo de sociedade, envolvidos com experiências de resistência ao sistema imperante, ao mesmo tempo em que  protagonizam ações instituintes, a longo e médio prazos. Todos enfrentam uma luta renhida num contexto adverso de freqüentes casos de cooptação de lideranças antes comprometidas, por suas práticas, com a construção da alternatividade ao sistema vigente. Num contexto em que boa parte de antigas lideranças de movimentos ou de setores militantes do meio popular e eclesial que antes se insurgiam contra o “status quo”, hoje já não incomodam tanto o sistema ou mesmo já lhe são funcionais. Mas, há os que seguem apostando na memória utópica... 
          Em breve, como se percebe, a atual conjuntura se perfila como um período em que predomina largamente o que temos chamado de uma cultura da ambigüidade. Não se trata de negar a ambigüidade como um traço da condição existencial, com a qual temos que lidar, na perspectiva de sua superação. Trata-se, antes, da tendência predominante de se assumir como um dado acabado do ser humano, e, diante do qual, só nos resta aceitar como algo definitivo e não susceptível de superação, o que é meio caminho andado para a prevalência do discurso e sobretudo das práticas do discurso da racionalidade cínica. Ou seja: trato de garantir que continuo apostando num mundo alternativo, socialista, comunista, enquanto minhas atitudes concretas do dia-a-dia sinalizam para uma mudança sensível de minhas práticas... Caso apareça alguém a me cobrar satisfação de minhas práticas, eu já tenho pronta uma lista de autojustificativas. Só que mais e melhor do que minhas palavras mágicas, falam minhas práticas concretas. E aí a máscara cai... 
4. Desafios para os Cristãos e Cristãs de hoje 
          No que diz respeito especificamente aos cristãos e cristãs de diferentes igrejas, a situação e os desafios não são tão diferentes. A grande maioria se acha fascinada pela moda, em distintos casos, a começar pela aposta firme e crescente na força do “marketing”. Aí estão os tele-evangelistas de todas as denominações. Não menos as cúpulas eclesiásticas, cujo comportamento dominante é o de se adequarem às regras do jogo, para o que tratam de se armar de astuciosos argumentos autojustiificativos.
          É aqui que o espírito da Didaché nos dá a impressão de estar a milhas astronômicas de nós, e parecendo já quase nada ou muito pouco nos dizer respeito... Os valores da Didaché soam como ultrapassados, não tanto pela letra (a merecer sempre um esforço de atualização conforme cada época), mas especialmente pelo seu espírito... Com efeito, quando confrontados com os valores característicos dos primeiros cristãos, o que pensarão os atuais protagonistas, fascinados pelos novos apelos, de princípios tais como:
- fazer o bem, na gratuidade, sem nada esperar em troca (I,5);
- quem estiver em extrema necessidade pode tomar dos outros (I,5);
- não se prestar apenas a receber, mas dispor´se a também dar (IV,5);
- dividir tudo com os necessitados, nada reivindicando como propriedade (IV,8);
- evitar comer coisas dos ídolos (VI, 3);
- os apóstolos e os profetas devem ser recebidos como se fossem o próprio Senhor (XI, 3 e 4);
- “Ao partir, o profeta leva só o pão necessário até chegar a outro lugar. Se pedir dinheiro, é um falso profeta.” (XI,6);
- “Todo profeta que ensina a verdade, mas não pratica o que ensina é um falso profeta.” (XI,10);
- a hospitalidade é uma forte marca dos cristãos. Para evitar-se abusos, em caso de visita por um longo período, supõe-se que o visiatnte trabalhe para se manter. (XII, 3).
- aos profetas, aos mestres e aos pobres deve ser dado o melhor dos produtos da casa (XIII, 3 e 4);
- a escolha de bispos e diáconos deve incidir sobre homens dignos, cordatos, amantes da verdade, desapegados do dinheiro, provados, já que exercem os ministérios de profetas e mestres (XV, 1);
- é preciso manter-nos vigilantes com as lamparinas acesas, e perseverar até o fim, pois aparecerão falsos profetas, traições e desvios. (XVI, 2-4).


Considerações adicionais 
          Vários pontos chama por certo nossa atenção, concluída a leitura da Didaché. Um desses aspectos é a extraordinária simplicidade dos ensinamentos, acentuando a relevância para os primeiros cristãos das virtudes da convivência diária. Dimensão tão característica da gente pobre, afeita ao trabalho, ao enfrentamento dos obstáculos do dia-a-dia.
          Outro aspecto a merecer destaque é a intimidade com a Palavra de Deus: a Didaché respira a todo instante os ensinamentos da Boa Nova de Jesus, haja vista, por exemplo, a freqüência de passagens evangélicas, direta ou indiretamente constante.
          A Didaché também encanta pela clareza de seus ensinamentos, sem qualquer “teologuês”, coisa bem simples do cotidiano dos pobres.
          Ao encerrarmos a leitura orante da Didaché, e ao confrontá-la, ainda que ligeiramente, com as práticas hoje hegemônicas na sociedade e nos distintos espaços eclesiásticos, perplexos nos perguntamos: como é possível que tenhamos nos distanciado tanto das nossas fontes? O que hoje prevalece, à parte as exceções, tem mesmo a ver com os fundamentos do Evangelho?
          Que sejamos abertos e solícitos ao que o Espírito tem a dizer a todos e a cada um, cada uma de nós, hoje!


João Pessoa, 23 de fevereiro de 2010. celebração da memória de Policarpo, bispo e mártir, companheiro de João Evangelista, no discipulado de Jesus. 

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