quinta-feira, 7 de julho de 2016

REMENDAR OU REINVENTAR O MUNDO, A PARTIR DE NÓS? Paulo Freire nos instiga, nos provoca, nos convoca...


 Alder Júlio Ferreira Calado

Há cerca de vinte anos, pouco depois da “grande viagem” de Paulo Freire, ousei ensaiar uns versos, em memória e homenagem deste Tecelão da Utopia. O mote das aludidas estrofes (dez estrofes, em versos decassílabos, com rimas abbaaccddc) era o seguinte: “Paulo Freire vaguei no Universo, atiçando as centelhas da Utopia”... (cf.
http://www.lainsignia.org/2005/enero/cul_068.htm ). Com efeito, a vida, a obra, o legado freireanos estiveram - e seguem estando - organicamente vinculados à esperança (não no sentido de aguardar passivamente, mas no sentido freireano de “esperançar”) de um mundo novo, alternativo à barbárie capitalista, que agride e avilta, de mil formas, a Mãe-Terra, inclusive os humanos e toda a comunidade dos viventes. Coisifica o ser humano, impede ou bloqueia o processo de humanização (aqui, me vem ao espírito o título de um famoso documento/manifesto da ACO, em Recife, em 1970, no início do período mais tenebroso da ditadura empresarial-militar: “Nordeste: o homem proibido”). Não desumaniza ou avilta apenas suas vítimas – a Terra e a imensa maioria da humanidade, mas também desumaniza seus algozes – alertava Freire -, por a todos reduzir a objetos do lucro, de uma ganância necrófila. Toda a Terra geme em dores de parto, vítima das formas mais atrozes de agressão, de exploração, de esgotamento de bens do Planeta, ao protagonizar sucessivas e crescentes ameaças aos filhos e filhas da Mãe-Terra. A humanidade clama por uma sociabilidade alternativa a essa barbárie.

No Brasil, na América Latina e em outras partes do mundo, vimos assistindo, de longa data, a crescentes sinais de exaurimento do atual modelo hegemônico, ao qual não têm faltado, aqui e alhures, heroicas resistências. Sucede que raramente, ou quase nunca, têm resultado eficazes. Aqui, ali, até que aliviam temporariamente aspectos pontuais nocivos do sistema, mas, por não haverem sido tocadas suas raízes, logo retornam seus efeitos deletérios. Amplo, sem embargo, tem sido, no Brasil e em escala planetária, o leque de resistências que seguem assumindo um preponderante caráter de “remendo”. Trata-se de reações, quase sempre fragmentárias e episódicas, opostas “a varejo”, que se têm mostrado reiteradamente impotentes – “et pour cause!”! - para responderem, à altura, aos desafios colocados.

Eis por que, ao (re)visitarmos Paulo Freire, nos damos conta de sua provocação a ousarmos mais do que meras reações: sem prejuízo destas, somos historicamente convocados a ensaiarmos, desde aqui e agora, passos moleculares, alternativos à lógica e ao espírito do modelo hegemônico imperante. Nas linhas que seguem, é disto que cuidaremos.

Por uma leitura de mundo à altura dos atuais desafios


Por décadas a fio, acostumamo-nos a enfrentar, no varejo, ofensivas em série das forças adversárias, sucessivos e crescentes escândalos, intermináveis malfeitos e desmandos – por vezes, de responsabilidade compartilhada -, sem que sobre isto nos empenhássemos num enfretamento articulado de tais impasses, ao mesmo tempo em que cuidássemos de ousar passos alternativos a essa ordem hegemônica. Aqui, ali, até que tal inquietação era verbalizada, mas pouco ou nada assumida como verdadeira prioridade. Assim agindo, ainda que expressemos por palavras nossa ira contra o “establishment”, no fundo, objetivamente, acaba(va)mos facilitando as coisas favoráveis ao mesmo sistema, perito que é em contornar nossas reações desacompanhadas de passos alternativos à lógica e ao espírito da ordem hegemônica que dizemos combater. Bem sabemos, aliás, da recorrente engenhosidade da classe dominante brasileira, de forjar mil “arranjos” de cúpula, fingindo mudança, para tudo seguir como antes... Figuras como José Honório Rodrigues (cf. seu clássico “Conciliação e Reforma no Brasil...”) bem nos ajudam a refrescar nossa memória histórica. A sagacidade vulpina das forças hegemônicas brasileiras só concorre com a impactante “ingenuidade” de parcelas mais expressivas de nossas forças de esquerda: em diversas ocasiões estas se renderam à esperteza (e “expertise”) das elites brasileiras. E todas as vezes se deram mal, mas seguem apostando  nos arranjos de cúpula... 

Não raro, assumir posição contundente, aos olhos de expressivas parcelas de protagonistas das forças populares, é interpretada como atitude que não corresponde a sujeitos sintonizados com o seu tempo. “É preciso ser homem do seu tempo!”, diz-se, como se tal atributo fosse sinônimo de acomodação ou passividade ante situações insustentáveis. Tal conduta nos remete a algumas figuras de referência, Freire inclusive, ao evocarem distintas situações semelhantes. Em seu “Educação como Prática da Liberdade”, encontramos elementos de reflexão que nos sacodem, pela relevância e atualidade (ainda que sua reflexão se atenha a inícios ou meados dos anos 60...):

“O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu antidiálogo, que, impondo ao homem mutismo e passividade, não lhe oferece condições especiais para o desenvolvimento ou a “abertura” de sua consciência que, nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais crítica. Sem esta consciência cada vez mais crítica não será possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade em transição, intensamente cambiante e contraditória.” (p. 56).

Referia-se, então, a práticas estratégicas e táticas bem ao sabor dos setores dominantes, como instrumento de dominação: por meio de medidas assistencialistas, manter as massas populares conformadas, à maneira das táticas usadas, na Roma antiga, do famoso artifício “pão e circo”, de modo a controlar e conter os impulsos subversivos de uma massa faminta ou maltratada. Prática sempre combatida pelas forças de esquerda, quando praticadas pelas forças adversárias... Por mais difícil que se apresente, semelhantes procedimentos vieram à baila, também entre nós, e agora, já não como política implementada por forças de direita.... Isto tem muito a ver com a falsa interpretação de que, sendo nós, os proponentes e implementadores de tais políticas assistencialistas, a coisa é diferente...  Bastaria, para tanto, manter afinado o discurso ”contra as elites”.

Não poucos são, a este respeito, os procedimentos falaciosos que acabam, não raro, “naturalizados” ou consagrados como procedimentos normativos, assumidos como próprios do dever ser. Um outro exemplo ilustrativo temos na superestimação do ato de votar como expressão suficiente para a plenitude democrática, do exercício “supremo” de cidadania, seja para quem elege, seja para quem é eleito. Em alguns casos, chega a ser a única ou pelos menos a forma decisiva de legitimação definitiva de expressão democrática, ainda que daí estejam ausentes outros componentes essenciais do processo democrático, tais como o compromisso de se efetivar o programa pelo qual se foi eleito, a necessidade de controle social sobre os eleitos e eleitas, bem como o instituto de revogabilidade, sem deixarmos de sublinhar o direito/dever de cada cidadã(o), de participar decisivamente por meio de seus organismos de democracia direta, (conselhos populares círculos de cultura, núcleos...) ainda que em contexto de democracia representativa. Ainda um exemplo ilustrativo: a tendência a uma espécie de ética da conveniência, presente em situações várias, como, por exemplo, na superestimação de procedimentos de caráter formalista, como vem sucedendo no processo de “impeachment”. Aí se tem observado um debate, no mínimo, questionável – para não se dizer infrutífero -, quando se aventura abusivamente ao ofício de hermeneutas das leis, afoita e esterilmente concorrendo-se com especialistas do Supremo Tribunal Federal, tribunal ao qual compete, em última instância, dirimir pendências constitucionais, inclusive o que é “golpe” e o que não é, do ponto de vista jurídico, a despeito do juízo singular de cada cidadã(o) sobre o caso em tela, até porque tal decisão também comporta, como se sabe, uma dimensão também política. Questiona-se, aqui, a eficácia do combate, no referido terreno, em comparação aos espaços mais favoráveis de disputa – a mobilização da sociedade, a partir de suas principais forças, mas priorizando outras ferramentas portadoras de chances promissoras. O campo jurídico, com efeito, não corresponde a um campo ou terreno de combate favorável às classes populares, até por se tratar de instrumento componente de um aparelho de Estado ( o Judiciário).

Por mais de uma vez, a esse respeito, tenho me socorrido de clássicos, não apenas como Marx e Freire, mas também a figuras como Cornelis Castoriadis e Claude Lefort. De Castoriades, por exemplo, tenho escutado, mais de uma vez, uma entrevista que considero valiosa, na perspectiva da invenção democrática como um processo permanentemente instituinte, o que não nos dispensa a atenção às lições do passado. Vale a pena revisitar Castoriades, cf.o” link” abaixo:    


retornando a Freire, inclusive na obra acima citada, percebemos a pertinência e acuidade de sua crítica, em especial, quando alude à contraposição entre “radicais” e “facciosos”:


Mesmo sabendo que a origem da categoria “Práxis” remonta a priscas eras, não se pode negar o lugar privilegiado que tal concepção ocupa na vida, na obra, no legado de Paulo Freire, que lhe vem sobretudo da herança marxiana, combinada, antes, com o legado do Cristianismo da Libertação. A este respeito, entre vários autores, também ousei, em outra oportunidade, rastrear raízes do pensamento freireano, sobretudo, nessas duas correntes. (cf. o “link”: http://consciencia.net/rastreando-fontes-da-utopia-freireana-marcas-cristas-e-marxianas-do-legado-de-paulo-freire-por-alder-julio-ferreira-calado/).
A despeito da densa contribuição de Max Weber e de Ernst Troeltsch, quanto à dinâmica histórica de avanços e descensos das forças sociais inovadoras – em sua análise, Troeltsch deteve-se mais no caso do Movimento Anabatista que, após emergir impetuosamente contra todo o “establishment”, passou a acomodar-se ao mesmo -, importa sempre refletir criticamente acerca das condições concretas que intervieram e podem intervir, nesse processo, ora precipitando-o, ora contendo-o, ora até evitando-o. Aí comparece uma confluência de fatores inter-relacionados. Um deles, com forte incidência causal, tem a ver com o escanteamento, secundarização ou abandono do seu processo formativo, com graves consequências em sua práxis transformadora, inclusive de natureza ético-política. Em tal percurso de descenso, não são poucas as ocorrências ligadas ao descaso da Práxis (cf. Tese II sobre Feuerbach: o critério da verdade é a prática, não o discurso), descuido em relação ao que já se sabia acerca do caráter do Estado  (componente essencial do Capitalismo), distinção entre origem de classe e posição de classe, autonomia dos movimentos sociais populares diante do Mercado e do Estado, autofinanciamento, autogestão (importância dos núcleos...), alternância do exercício militante em cargos de coordenação-direção e militância na base, critérios de aliança política, orgânica e permanente interação entre direção-base, necessidade de se assegurar formação contínua, não apenas a militantes dirigentes ou coordenadores, mas também os militantes de base etc., etc.   Ainda como consequência deste quadro, pode-se mencionar a progressiva superestimação da pauta oficial do “establishment” (“golpe”/”não-golpe”, “provas jurídicas”/”não-provas jurídicas”, envolvimento individual de acusados/não envolvimento individual, etc.), enquanto, por outro lado, arrefece a atenção, em relação a bandeiras substantivas para as forças de mudança, tais como auditoria da dívida pública, combate aos paraísos fiscais, à evasão de divisas, à sonegação fiscal, à renúncia fiscal, à taxação das grandes fortunas e outras do gênero.

Não se trata de restringir apenas a Freire ou a Marx e a clássicos do gênero. É preciso que estejamos sempre abertos a discutir com pensadores comprometidos com a invenção democrática., tais como um Castoriadis ou um Claude Lefort (cf. uma reflexão do primeiro, pelo “link”;

Quando falamos em descaso ou abandono da teoria, convém ter presente a necessidade de se afastar uma concepção distorcida de teoria – infelizmente muito corrente, no senso comum – como algo abstrato, etéreo, descolado da prática (“uma coisa é a teoria; outra coisa bem distante é a prática”, diz-se), quando, em verdade, prática e teoria constituem faces da mesma moeda, dimensões, portanto, indissociáveis. Cabe aqui lembrar que é justamente nesta indissociabiliadade que se enraíza o conceito de “Práxis”. Eis por que ousamos dizer: mostra-me tua prática, e dir-te-ei qual é tua teoria. Por esta razão, debitamos a essa descabida cisão, uma série de equívocos em série cometidos por forças de esquerda...

Com Freire, para além de uma adequada leitura de mundo: urge reescrevê-lo

Uma adequada leitura de mundo constitui, por certo, um primeiro e indispensável passo, como condição sem a qual não se consegue intervir alternativamente na realidade que se tem. Aí reside um dos reconhecidos méritos do nosso Tecelão da Utopia. Não vem por acaso o subtítulo que encima o primeiro tópico. A este respeito, tornou-se famosa sua afirmação de que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Afirmação genial, sobretudo, quando situada no quadro do processo de letramento inicial. Aí já se pode vislumbrar seu compromisso com a “Práxis”, na medida em que, mais do que em ajudar os alfabetizandos a lerem palavras, ele está preocupado em ajudá-los a mudar o mundo. Numa das entrevistas por ele concedida, cuidaram de enaltecê-lo como criador de um método, ao que ele contestou, agradecido pelo reconhecimento, mas agregando que maior do que isto era sua “gula”: a de ajudar a transformar a realidade. Mais do que simplesmente “ler” a realidade, importava-lhe ajudar a transformá-la, como, aliás, sustentava o filósofo da Práxis, em uma de suas teses contrapostas a Feuerbach (Tese II), de que, diferentemente do que têm feito os filósofos, ao interpretarem o mundo de diversas maneiras, o que importa mesmo é transformá-lo.     

Também para Freire – e nós, com ele -, trata-se, sim, de nos empenharmos na mudança do mundo, inclusive pela via da educação: sozinha, lembrava Freire, a Educação não muda a realidade, mas sem ela, em vão se tenta transformar a sociedade. Como viabilizar, então, passos nessa direção? Receitas não há, bem o sabemos. Pelo menos de uma coisa temos certeza: de que pelas vias até aqui tentadas, a realidade social tem dado sinais de que se mantém (quase) inalterada, em suas estruturas.
A “gula” freireana, que compartilhamos, nos instiga a perseguir o horizonte libertário, também por caminhos alternativos. Nosso horizonte comporta uma tríplice tarefa: a de irmos forjando, desde o chão do quotidiano, desde aqui e agora, um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal, adequadamente articulados e em respeito à dignidade da Terra e de toda a comunidade dos viventes, em grande medida, nos termos propostos por François Houtart, em sua luminosa contribuição:
Em outras ocasiões, já tivemos oportunidade de enunciar elementos componentes dessa tríplice tarefa. Desta feita, seguem algumas linhas versando especificamente sobre o lugar do processo formativo contínuo, como fio condutor e articulador das referidas tarefas. Partimos de alguns questionamentos: de que formação contínua se trata? Quais as linhas-força de um tal processo formativo? Que lugar nele ocupa a contribuição ou protagonismo dos sujeitos individuais? 

Bem sabemos ser vão pretender da escola (da Educação Infantil à Pós-Graduação) uma formação contínua capaz de dar conta dos desafios e das aspirações dos sujeitos (individuais e coletivos) que se querem protagonistas de uma sociabilidade alternativa ao modelo vigente. Não bastasse ser o sistema de ensino oficial organizado ou controlado pelo Estado – parte componente essencial do sistema capitalista -, também sabemos que na escola passamos apenas um período de nossa vida. O processo formativo que nos interessa é ininterrupto, por definição. Deve ocupar-nos o dia todo e todos os dias. Mais importante: deve ser protagonizado, em todos os seus momentos (concepção, planejamento, execução, metodologia, avaliação...) pelos próprios protagonistas – mulheres e homens da Classe Trabalhadora, isto é, dos que vivem do seu trabalho. Outra razão para se tratar de processo formativo contínuo, tem a ver com a complexidade, a extensão e a multiplicidade temática e metodológica a serem tomadas em conta, quer no plano individual, quer no plano coletivo.

De fato, o processo formativo que interessa aos membros das forças sociais imbuídas da tarefa de construção de uma sociabilidade alternativa à ordem vigente, há de comportar uma diversidade de situações e dimensões que abarcam todo o existir. Trata-se de trabalhar, de modo concatenado e ininterrupto, as mais diferentes facetas da existência _ econômica, política, cultural_, de maneira a interligar os mais distintos aspectos da vida humana e do planeta:
- relações com o Cosmos;
- relações de espacialidade;
- relações ecológicas;
- relações de gênero;
- relações de orientação sexual;
- relações étnicas;
- relações geracionais;
- relações de caráter místico...


Tanto no que concerne ao temário, quanto no que diz respeito à metodologia, cada aspecto desses (e outros) há de ser experienciado, no processo formativo, sempre de maneira articulada e contextualizada. Quanto a cada aspecto do temário, tais dimensões são trabalhadas sempre a partir dos interesses suscitados pelos formandos, em seu dia-a-dia, e tomando-se em consideração seu perfil (individual e coletivo). Temário também trabalhado, de modo a atentar-se para uma adequada costura de passado-presente-futuro. Nesse sentido, pode-se começar por sondar dos formandos e formandas que tipo de organização societal corresponderia a suas aspirações: que tipo de sociedade atenderia às nossas aspirações, do ponto de vista econômico, do ponto de vista político, do ponto de vista cultural? Fazendo-se um paralelo com a sociedade que temos, tal consulta vai fluindo mais facilmente, à medida que se zelar pela dinâmica de trabalho, ou seja, sob a forma de círculo de cultura. Nesse sentido, sem qualquer pretensão de cópia ou reedição mecanicista, parece útil uma revisitação, por exemplo, da temática relativa aos círculos de cultura protagonizados pelo Movimento de Cultura Popular, não se dispensando inclusive uma consulta das páginas finais de “Educação como Prática da Liberdade”, onde se acham instigantes figuras inspiradoras desses círculos de cultura.
Aqui, joga um papel decisivo a atuação dos animadores ou animadoras desses círculos de cultura, cuja principal tarefa é a de ouvir, ponderar e selecionar palavras-chave, brotadas das rodas de participantes, capazes de comportar sentimentos e posições representativas dos referidos protagonistas. Palavras-chave que hão de inspirar os temas decisivos dos diversos encontros, permitindo fornecer múltiplos fios do seu quotidiano, do seu sentir, do seu pensar, do seu querer, do seu agir, do seu existir.
Articulado a esses momentos, há de se trabalhar, de forma mais didática, diferentes tempos da realidade. Aqui, também importa revisitar o passado de nossa história, não como um golpe de saudosismo, mas como uma busca de nossas raízes econômicas, políticas e culturais, capazes de oferecer-nos lições para o presente e para a construção do futuro. Cuida-se aqui de reavivar a memória histórica de nossa gente, suas lutas, suas conquistas, suas derrotas, seus acertos e erros. Tanto em relação aos sujeitos coletivos (movimentos sociais, associações, enfim organizações de base de nossa sociedade), quanto aos sujeitos individuais, aqui tendo como referência o incentivo ao estudo de biografias de nossos clássicos de referência.

 Como se percebe, este é apenas um de tantos aspectos a comporem uma proposta formativa contínua, a ter como protagonistas as organizações de nossa sociedade, envolvendo diretamente cada um de seus membros respectivos – de base e de coordenação. E só este ítem comporta uma imensa tarefa com relevante papel didático: o de oferecer aos formandos preciosos elementos biográficos de figuras de referência, ajudando a todos a compreenderem quão fecundo foi o seu percurso, e quão numerosos e embaraçosos foram os desafios enfrentados. Não se trata, por certo, de sugerir “imitação”, até porque tais figuras não pretendem ser reeditadas, mas reinventadas.
O exercício de rememoração da gesta de nossos ancestrais (coletivos e individuais) tem uma incidência concreta na arte de forjar – ou de irmos forjando – uma sociabilidade alternativa à atual ordem hegemônica, porque, como costumava dizer Eduardo Galaeano, “o passado tem muito a dizer ao futuro”. Mais do que isto, trata-se de uma via privilegiada de se exercitar a mística revolucionária, que permite aos protagonistas de uma nova sociabilidade cotejar criticamente experiências – bem sucedidas e mal sucedidas de ontem com as buscas de hoje, ajudando a fortalecer o querer revolucionário, inclusive por meio da disposição do exercício da autocrítica (individual e coletiva).

Um outro elemento constitutivo desta proposta formativa tem a ver com nossa contínua necessidade de atualizar, melhor dito: materializar, ou ir materializando, nossas tarefas revolucionárias, no chão do dia-a-dia.  Isto se faz, a partir das coisas “miúdas” ou aparentemente insignificantes ou invisíveis. Dá-se, por exemplo, por força da “curiosidade epistemológica”, da sede de saber despertada nos formandos, que, assim, vão se tornando observadores dos fatos e situações do cotidiano, vão se tornando aprendizes e praticantes do paradigma indiciário, atentos aos sinais, ensaiando interpretá-los: vão aprendendo a enxergar coisas e fatos que antes não eram capazes de alcançar; passam a ouvir coisas novas, em relação às quais antes eram surdos; passam a sentir coisas novas antes inacessíveis, passam a intuir situações novas. Para tanto, a arte da convivência comunitária tem um sentido todo especial. Sozinhos e isolados, jamais seriam capazes de protagonizar ações heurísticas, inovadoras. É a força transformadora da relacionalidade a ajudar-nos a superar, ou ir superando, nossa condição de seres inacabados, inconclusos. Tal aventura, ademais, é que nos vai permitindo ensaiar passos moleculares alternativos ao modelo vigente, à medida que vamos aprendendo a costurar os múltiplos fios da realidade, a conectá-los, conferindo-lhes sentido. 
Tal exercício de costura dos fios da realidade tem implicações concretas. Seu alcance incide, não apenas sobre o aprimoramento dos sentidos perceptivos. Também se favorece a dimensão volitiva (concernente ao querer) dos protagonistas, contribuindo melhor para aprimorar seu agir. Note-se que o exercitar-se na conexão dos fios da realidade não constitui uma operação apenas intelectiva, a favorecer apenas o bom pensar, mas se estende, de modo articulado, às demais dimensões do processo de humanização, alcançando o sentir, o querer, o agir, etc. (Ivandro da Costa Sales) Isto se dá, ao longo da vida, desde que se façam presentes as condições favoráveis a tal processo, sendo uma delas – a mais importante – a vida comunitária de diálogo, partilha e mútuo aprendizado, característica, por exemplo, dos círculos de cultura. Vivência comunitária que também incide diretamente na progressiva aquisição de consciência crítica também no assumir deveres e tarefas pessoais. Não se cuidada de apenas “receber” da comunidade, mas igualmente  de participar com sua contribuição efetiva.

À maneira de uma provisória conclusão dessas notas

Fartos têm sido os ensaios versando sobre a decisiva força transformadora da ação comunitária, na busca de superação do atual modelo, em direção à construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, com respeito à dignidade do Planeta, dos humanos e do conjunto dos viventes. E aqui também ratificamos e compartimos desse sentimento. Isto deve, sim, prosseguir. Sucede que, por vezes, certas formulações passam a impressão  de algo que se possa fazer, sem o necessário aporte pessoal. Nessas linhas, cuidamos de ressaltar, sem prejuízo algum da dimensão comunitária, o lugar e o papel insubstituíveis do protagonismo pessoal dos respectivos membros.

Com efeito, cada tarefa comunitária supõe também a ação de cada membro componente das comunidades. Em todos os processos de construção da nova sociedade. Talvez com maior força ainda no que se trata da ensaiar passos alternativos na construção de um novo modo de consumo, alternativo ao “establishment”. Para tanto, há um leque amplo de tarefas individuais concretas, indo desde o esforço constante do exercício de auto-crítica a uma adequada reavaliação das agendas individuais: as atividades constantes de minha agenda rotineira estão apontando para onde? Eu posso otimizar essa agenda, em que pontos? De que modo devo tentar, nesse sentido? Importa sublinhar aí o privilegiado lugar da mística revolucionária, também no plano individual. Por vezes, podemos constatar que a quase totalidade de nossas atividades tem se limitado a um reagir pontual e episódico de um calendário pouco ou nada eficaz. Até porque toma a maior parte do nosso tempo em reagir à pauta oficial do atual modelo, sem que nos assegure condições de ousarmos pautas propriamente nossas, inventivas e voltadas para nosso horizonte de organização societal, essencial, acenando para um constante crescimento de nossa condição de novos homens, de novas mulheres, inclusive pela decisiva adoção de um estilo de vida condizente com nossas mais densas aspirações. Aqui, também, tem lugar privilegiado o exercício das diferentes linguagens artísticas, como espaço fortemente humanizadores.  Enfim, damo-nos conta de que em vão buscamos ir forjando um novo mundo, se o tentarmos deixando-nos “de lado” desse processo, sem nele nos envolvermos plenamente, de modo que hoje tentemos agir melhor do que ontem, e amanhã, melhor do que hoje. Mudar o mundo, sim, ou melhor: ir mudando o mundo sim, mas a partir de nós!


João Pessoa, 07 de julho de 2016. 

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