À semelhança de tantas outras instituições, a Igreja Católica Romana atravessa uma profunda crise. É comparada à por ela vivida no tempo da Reforma, há meio milênio. Por espanto que possa provocar, é sempre útil lembrar que crise – de “Krinein”: decidir, tendo inclusive a mesma raiz de crítica, critério… – implica um momento de avaliação, de auto-crítica. E isto é vital para os seres humanos, também para os cristãos-católicos.
O atual momento, que já dura décadas seguidas, teve como ápice ou como um ponto forte de referência a recente renúncia do Papa Bento XVI. Por trás desse gesto atípico de um papa estão elementos mais notórios (saúde debilitada, idade avançada) e outros subjacentes (uma sucessão de fatos graves: numerosos casos de abusos sexuais envolvendo parte do clero, ocultação desses escândalos por figuras da alta hierarquia da Igreja Católica, graves escândalos financeiros no Banco do Vaticano, nos quais não faltam acusações de lavagem de dinheiro e ausência de transparência na gestão financeira, graves escândalos cometidos por lideranças de movimentos reacionários apoiados pelo Vaticano (“Opus Dei”, “Comunione e Liberazione”, Legionários de Cristo, Instituto do Verbo Encarnado, Sodalício da Vida Cristã, Arautos do Evangelho…). Movimentos (já chamados por Comblin de “sectários”) que se transformaram no alvo predileto dos dois últimos papas, a ponto de lograrem em Roma espaço estratégico privilegiado para daí se expandirem, à custa de muito dinheiro e da cumplicidade de um número considerável de membros da alta hierarquia…
De um lado, tem-se observado que, tanto em consequência desses escândalos quanto em razão de um descontentamento generalizado com o modo de governança da Igreja Católica (centralização crescente, imposição de normas obsoletas ao conjunto dos fieis católicos, infantilização de suas bases, exclusão das mulheres nos organismos de decisão eclesiais, secundarização do compromisso social com a libertação dos pobres, com os direitos humanos e a justiça social, recusa de diálogo com o mundo moderno, perseguição a quem ouse exercitar o dissenso, iniciativas arrogantes em relação às demais igrejas cristãs), tem-se observado. Por outro lado, um saudável e crescente sentimento de indignação no mundo católico, manifestado na formação de dezenas de organizações eclesiais, movimentos e grupos de católicos e católicas pela renovação da Igreja, para o que vêm oferecendo um conjunto de propostas alternativas.
Nesse cenário sinóptico, é que tem lugar o ato de renúncia do Papa Bento XVI, secundado pela eleição do novo bispo de Roma. Também este ainda escolhido graças a um processo eleitoral de frágil representatividade eclesial, ao menos quanto ao sentido de Igreja-Povo de Deus. Com efeito, quem é mesmo que representam os cardeais? O que os leva a formarem os únicos protagonistas da Igreja Católica a elegerem o novo bispo de Roma? Qual a representatividade das conferências episcopais nesse conclave? Qual a participação do conjunto do clero, das Religiosas e dos Religiosos? Qual a participação das Leigas e dos Leigos?
Assim escolhido, surge daí o novo bispo de Roma, cujo perfil encanta parcelas consideráveis de católicos e católicas, mundo afora:
– a partir do nome impactante que se dá, Francisco;
– o tratamento cordial dispensado aos presentes na Praça de São Pedro, quando de sua primeira aparição pública;
– o modo de se anunciar, nesta ocasião, como o “novo bispo de Roma” (em vez de Papa);
– sua atitude de recusa de usar vestes e símbolos sintuosos;
– sua postura de, ao ser cumprimentado, buscar evitar que lhe beijem a mão…
– suas primeiras intervenções públicas, acenando para o cuidado com os pobres, para a centralidade da Palavra de Deus, para o compromisso com as questões ambientais…
– a partir do nome impactante que se dá, Francisco;
– o tratamento cordial dispensado aos presentes na Praça de São Pedro, quando de sua primeira aparição pública;
– o modo de se anunciar, nesta ocasião, como o “novo bispo de Roma” (em vez de Papa);
– sua atitude de recusa de usar vestes e símbolos sintuosos;
– sua postura de, ao ser cumprimentado, buscar evitar que lhe beijem a mão…
– suas primeiras intervenções públicas, acenando para o cuidado com os pobres, para a centralidade da Palavra de Deus, para o compromisso com as questões ambientais…
São exemplos de gestos seus iniciais que têm suscitado em muita gente, mundo afora, bastante entusiasmo, inclusive em conhecidos críticos das estruturas da instituição eclesiástica, tais como Leonardo Boff e Hans Küng.
Ao mesmo tempo, têm vindo à tona rumores relativos à sua postura pouco profética ou mesmo de certa omissão, frente à ditadura argentina, no período entre 1976 e 1983, em que inclusive religiosos jesuítas foram perseguidos pelo regime, sem uma posição mais firme do superior jesuíta da época (Pe. Mario Jorge Bergoglio). Acusação à qual se juntam outras (suas ligações com o movimento “Comunione e Liberazione”, suas posições conservadoras no tratamento de questões sobre sexualidade. Acusações que também encontram eco em figuras de reconhecida respeitabilidade internacional, a exemplo sobretudo de teólogas e intelectuais feministas.
Diante desse quadro misto, que perguntas poderiam proporcionar-nos uma busca mais consistente de exercício de discernimento? Ouso fazer-me (e compartilhar) as seguintes, por enquanto:
– Tomando em consideração as condições gerais da atual organização eclesiástica, inclusive no que tange ao papado e ao respectivo processo eleitoral – sem esquecer o perfil de um colégio cardinalício feito à imagem e semelhança dos últimos papas -, o quê tínhamos o direito de esperar?
– Considerando que apenas começam a esboçar-se os primeiros passos do novo bispo de Roma – e ainda não os mais decisivos -, não será demasiado cedo para se ter um olhar mais consistente, de sua política de governança institucional?
– Sem prejuízo do necessário e contínuo exercício de acompanhamento dos primeiros sinais vindos a lume, não faríamos melhor seguir listando os principais clamores e aspirações do povo católico, para um enfrentamento lúcido e exitoso dos desafios presentes?
– Na listagem desses clamores e aspirações, não seria de bom alvitre sublinhar os pontos de maior densidade eclesial, na perspectiva do Seguimento de Jesus, tais como:
* Ante o caráter e a extensão dos atuais desafios enfrentados pela instituição da Igreja Católica Romana, bastaria apenas um Francisco ou é chegado o momento (Kairós) de contarmos com todo um povo de Franciscos e Claras, como protagonistas de um novo tempo para a nossa Igreja, mais conforme ao espírito do Evangelho e do Concílio Vaticano II?
* Não começam a despontar, no atual quadro, sinais que nos convidam a ir gestando as condições de um novo Concílio, a ser organizado em novas bases?
* Centralidade da Palavra de Deus (refontização): que nos chama a organizar, de modo bem diverso do atual, os distintos serviços eclesiais, de modo a extinguir/superar o modelo piramidal no forato de um Estado (com seu aparato curial, com seu banco, com seu corpo diplomático, com seus títulos honorários, seus símbolos e vestes tão distantes do Evangelho);
* Entre os pontos fundamentais de renovação, clamar pela primazia do Povo de Deus, em especial do povo dos pobres (a serem tratados como protagonistas do seu/nosso processo de libertação, não como mero alvo de nossa ação “caritativa”);
* Reconhecer, assegurar e promover o justo lugar das Mulheres na Igreja, como co-protagonistas das decisões;
* Reconhecer e assegurar o direito de participação nas decisões da Igreja aos distintos segmentos do Laicado, inclusive das Mulheres e dos Jovens, em suas distintas feições, de modo a superar a atual hegemonia antropocêntrica, androcêntrica, gerontocrática, etnocêntrica, homofóbica em vigor;
* Enfrentar, com espírito de misericórdia e de justiça, os graves problemas dos abusos sexuais e de seus encobrimentos, não apenas em sua dimensão teológica, mas igualmente em suas implicações jurídicas (em consideração ao sofrimento das vítimas)?
* Assumir a tarefa de reconhecer a legítima pluralidade de correntes teológicas, assegurando ampla liberdade de pesquisa, de publicação e de debate, inclusive no se refere à teologia moral vigente;
* Extinguir a lei do celibato, readmitindo os padres casados comprometidos com seu ministério, bem como ordenando homens e mulheres casados, vocacionados ao presbiterato e a qualquer outro ministério, de acordo com sua respectiva vocação, dom de Deus, e a ser reconhecida pela comunidade eclesial;
Com isto, por certo, não pretendemos uma impossível renovação imediata. Temos clareza de que, sendo, também a nossa, uma “Ecclesia semper reformanda” – e nós com ela -, temos consciência de tratar-se de clamores e aspirações cujo atinngimento se dá como um processo, a curto, médio e longo prazos, desde que sejamos capazes, DESDE JÁ, de esboçar sinais convincentes de que caminhamos nessa direção.
Ao mesmo tempo, ao ensaiarmos, desde já, passos concretos na mesma direção, cuidamos de manter-nos sempre vigilantes ao caráter integral das mudanças a que aspiramos, de modo a evitar que, alcançadas algumas, venhamos a esquecer ou a descuidar-nos do conjunto de mudanças que almejamos. Em cada passo a ensaiar estão presentes sementes da totalidade que buscamos, não obstante nossa condição limitada, mas fortalecida pela fidelidade e perseverança na Palavra de Deus.
João Pessoa, 21 demarço de 2013.
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