terça-feira, 19 de julho de 2016

As igrejas abriram um crediário para venderem Jesus a prestação

Análise de estrofes de autoria de José Galdino e Gilberto Alves (Festival de Cantadores e Repentistas realizado em Pernambuco, em 2003, com final em Recife, após dois meses de disputas, realizadas em Ouricuri, Tabira, Arcoverde, Gravatá, Panelas, Palmares, Surubim e Nazaré da Mata)
O apelo ao Sagrado se acha inscrito no coração da Humanidade, ontem e hoje. Vez por outra, irrompe mais efusivamente, fato às vezes confundido com a “volta do Sagrado”.
Acompanhando o estilo e o ritmo da globalização capitalista, em sua atual face/fase, o Sagrado emerge em tons sedutores. A religião torna-se um imenso balcão de supermercado dos bens religiosos, a inebriar vastos públicos, principalmente graças à força do “marketing”, hoje praticado de modo cientificamente aprimorado.
Forjam-se novas “necessidades” de consumo religioso, a fazer despontar um numeroso público de consumidores, ávidos por satisfazer suas necessidades. Necessidades de todo tipo. O Sagrado, com todo o seu potencial de magia, surge a deslumbrar, a inebriar vastos “adoradores”, ou consumidores em sua avidez de imediatismo.
Num mercado ultra-especializado, encontram-se gêneros muito diversificados de produtos religiosos: dos orientais aos ocidentais, de diferentes procedências: igrejas cristãs, com grande predomínio das expressões neopentecostais (inclusive de cunho católico romana), televangelismo, expressões não-cristãs, esotéricas, afro-indígenas, etc.
As estrofes a seguir selecionadas atêm-se, especificamente, ao mercado religioso das igrejas cristãs, católicas e evangélicas. Sua crítica reporta-se, especialmente, âs suas astutas estratégias de persuasão, tomando como tática o apelo à prosperidade, do que resulta engenhosa estratégia de arrebanhamento interesseiro, visando ao incremento financeiro das atividades religiosas.
A expressão poética da crítica nos remete a outros tempos. À Idade Média, por exemplo, período durante o qual grassaram diversos movimentos de protesto. Época de intensa ebulição, não apenas pela irrupção dos chamados movimentos pauperísticos (“Os pobres de Lyon”), tais como: ao Cátaros, os Albitenses, os Valdenses, os “Fraticelli”, as Beguinas, entre outros.
A similaridade da crítica aqui levantada nessas estrofes tem, porém, ainda mais a ver com a investida dos Goliardos, uma espécie de “Hippies” medievais, que tratavam de opor-se à ideologia ecelesiástica, por meio da arte literária, dos seus famosos poemas, a exemplo dos “Cármina Burana”. Tal era a irreverência com que os Goliardos se levantavam contra os hierarcas medievais, que não hesitavam em compor poemas cujas melodias tomavam de empréstimo às que vigoravam no próprio hinário eclesiástico.(1)
Nos dias atuais, o quadro religioso, em que pese a especificidade dos tempos de hoje, carrega marcas consideráveis daquela época: crescentes casos de corrupção dos dirigentes, pouca semelhança com as práticas do movimento de Jesus de Nazaré, situação semelhante à dos antigos chefes religiosos tão criticados pelos profetas e pelo próprio Jesus. Vejamos, pois, o teor da crítica formulada nas estrofes seguintes.
Para mim todo crente é sabedor
Que as Igrejas têm sua artimanha
Tem que dar dez por cento do que ganha
Para encher a carteira do pastor
Pra vender a Palavra do Senhor
Sempre existe a maior negociação
Quem se ilude com tal religião
Bem que pode findar justo ao contrário
As igrejas abriram um crediário
Pra vender Jesus Cristo a prestação
Jesus Cristo está sendo vendido
Em crucifixo, rosários e bandeja
Pelos membros que fazem sua igreja
Nenhum deles chorou arrependido
Mas Jesus lá no céu ´stá ofendido
Vendo a grande e total corrupção
Pois os padres, as freiras, sacristão
Todo mês pedem aumento de salário
As igrejas abriram um crediário
Pra vender Jesus Cristo a prestação
Do ponto de vista da forma, as estrofes retomam o estilo das décimas, já comentado anteriormente, em seu padrão de métrica e em sua paradigma de rima.

(1) Uma excelente de parte dos poemas dos Goliardos foi traduzida pelo saudoso Prof. Dr. Maurice van Woensel. Carmina Burana. São Paulo: Ars Poética, 1994. Sobre outros movimentos medievais, há uma vasta literatura que, em parte, trabalhamos em CALADO, A.J.F. Memória Histórica e Movimentos Sociais na Idade Média. João Pessoa: Idéia, 1999.

Fonte: Florilégio de estrofes da Poesia Sertaneja (João Pessoa: Ed. Buscas, 2009)

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