quinta-feira, 14 de julho de 2016

“EU OUVI OS CLAMORES DO MEU POVO”: um Documento profético publicado no auge da ditadura empresarial-militar, no Brasil

Em maio próximo, estaremos a comemorar 40 anos da publicação de um documento emblemático, de exemplar teor profético, vindo a lume em plena tenebrosa ditadura empresarial-militar, no Brasil, datando precisamente de 6 de maio de 1973… Trata-se, se assim posso chamar, de uma carta pastoral coletiva, assinada por uma trezena de bispos e cinco superiores religiosos do Nordeste. Entre os treze bispos signatários, encontramos:
– de Pernambuco: Dom Helder Câmara e Dom Lamartine, da Arquidioce de Olinda e Recife; Dom Severino Mariano de Aguiar, da Diocese de Pesqueira; Dom Francisco Austregésilo de Mesquita, da Diocese de Afogados da Ingazeira;
– do Maranhão: Dom João da Motta e Albuquerque e Dom Manoel Edmilson da Cruz, arcebispo e biso auxiliar da Arquidiocese de São Luia; Dom Rino Carlesi, da Diocese de Balsas; Dom Pascasio Rettler, da Diocese de Bacabal; e Dom Francisco Hélio Campo, de Viana;
– da Paraíba: Dom José Maria Pires, da Arquidiocese da Paraíba, e Dom Manoel Pereira Costa, da Diocese de Campina Grande;
– do Ceará: Dom Antônio Batista Fragoso, bispo de Crateús;
– de Sergipe: Dom José Brandão de Castro, da Diocese de Propriá.
Foram os seguintes os superiores religiosos que também firmaram o Documento: Frei Walfrido Mohn, provincial dos Franciscanos de Recife, Pernambuco; Pe. Hidenburgo Santana, provincial dos Jesuítas do Nordeste, Recife, Pernambudo; Pe. Gabriel Hofstede, provincial dos Redentoristas, Recife, Pernambuco; Dom Timóteo Amoroso Anastácio, Abade do Mosteiro de São Bento, Bahia; e Pe. Tarcisio Botturi, vice-provincial dos Jesuítas da Bahia.
Impactante é também constatar que tal iniciativa profética não se acha isolada, nem no tempo nem no espaço. A exemplo deste, também outros documentos, vindos a público pouco antes ou pouco depois deste, tiveram lugar, no Brasil de “tempos de chumbo”, sob o mais sanguinário dos governos militares, o do Presidente Médici (1969-1973). Em 1971, por exemplo, tivemos, em 12 de novembro de 1971, a publicação da carta pastoral de Pe. Pedro Casaldáliga (dias depois ordenado bispo de Sã Félix do Araguaia, intitulada “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a margilhalização social”.
Época em que também apareceu o documento “Y-Juca Pirama o Índio, aquele que deve morrer”, assinado pelos bispos da região Extremo-Oeste do Brasil, entre os quiais Dom Pedro Casaldáliga e Dom Balduno, a denunciarem, com coragem, que em todo o país se constatam episódios de invasão e de gradativo esbulho das terras dos Índios, em flagrante agressão aos seus direitos, em razão do que, mais do que sentindo-se ameaçados, tais agressões já estavam efetivamente em curso.
Nas linhas que seguem, restringimo-nos a algumas notas sobre o longo documento (em torno de 25 páginas!) assinado pelos bispos e superiories religiosos do Nordeste. Tratemos, primeiro, de situar a profética iniciativa dos bispos do Nordeste no cenário sócio-histórico e eclesial do período. Em seguida, cuidemos de fazer um rápido passeio pelo Documento, a sublinhar suas passagens mais contundentes. Concluímos, destacando o impacto e ressonâncias do mesmo Documento, em busca de extrair ensinamentos para os nossos dias.
1. Em que cenário sócio-histórico e eclesial foi fançado o Documento?
Vivíamos no Brasil (e, em seguida, também no Chile, na Argentina e no Uruguai) o auge do “rumor de botas” (Eder Sader), a era do mais aterrorizante dos presidentes militares, o General Garrastuzu Médici (1969-1973). Sob sua presidência, tem sequência mais duradoura o famigerado Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, o que seria chamado de “o golpe dentro do Golpe”. Época tenebrosa, “tempos de chumbo”: imprensa silenciada, sindicatos tutelados, liberdades democráticas supressas, Executivo soberano, Parlamento de fachada, Judiciário impotente, violência institucional, prisões arbitrárias, torturas, exílio… A resistência possível. A ditadura apelava para a propaganda do “Brasil: ame-o ou deixe-o”, usando e abusando da euforia suscitada pelo Tricampeonato de futebol (1970) e pelas comemorações do Sesquicentenário da “Independência”(1972)…
No âmbito eclesial, respirava-se o auspicioso clima de Medellín (1968): opção pelos pobres, CEBs, Teologia da Libertação, início de algumas das Pastorais Sociais, uma CNBB bastante atuante, graças a várias figuras proféticas em sua direção, apoiada por um número considerável de bispos-profetas, que incomodavam sobremaneira o regime militar, sobretudo por conta das constantes e corajosas denúncias que Dom Helder e outros faziam, na Europa, sobre o crescimento da “espiral da violência” no Brasil. A tal ponto que, não tendo coragem de tocar em Dom Helder, a ditadura vai atacar seus auxiliares: sequestra, tortura e assassina o Pe. Antônio Henrique Pereira Neto (1969); expulsa um de seus mais próximos assessores, o teólogo Pe. José Comblin (1972). Época de diversas experiências proféticas: Encontro de Irmãos, círculos bíblicos, Campanhas da Fraternidade com temas candentes. Iniciativas que, articuladas, vão ter um certo papel mobilizador de parcelas da sociedade pelo fim da ditadura. Em 1974, as eleições estaduais acenavam para o crescente descontentamento popular face ao regime em vigor.
2. Um rápido passeio pelo documento
Em se tratando de um Documento firmado por autoridades eclesiais, é de se esperar uma explicitação dos motivos mais fortes que os inspiraram a lançar o Documento. Donde, por exemplo, o próprio título do Documemto: “Essas palavras de Ex 3, 7, ditas por Deus a Moisés, dão hoje a medida exata de nossos sentimentos. É essa Palavra de Deus que nos impulsiona a tomar posição ao lado do povo e dos que se empenham por sua verdadeira libertação, de séculos de opressão.”
Ao dizerem sua palavra, o fazem sem arrogância. Reconhecem as fragilidades da Igreja, sua omissão durante séculos, frente à oprssão dos pobres, razão por que se sentem um tanto relutantes como Moisés diante da Palavra de Deus: quem sou eu para ir falar ao Faraó? Ao mesmo tempo, sentem-se encorajados pela força da Palavra (a Moisés e, hoje, tam´bem a eles). Desejam dar sequência às inquietações e compromissos compartilhados quando da 13ª Assembléia Geral da CNBB, em fevereiro de 1973, bem rememorar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os 10 anos da publicação da encíclica “Pacem in Terris”.
Ao dirigirem sua mensagem, empenham-se, porém, em ir além de um mero discurso, querem que sua palavra seja recebida como expressão de sua missão, de seu compromisso com a ação transformadora, razão por que, antes de se dirigirem a outros interlocutores, partem de uma autocrítica em relação às práticas da própria Igreja.
Fundamentam sua posição evangélica de abordar e combater a opressão de seu povo como parte irrenunciável de sua missão de profetas e pastores, repelindo firmemente acusações de que estejam a extrapolar de sua missão. E nos remetem a contundentes passagens bíblicas, a exemplo do Profeta Ezequiel, 13, 3 e 8: “Ai dos profetas insensatos que que seguem seu próprio espírito, sem nada verem. Por causa de vossas palavras vãs e de vossas visões mentirosas, sim, eu me declaro contra vós… porque eles dispersam meu povo, dizendo-lhe: “Tudo vai bem”, enquanto tudo vai mal”.
– A REALIDADE DO HOMEM DO NORDESTE
– Como o foco de análise dominante à época recaía sobre o paradigma do desenvolvimento social, sob a inspiração direta da teoria da dependência, parece razoável a atenção dedicada pelos redatores do documento à questão do subdesenvolvimento regional no quadro geral da situação do país. O documento cuida, então, de dissecar a realidade do Nordeste, com fundamentos em dados concretos oficiais (da SUDENE, do Censo de 1970) e não oficiais, sempre resultantes de pesquisas e estudos acadêmicos. E o faz recorrendo a diversos índices tais como: desigualdade regional, renda per cápita regional, desemprego-sub-emprego, subnutrição, habitação, educação, saúde…
Quanto à variável renda, por exemplo, denuncia que, no Nordeste, a renda por habitante alcança pouco mais de 200 dólares/ano, o que equivale a metade da renda nacional por habitante, e à terça parte da renda por habitante do Estado de São Paulo.
No tocante ao ítem desemprego/sub-emprego, com base em dados do IBGE e da PNAD, 23% das pessoas em idade de trabalho se acham desempregadas ou sub-empregadas. Situação que contrasta fortemente com a reivindicação feita pela encíclica “Pacem in Terris”, assinada pelo Papa João XXIII (em 1963), ao lembrar que todos têm direito ao trabalho e à participação na economia (cf. n. 8).
No quesito almentação, o Documento denuncia as condições de subnutrição dominantes no Nordeste, de modo a alcançar significativas parcelas da população. Recorrendo a dados de pesquisa em nutrição, feita pela UPPE (Pernambuco), o Documento expressa percentuais aterradores de subnitração. A fome assume aí um caráter endêmico, denuncia o Documento, com drásticas consequências, inclusive, sobre o desenvolvimento intelectual das crianças.
Outro ponto a que se reportava o Documento, tem a ver com as condições de moradia. Com acúmulo negativo vindo de décadas passadas, o déficit habitacional no Nordeste, em fevereiro de 1970, alcança a espantosa cifra de 2,3 milhóes de moradias, e com tendência a aumentar, dado o descompasso entre as taxas de crescimento demográfico e a política de habitação em vigor, na região…
Não menos dramática, a situação da educação, numa região em que o analfabetismo atingia em torno de 60% das crianças em idade escolar. E, mesmo para aquelas que logravam matrículas, apenas metada conseguia passar para o ensino médio, enquanto apenas 5% tinham acesso ao ensino superior, sendo que, especificamente no Nordeste, com relação ao número de matrículas, para o ensino secundário, 16%, enuanto para o ensino superior… 1%!
O último índice considerado nesse exame das condições sócio-econômicas características do Nordeste, foi o de saúde. Esquistossomose, doenças de Chagas, turbeculose, doenças sexualmente transmissíveis, mortalidade infantil são incidências expostas com dados aterradores, inclusive quanto à disponibilidade de leitos hospitalares: 1,9 para cada 1000 habitantes! Todos, estando diretamente afetos às condições econômicas vigentes, inclusive a renda média da região. Apenas um dado para ilutrar a gravidade do problema: o índice de mortalidade infantil alcançava, em 1970, 180 óbitos por 1.000!
Tal a gravidade, que o Documento conclui esse ítem, recorrendo ao impactante poema de João Cabral de Melo Neto, em seu clássico “Auto de Natal”:
“E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida/ morremos de morte igual/ mesma morte Severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta/ de emboscada antes dos vinte/ de fome um pouco por dia”
Antes de passar para o tópico seguinte – o da apreciaão crítica das causas dessa situação – importa assinalar que, embora recorrendo a índices quantitativos, como a renda “per capita”, o Documento tem o cuidado de relativizar tal índice, ao sublinhar que tal indicador também pode servir para mascarar as profundas desigualdades sociais aí reinantes.
ALGUNS ELEMENTOS DE APRECIAÇÃO SOBRE AS CAUSAS DESTA SITUAÇÃO
Antes de nos determos neste ítem, convém observar como saltam aos olhos a força e a fecundidade do famoso método “Ver-Julgar-Agir”, herdado da Ação Católica, e também aqui muito bem aplicado. Trata-se, agora, de passar ao exame (“Julgar”, tanto do ponto de vista das ciências sociais, como do ponto de vista da Palavra de Deus) das condições geradoras dessa situação. Várias são apontadas, a começar pela formação histórica do Brasil, iniciando-se pela do Nordeste. Aqui se vai em busca das raízes mais fundas da situação dominante no Nordeste: o processo de colonização, fundado na monocultura, na mão de obra escrava e no latifúndio, ciclo ao qual se seguem outros que se expandem para o Centro-Sul, tendo em comum a mesma “vocação” colonialista agro-exportadora, que a atual hegemonia do agronegócio e respectiva política de Estado teimam em manter, para a desgraça das terras e das Gentes, não apenas do Nordeste, mas de todo o páis.
O Documento faz, também, referência a sucessivas e desastradas políticas de combate aos efeitos da seca, dentro da lógica da “indústria da seca”, por meio de implementação de políticas que só conseguem alargar o fosso das desigualdades regionais e das desigualdades sociais intra-regionais.
Após o refluxo do ciclo da cana-de-açúcar, no Nordeste, dá-se a expansão em direção ao interior da região, sempre às custas do massacre dos povos indígenas e do esbulho de suas terras e territórios… até o presente!
Fator relevante de manutenção desse modelo se dá, não menos, da esfera da cultura e da religião. Tem sido secularmente cultivada pelas elites regionais, junto às camadas populares, a perspectiva de conformismo e inevitabilidade da existência de dominadores e dominados, de senhores e subalternos, a tal ponto que os próprios sujeitos das camadas populares se criam, não raro, sob a égide dessa visão: os dominados introjetam a perspectiva dos dominantes. A própria religião se tem empenhado, durante séculos, a cultivar essa tradição de dependência, de patriarcalismo, de assistencialismo, de protecionismo, como instrumentos de subordinação e de manutenção dos interesses das elites.
A CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO?
Neste tópico, o Documento começa por assinalar relevantes iniciativas de se tomar a sério o desenvolvimento do Nordeste. Iniciativas desencadeadas na região, com reconhecida participação do episcopado nordestino. Faz menção a dois importantes encontros sobre os desafios sócio-econômicos da terra e da Gente do Nordeste, protagonizados pelo episcopado nordestino: o encontro realizado em Campina Grande (Paraíba, 1956) e o realizado em Natal (Rio Grande do Norte, 1959), com a contribuição de destacadas figuras de intelectuais da região.
Era um tempo de grande efervescência, especialmente no campo, graças ao protagonismo das Ligas Camponesas, em luta pela Reforma Agrária, bem como por políticas estruturantes destinadas a enfrentar as trágicas consequências dos períodos de longa estiagem. Esse mesmo período foi caracterizado por dois períodos de seca: 1951-1952 e 1958. Além dos graves e recorrentes problemas fundiários, também se lutava contra o subdesenvolvimento industrial da região. Graças a esses encontros e a outras medidas, nasceu a iniciativa de criação da SUDENE, que surgiu em 1959, com o propósito de ser um órgão de planejamento sócio-econômico de atividades e medidas voltadas a impulsionar o desenvolvimento da região, inclusive por meio do combate às desigualdades regionais.
A SUDENE surge, então, naquele contexto desenvolvimentista de fins dos anos 50/inícios dos anos 60, como uma das grandes esperanças de dotar a região e sua Gente de meios e condições aptos de superar seu subdesenvolvimento em relação a outras regiões do país (em especial o Centro-Sul), por meio de crescentes investimentos na planificação, inclusive com arrojados projetos industriais. Eis que, passados cerca de dez anos, os signatários expressam sua decepção frente à “hemorragia” de recursos federais antes aportados para a região, e à época da publicação do referido Documento, de crescente redução e abandono: se à altura de 1967, a SUDENE só dispunha de menos de 2% das dotações orçamentárias, em 1972, elas se reduziriam a menos de 1%… Mais: a drástica hemorragia também sofrida pelo famoso “Artigo 34/18”, da SUDENE, em virtude do qual as pessoas jurídicas que empreendessem na região Nordeste iniciativas industriais, seriam dispensadas da metade dos impostos devidos, durante um certo período. A partir de 1970, tais benefícios foram sendo minados em proveito de obras faraônicas (como a Trans-Amazônica, beneficiada com o instituro do PIN (Programa de Integração Nacional)…
Os objetivos da SUDENE como órgão de planejamento e de implementação de medidas estruturantes visando a combater a miséria da região e as profundas desigualdades inter-regionais, foram sendo progressivamente abandonados, a partir do desvio de seus recursos específicos para outros fins. Por exemplo, em vez de pôr em marcha seu Plano de Desenvolvimento Regional, previsto para o triênio 1972-1975, que previa a desapropriação, por interesse social, de amplas extensões de terra para nelas assentar em torno de 300 mil famílias, incluindo gerando em torno de 700 mil empregos diretos, o regime militar optou por criar o PROTERRA, um programa de redistribuição de terras, por financiamento, dando claros sinais de que não pretendia intervir com medidas estruturantes.
Vale lembrar, por oportuno, que os signatários não se apresentavam como defensores incondicionais da SUDENE, até porque dela cobravam uma participação mais efetiva das camadas populares, avaliando um inquietante distanciamento do povo por parte dos dirigentes da SUDENE. Se a Igreja do Nordeste muito se havia empenhado na criação da SUDENE, o fazia pela esperança que tal órgão, nos seus inícios, representava para as camadas populares.
Este tópico, como se percebe, implica uma denúncia – sempre bem fundamentada, inclusive por meio de dados oficiais – do progressivo desmonte, pela ditadura civi-militar da época, das medidas axiais de impulsionamento do desenvolvimento do Nordeste, seja no âmbito do investimento industrial, seja no campo do atendimento às políticas fundiária e agrícola. Processo de desmonte que também se deu por meio do grave redirecionamento do histórico percentual destinado da renda nacional ao Fundo de Participação dos Estados e Municípios, que a Constituição de 1967 trata de modificar, em claro prejuízo dos Estados e Municípios nordesdestinos mais desamparados.
SUBDESENVOLVIMENTO: UMA FATALIDADE OU PRODUTO DE OPRESSÃO?
Ao apontarem as raízes do subdesenvolvimento, e, em especial, a série de medidas adotadas pelo regime militar, a inviabilizarem o desenvolvimento do Nordeste e sua Gente, cuidam os bipos e os superiores religiosos, signatários do Documento, de desmascarar as políticas econômicas da ditadura, por meio de suas opções que, não apenas não mais combatiam as desigualdades regionais, como até concorriam para agravá-las, seja ao se negarem a implementar a tão ansiada Reforma Agrária, seja também por minarem o esforço dos Trabalhadores e Trablhadaoras do Campo e da Cidade, e seus aliados, em suas iniciativas e lutas pela Reforma Agrária, bem como pela implantação de medidas estruturantes de desenvolvimento regional, inclusive pela implantação de política industrial. Nesse sentido, os signatários chegam a mostrar dados de promissor desenvolvimento da região em relação ao ritmo de crescimento nacional, até metade dos anos 60, após o que se constatou um retrocesso, especialmente a partir do período que se inicia em 1970, quando a taxa de crescimento do Nordeste (cerca de 5%) corresponde à metade da taxa nacional (em torno de 10%)…
Face a tal constatação, os signatários, a justo título, mostram-se indignados, e denunciam a tenebrosa ideologia da fatalidade, por meio da qual as elites pretendem passar a idéia de que o atraso da região e a miséria da população nordestina constituem um produto da fatalidade, sem saída, fazendo parcelas da população introjetarem tal ideologia. Sustentam tratar-se, não de fatalidade, mas de expressão de um modelo de opressão.
E passam, com profunda coragem profética, a des-velar o sistema. Começam por constatar sua nova opção de política econômica, não mais correspondente aos interesses nacionais (por ex., o de combate às profundas desigualdades regionais), mas de aderir aos interesses de grandes corporações transnacionais e aos grupos empresariais nacionais a elas associados: o modelo do capitalismo dependente associado, como se dizia, então. A implementação de tal projeto, feito a ferro e fogo, demandou uma série de ações de força, desde a violação da Constituição por meio do famigerado Ato Institucional n. 5, de 13 de dezebro de 1968. A partir daí, toda uma espantosa sucessão de medidas de força vêm a ter lugar: hipertrofia do Executivo, com o presidente imposto detendo poderes absolutos; subordinação dos demais poderes: parlamento sob controle; imprensa sob censura; supressas, as liberdades democráticas: de imprensa, de expressão, de reunião, de liberdade sindical (sindicatos so intervenção), ; sindicatos sob intervenção do Estado; supressão do direito de reunião, supressão do sigilo da correspondência, supressão do direito de greve; agravamento da violência institucional… E, para conter a resistência a tais medidas, não se hesitou em violar os direitos humanos e fazer o uso do terrorismo oficial…
MILAGRE BRASILEIRO OU MARGINALIZAÇÃO CRESCENTE?
A essa altura da percuciente análise desenvolvida pelos signatários, cai, como uma espada afiada, a pergunta: “Que milagre brasileiro?” Com efeito, se, a partir desta pergunta, outras mais fizermos, o rei fica nu… Em que situação se encontra a grande maioria do povo? Quem se beneficia da política econômica milagrosa? Qual o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho, àquela época? E o que é do Nordeste e de sua Gente?
A política econômica então vigente escancara-se para o capital externo e seus aliados nacionais: nunca se havia conhecido tal penetração de capital externo no país, detendo privilégios fabulosos, com vantagens e garantias extraordinárias. As taxas de crescimento econômico alcançam cifras fantásticas em relação ao PIB; em torno de 10%, donde a euforia do “milagre brasileiro”. “Milagre” que, ao beneficiar fartamente ao grande capital externo e seus aliados internos, vai se fazendo à custa do empobrecimento do povo. Um dado concreto, a esse respeito, é a concentração de renda, de riquezas e de terras do período. Entre 1960 e 1970, os 20% mais ricos viram sua participação na renda nacional passar de 54,4% para 64,1%, ao passo que os 80% restantes tiveram sua participação rebaixada de 45,5% para 36,8%… Apenas um dado entre vários outros citados, neste ítem do Documento. A justificativa do regime ante as justas reivindicações de distribuição de renda, ofende a inteligência: “Primeiro, deixar o bolo crescer, para depois distribuir”…
Enquanto isso, recorria-se a outros mecanismos de concentração. Um deles, a política fiscal de alto poder regressivo, ao recolher mais impostos dos pobres do que dos ricos. Denuncia o Documento que o imposto pago pelos pobres sobre um quilo de feijão ou de farinha era maior do que o cobrado sobre uma refeição num restaurante de luxo… Uma política fiscal que, além de ser injusta com os pobres, também favorecia os Estados mais ricos, a exemplo de São Paulo, em evidente prejuízo dos Estados do Nordeste.
Mesmo quando o Estado, em sua política econômica profundamente elitista, dizia contemplar também as parcelas mais vulneráveis da população, limitava-se a distribuir migalhas – a exemplo de programas sociais como o PIS, o PASEP, o PRORURAL, que, além de beneficiar um percentual pequeno da população, ainda o fazia sob a forma de uma poupança obrigatória sob o controle do Estado… Além das migalhas – o “pão”, o regime também usava e abusava do “circo”, o futebol, sobretudo em época de copa do mundo (“Todos juntos vamos/ Pra frente, Brasil/ Salve a seleção!”; “Este é um país que vai pra frente!”)… E haja propaganda!
Pelo vasto leque de argumentos convincentes, os signatários do Documento vão mostrando que o propalado “milagre brasileiro” resultou em enormes lucros apenas para os setores privilegiados, espcialmente as grandes corporações transnacionais e seus aliados internos. Para a grande maioria da população correspondeu a um processo de crescente marginalização. Até em setores como o da industrialização, produziu ganhos extraordinários para as multinacionais em distintas áreas e para as grandes potências, à medida que o grosso da política econômica do regime militar estava subordinado, seja quanto ao processo de produção, seja quanto ao ítem consumo, aos interesses externos, daí a ênfase nos produtos primários destinados à exportação, bem como em produtos industrializados com alcance limitado, no âmbito interno.
Eis por que tal modelo torna inevitável o processo de marginalização da maioria da população. Processo, aliás, secular, datando dos tempos da colonização. Não é por acaso que, também no que diz respeito à economia agrária, pouco de essencial havia mudado da estrutura fundiária, quanto à enorme concentração de terras. O regime então vigente, não apenas inviabilizava a Reforma Agrária, como mantinha pouco alteradas as seculares relações de trabaho no campo. Se os operários urbanos enfrentavam iníquas relações de trabalho, situação bem pior viviam os trabalhadores e trabalhadoras do campo, seja quanto ao aviltamento salarial, seja quanto à costumeira inobservância dos direitos trabalhistas: carteira de trabalho, salário mínimo, benefícios previdenciários, assistência de saúde, férias, etc.
Até as poucas e raras concessões que o regime fazia aos trabalhadores do campo, a exemplo do FUNRURAL, acabavam restritas a poucos trabalhadores, tais as exigências feitas aos seus supostos destinatários. Para a concessão da aposentadoria, por exemplo, exigia-se dos trabalhadores que recorressem aos seus patrões, em busca de atestado, os quais dificilmente lhes expedia, fugindo de possíveis cobranças junto à Justiça do Trabalho…
Diante dessa situação acuradamente analisada, os bispos e superiores religiosos signatários do Documento insistiam em seu dever dever de denunciar, ao tempo em que explicitavam sua solidariedade com as vítimas desse sistema, sempre citando amplamente passagens-chave da Sagrada Escritura e de documentos conciliares do Vaticano II.
Como ficar indiferentes à contundência profética de um Documento escrito no auge do período ditatorial por figuras da hierarquia da própria Igreja? Dificilmente se tem notícia de um escrito tão impactante, da autoria de bispos e religiosos católicos! Se hoje, em plena “democracia”, estamos longe de escutar/ler denúncias desse gênero, feitas por leigos e leigas, o quê dizer em relação a figuras da hierarquia, em um período tão fechado?
Há de se lembrar, com profunda reverência e gratidão, esse legado de um episcopado nordestino (e de outras regiões) com um compromisso e com um testemunho profético-passtoral exemplar. Gente conduzida pelo Espírito de Liberdade, a nos inspirar hoje, bem como as próximas gerações.
João Pessoa, 9 de fevereiro de 2013.
NOTA: Por não dispor, no momento, da versão original, valemo-nos da tradução francesa do mesmo Documento, feita por DIAL, e disponibilizada no “link”:

http://www.alterinfos.org/archives/DIAL-99.pdf

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