quarta-feira, 6 de julho de 2016

Democratizar o Estado ou ousar passos novos rumo a uma sociabilidade alternativa?

“Jesus, então, os chamou e disse: “Vocês sabem que os chefes das nações as dominam, e os seus representantes as tiranizam. Entre vocês, não seja assim. Quem quiser ser o maior, seja o servidor de todos.” (Mc 10, 42-45)
Começamos por assinalar que as notas que seguem, têm o propósito de, a partir do horizonte cristão (na ótica da Teologia da Libertação), em que busca nos situar, compartilhar inquietações com leitores e leitoras de distintos horizontes filosóficos, para além inclusive do credo cristão ou de outros.
Com espantosa frequência, temo-nos deparado, perplexos, com reiteradas manifestações, por segmentos expressivos da sociedade brasileira, de sua inquebrantável aposta na democratização do Estado, a despeito de uma longa sucessão de convincentes sinais de fracasso. Seguimos, não raro, inebriados pela cultura da ambigüidade, tão ao gosto de nossos tempos. Constantemente alertados por sinais inconfundíveis da qualidade dos “frutos da árvore” – vale dizer: do modelo de sociedade imperante -, e, preferindo seguir apostando nas bases da velha sociedade, à espera – vã! – de que ela mude por passes de mágica…
Como cidadã(o)s e como cristã(o)s, sentimo-nos, não poucos dentre nós, espantados diante de uma intrigante teimosia, de nossa parte, de esperar colher bons frutos de uma árvore comprovadamente má. Flagramo-nos reiteradamente em situações insustentáveis – os fatos são abundantes, graves e sucessivos! – e, contudo, recusamo-nos a envidar o menor esforço em busca de trilhas alternativas ao estabelecido, em ressonância proativa inclusive ao aceno de profecias como a de Isaías e a de Joel (cf. Is 65, 17-24; Joel 2, 22-29). Por vezes, não nos damos sequer ao trabalho de considerar alertas evangélicos tão reiterados, exortando-nos a não nos acomodarmos às estruturas vigentes (cf. Rm 12, 2), bem como a não extinguir a profecia, e a tudo examinar, com o cuidado de reter o que vale a pena (cf. 1 Ts, 5, 20-21)… E no entanto…
Aqui nos atemos, de passagem, a um único caso que consideramos deveras ilustrativo desta avaliação e dessa postura que estimamos equivocadas: nossa leitura de Estado. A despeito de toda uma sucessão incessante de fatos – cada um mais grave do que os precedentes, a sugerirem uma experiência sinistra de algo como um Estado cleptocrático e, ao lado do Mercado, co-propiciador de gigantescas desigualdades sociais – a se (re)editar em diferentes âmbitos, local, regional, nacional e internacional, de profunda gravidade, ainda assim seguimos apostando na possibilidade de “democratizar o Estado”…
De pouco ou de nada adianta lermos, reiteradamente, como cidadã(o)s cristã(o)s, alertas contundentes como o feito, por exemplo, na citação em epígrafe, quanto à forma de organização convencional das nações – de relações de dominação! -, exortando-nos de que somos chamados a ensaiar outros caminhos. A leitura entra por um ouvido, e sai pelo outro… Seguimos fazendo as mesmas coisas, teimando em pôr “remendo novo em pano velho”…
Em vez de, ao menos, tentarmos enxergar mais a fundo (o que implicaria recorrermos a lentes alternativas à lógica do sistema estabelecido) qual tem sido mesmo o papel do Estado, para além das definições convencionais, ou seja: examinando-o pelos seus frutos, considerando-o um instrumento histórico – ipso facto, mutável! -, temos preferido seguir lendo-o como algo dado e eterno, razão por que, em vez de ousarmos ensaiar outras vias de organização de nossa sociedade, acabamos sucumbindo à sua lógica. E as conseqüências não se fazem por esperar…
Nas linhas que seguem, é nosso propósito: elencar alguns fatos mais recentes de nosso atual cenário sócio-histórico; buscar elementos explicativos a essa nossa postura de contumaz amoldamento, e, por último, levantar alguns questionamentos sobre possibilidades históricas em aberto, em relação às quais somos chamados a ensaiar passos que estão ao nosso alcance.
Fatos, acontecimentos e situações que nos interpelam…
Tendo em vista toda uma sucessão de políticas sociais de exacerbado cunho privatista, sobretudo durante os dois períodos do Governo FHC, em que as classes populares resultaram fortemente penalizadas, as políticas compensatórias dos governos mais recentes têm implicado reconhecida alteração quanto ao beneficiamento limitado de parcelas consideráveis de nossa população. Os tantos. a quem, em décadas precedentes, só lhes coube arcar com o ônus do Estado brasileiro, em proveito desproporcional dos interesses dos segmentos privilegiados de nossa sociedade, eis que agora aplaudem os governos recentes pela sua ação política compensatória.
Como em toda gestão governamental, também nas mais recentes, há, sim, positividades a registrar. Nestas últimas, aliás, bem mais do que em precedentes, se consideramos, por exemplo, o alcance de políticas sociais voltadas para um maior reconhecimento e uma maior atenção a segmentos tais como as mulheres, os afrodescendentes, segmentos jovens. Digna também de reconhecimento, apesar e para além de seus limites, vem sendo a política de abertura a outros povos, em especial os Africanos, a causa palestina, os povos latino-americanos, assim rompendo com toda uma tradição de vergonhosa subserviência aos países centrais do Capitalismo. Reconhecemos e com isso nos regozijamos, lutando pelo aprofundamento e pela expansão dessas políticas, com a necessária correção de rota, em alguns casos (por ex., a instalação de forças brasileiras no Haiti…).
O reconhecimento do impacto positivo dessas (e outras) medidas, por outro lado, não nos deve fazer esquecer limites tantos em outras áreas, em especial no âmbito das macropolíticas econômicas, atinentes às relações com os segmentos financistas, à política ambiental, às reformas de base… Para se ter uma idéia de tais limites, é suficiente comparar as parcelas do bolo orçamentário destinadas às classes populares e as destinadas – direta e INDIRETAMENTE (via renúncia fiscal, por exemplo) aos setores privilegiados da sociedade. Aqui reside o foco axial de nossa crítica, sobretudo quando tomamos em consideração os compromissos históricos programáticos das forças hoje à frente do Governo brasileiro.
Sem desconsiderar parcelas de responsabilidade ético-política dos sujeitos (individuais e coletivos) hoje à frente da máquina do Estado – e aqui situamos o nó górdio da questão – entendemos essencial não restringirmos a esses sujeitos a responsabilidade central por esse desafio. Quem quer que sejam esses sujeitos, importa ter presente que a solução de tais problemas vai muito além dos mesmos. O Estado tem sua própria lógica, tem trâmites e ritmos que independem, em grande medida, dos sujeitos singulares que por ele passem. Por certo, determinado perfil de governante ou de parlamentar cumpre importante papel na realização de certas políticas. Mas, isto tem limite. E é isto que não temos sido capazes de reconhecer, a despeito de toda uma sucessão de sinais convincentes. Não se trata, pois, de um limite circunscrito a determinado perfil de agentes políticos. Trata-se, antes e sobretudo, de uma característica essencial do Estado – a de sua orgânica parceria com as forças do grande Capital.
É assim que, à semelhança de períodos precedentes, também hoje – mas de modo ainda mais acentuado – se perfila uma sucessão de fatos e acontecimentos, no cenário sócio-histórico local, regional, nacional e internacional, a nos interpelar frontalmente.
Em distintas partes do mundo, os povos se rebelam, ainda que de forma assistemática e sem ainda terem controle sobre seus destinos. Não apenas nos países periféricos, como dantes. Os países centrais do Capitalismo se apresentam, hoje, como palco de mobilizações crescentes por parte de significativas parcelas de suas respectivas populações. Evidencia-se incontornável o fosso, que se vem aprofundando, entre tais governos e seus supostos representados. O Movimento “Ocupe Wallstreet” brada que já não tolera a ditadura de 1% afrontando 99%… Não é novidade: basta lembrar as grandes passeatas na Inglaterra, na Espanha, etc., em tempos da invasão do Iraque…
No âmbito nacional, as coisas não se passam exatamente assim. Há nuanças, é claro. O atual contexto de crise se manifesta, no caso da sociedade brasileira, de modo distinto do cenário europeu, por exemplo. Semelhanças há, porém, quanto ao hiato entre governo, ou mais precisamente, entre Estado e sociedade, em especial seus setores mais organizados das classes populares.
As políticas sociais em curso não respondem a contento às demandas fundamentais do conjunto da sociedade, a não ser muito parcialmente, e de forma fragmentária e etapista, lenta e atabalhoada. O Estado não consegue atender às necessidades e aspirações fundamentais, sobretudo quando se trata de estender-se as políticas sociais ao conjunto da sociedade (universalização), seja em matéria de justa distribuição das riquezas, das terras, da renda, garantia de trabalho decente, de educação gratuita e de boa qualidade, de saúde digna para todos, de moradia decente, de previdência e seguridade social, etc., etc. E quando se trata de política ambiental, o desastre é ainda mais assustador!
Mais do que a constatação de um quadro remanescente de pobreza a afetar milhões de brasileiros e brasileiras, num país situado entre os sete mais ricos do mundo, impacta-nos sobremaneira o escândalo das desigualdades sociais, sem cujo equacionamento torna-se impossível enfrentarmos satisfatoriamente o desafio do respeito às diferenças, nas distintas relações sociais e humanas.
Nos planos nacional, regional e local, os fatos são eloqüentes. Sucedem-se os casos de violação e de violência SELETIVAS que acometem povos indígenas, comunidades quilombolas, trabalhadores rurais, povos tradicionais, além de outros relevantes segmentos de nossa sociedade (Mulheres, Jovens, vítimas da homofobia, entre outros). Isto não é tudo. As vítimas são, não raro, transformadas em algonzes. Trata-se da criminalização dos movimentos sociais, dos pobres, dos índios, dos negros, dos camponeses, dos militantes ambientalistas…
Quantos conflitos, quantos assassinatos, quantos feridos, quantas prisões poderiam e deveriam ter sido evitados pelo Estado e seus respectivos aparelhos, caso tivessem sido efetivamente realizadas a Reforma Agrária e a demarcação e regularização das terras indígenas e quilombolas.
Entre tantos casos graves recentes, ocorre-nos destacar as investidas de grandes empresas mineradoras pelas terras de assentamentos rurais de trabalhadores e trabalhadoras do campo, de comunidades indígenas e quilombolas, no litoral paraibano, ameaçando expulsar expressivos contingentes desses grupos, com o objetivo de utilização dos referidos territórios para instalação de indústrias de cimento e de outras atividades de mineração, ameaçando pôr por terra conquistas sociais de elevado alcance social, relegando seus protagonistas à rua da amargura. E tudo isto se passa com a revoltante cumplicidade do Estado e seus aparelhos.
No âmbito regional, como reflexo da desastrada política ambiental em curso, não bastassem as investidas em obras faraônicas, a exemplo da Transposição de águas do rio São Francisco, eis que a mais recente investida do Governo tem sido em relação à implantação no Nordeste de usinas nucleares. E o quê dizer da descontrolada expansão da indústria de automóveis, a despejarem milhões de novos automóveis nas ruas de ossas grandes cidades?!
Não sendo propósito dessas linhas estender-nos no número de casos graves e freqüentes, recentes ou que se acham em curso, contentemo-nos, aqui, com essa sucinta amostra.
Diante dessa sucessão crescente de fatos e situações semelhantes, o que se vem observando, desde muito, é a tendência hegemônica de se confiar ao Estado, por meio de seus aparelhos e de seus agentes, a responsabilidade de equacionar tais casos, tarefa cada vez mais longe de ser cumprida, pela simples razão da íntima parceria – tácita ou expressa – entre o Estado e os grandes grupos empresariais nacionais e transnacionais, não obstante a prevalência de um discurso que apologiza a ação do Estado, como benfeitora dos interesses do conjunto da sociedade.

O que nos leva a seguir apostando na ação do Estado como pretenso benfeitor dos interesses do conjunto da sociedade?
Várias possibilidades podem aqui ser aventadas. A força do hábito, por exemplo, não deve estar descartada. Há uma longa tradição de aposta na ação do Estado como um ente empenhado na defesa do bem comum. “Foi sempre assim!” Os textos-referência em Ciência Política, em Teoria Geral do Estado e áreas correlatas são pródigos na defesa desse entendimento. “O Estado é a nação politicamente organizada, cujo objetivo é assegurar o bem comum.” Entendimento como este tem atravessado gerações, inclusive os segmentos que controlam os aparelhos de Estado.
Do alcance médio dos membros da sociedade têm escapado os laços orgânicos entre os interesses dos grandes grupos econômicos, nacionais e transnacionais, e os normalmente assumidos pelo Estado, a despeito de reiterados fatos a respaldarem tal relação.
A ampla sucessão de escândalos financeiros, ético-políticos, ambientais, agroecológicos, observáveis em vários segmentos da sociedade e nas diferentes instâncias do Estado tem sido tratada, quase sempre, como eventuais disfunções do Estado, corrigíveis por meio de uma legislação mais rigorosa, bem como pela renovação parlamentar, pelo sufrágio periódico, e dos responsáveis do Executivo. A despeito de tal aposta vir sendo constantemente desmentida pelos fatos, a grande maioria das forças sociais segue apostando na eficácia desse ritual.
Outro ponto forte na busca de explicação da inabalável crença da maioria dos segmentos sociais na ação do Estado, tem a ver com a crença igualmente inquebrantável, historicamente reiterada, na capacidade INDIVIDUAL, não apenas de gestão da sociedade, como sobretudo de resolução dos impasses, em todas as áreas. É o que temos chamado de cultura presidencialista (de “praesidens”, aquele que está sentado à frente). Na prática, isto corresponde a atribuir-se a uma única pessoa – o chefe – a responsabilidade (quase) única de responder aos desafios de gestão de toda a sociedade.
Daí também decorre a prática pernóstica de culto a uma pessoa, a um salvador da pátria, de modo a estender-se sob outras formas, implicando, por exemplo, uma prática de subserviência do Legislativo ao Executivo. Aqui pontifica o prolongado abuso de medidas provisórias, numa reiterada afronta ao Legislativo. Não se restringe, contudo, ao abuso de sucessivas edições de medidas provisórias – as famigeradas EPs – a consolidarem a hipertrofia do Executivo. Esta se materializa numa ampla cadeia de medidas, ritos e procedimentos. Cadeia que tem incidência, inclusive, no pacto federativo. A hipertrofia do Executivo – e mais precisamente na esfera da União – constitui um componente discricionário de alto poder corrosivo ao espírito republicano federativo, à medida que desorganiza a desejável proporcionalidade nas atribuições dos entes federativos, implicando abusiva concentração de poder nas mãos da União, em profundo detrimento dos Estados e dos municípios. Um exemplo que ilustra tal dissimetria incide sobre as crescentes atribuições de implementação de políticas sociais, a exemplo da política de saúde, sem que lhes tenham sido assegurados os recursos orçamentários necessários.
Os demais aparelhos do Estado seguem – cada qual em sua esfera específica, e ao seu modo – a mesma lógica estatocrática, bem refletida nos frutos de sua ação. Em certa medida, o quase incondicional apoio que distintos segmentos das camadas populares emprestam à ação do Estado deve-se ao fato de que este, mesmo privilegiando os interesses dos setores dominantes, tem buscado – mais em certos governos do que em outros – assegurar medidas compensatórias que aliviam o fardo secular suportado pelas maiorias.
Há outro fator que concorre bastante para tão amplo apoio por segmentos das camadas populares à ação do Estado: refiro-me à influência do “marketing”, da propaganda oficial e da mídia comercial (mantida, aliás, em boa parte, pelas “generosas” verbas oficiais. Faz parte da estratégia de automanutenção do Estado recorrer, com toda a força, ao peso da propaganda. De tanto ouvir um discurso autoladatório feito por distintas instâncias do Estado, grande parte da população acaba introjetando e reproduzindo a versão oficial. Não é por acaso o volume extraordinário de verbas públicas (da Unidão aos municípios, passando pelos entes federativos) destinadas à propaganda…
Não é desprezível, por outro lado, a influência decisiva exercida por várias igrejas cristãs, a reforçarem esse apoio fundamental à mesma lógica. Salvo em aspectos de caráter moral que se opõem aos seus princípios (no âmbito da sexualidade, sobretudo), em geral as igrejas cristãs adaptam-se facilmente à lógica do Estado. Ambos – igrejas e Estado – têm em comum o entendimento da importância de uma pessoa ou de um pequeno grupo de ilumidados, na condução do processo de organização social/institucional. Tão forte é essa aposta que, por vezes, se avizinha de uma atitude de tutela. Aposta-se na necessidade que lhes cabe – ao Estado e às igrejas – de fazer a cabeça das pessoas. É preciso que as autoridades indiquem o caminho certo. Há, sim, em comum essa disposição de monitorar seus respectivos públicos. Não se distanciam tanto na forma de sua organização e dos seus princípios. Agora, no caso das igrejas, se isto tem a ver com o Evangelho, isto é outra coisa…
Ainda incluiria aqui o papel de alguns intelectuais orgânicos que se tornam referência de peso, graças à sua atuação crítica inicial. Tal perfil profético vai criando raízes e consolidando sua imagem, alimentada por seu discurso bem elaborado, ainda que suas atitudes mudem, conforme os ventos da conjuntura, não tanto por força dos fatos apresentados ou de dados da realidade, mas, antes, em virtude dos laços afetivos criados e consolidados com os novos donos do poder, para além de critérios judiciosos, como dantes. Afinal, há ou não, diferença entre vocação profética e efetivo exercício da profecia? A superação de tais situações tem ou não a ver com a permanente busca do exercício da profecia, como vocação coletiva, sem prejuízo do empenho individual, como no aceno que se registra no Livro de Números: “Oxalá todo o povo de Deus fosse de profetas” (Nm 11, 29)? Assim como outras atividades (por ex., análise de conjuntura), o exercício da profecia assume uma força especial, quando não se deixa a cargo uma única pessoa ou a um pequeno grupo a tarefa exclusiva de fazê-lo. Aqui também o mutirão faz diferença!
Diante dessa tendência, largamente hegemônica, de se confiar ao Estado o que ele não é capaz de assegurar – a universalização dos direitos e do cuidado da Mãe-Natureza -, buscamos, a seguir, pontuar alguns questionamentos voltados às possibilidades em aberto da construção de um novo modo de produção, de consumo e de gestão de sociedade, em relação amorosa com a Mãe-Natureza.
Questionamentos em relação a possibilidades históricas em aberto, com vistas à construção de um modo alternativo de produção, de consumos e de gestão de sociedade, em relação amorosa com o Planeta
Esperamos que o cenário precedentemente esboçado não nos inspire sentimentos de impotência, de inércia ou de amoldamento às estruturas vigentes. Sirva-nos, antes, de provocaçã/convocação ao permanente estado de busca, a ousarmos, dentro dos nossos limites, o exercício da inventividade. Não nos move qualquer pretensão de receitas. Empenhamo-nos, sim, em ensaiar trilhas alternativas às que se inspiram da lógica do Capital, que combina a gula do Mercado com a cumplicidade do Estado. Eis por que, seguindo com tantas dúvidas, anima-nos a disposição de continuar indagando, questionando, teimosamente…
Diante dos impasses antes tangenciados, múltiplas podem ser nossas tentativas de enfrentá-los. Também aqui, é o caráter dos nossos sonhos o que vai balizar nossas buscas. O tamanho e o empenho de nossas lutas e de nossa ousadia passam a ter a ver com a qualidade e o tamanho de nossos sonhos, de nossa Utopia. Há quem se contente, por exemplo, com a luta para assegurar a uma parte das camadas populares três refeições diárias. E nisso empenharão, legitimamente, o melhor de si. Outros há que estendem sua luta para garantir moradia a um percentual considerável de pessoas e de famílias sem teto, num país que tem a sétima maior economia. E disso vão à busca, por etapa: hoje um milhão, amanhã mais um, e assim sucessivamente, até que se consiga garantir moradia para todos… Estes nem sempre tomam na devida conta o fato de que, enquanto se atende o pleito de um número considerável, a população já terá crescido de modo tal que o déficit habitacional (e outros) já terá aumentado em velocidade maior…
Outros, ainda, lutam pela satisfação de outras necessidades materiais, por meio da implementação progressiva de políticas pontuais relativa às mais diferentes áreas de demandas sociais. Nós também apoiamos essas lutas. E as assumimos, porém, com uma diferença que julgamos decisiva: buscando articular cada uma dessas lutas pontuais a uma outra de caráter mais estrutural, de modo a estender cada um dos atendimentos de cada uma dessas políticas ao conjunto completo dos membros de nossa sociedade (dimensão universalizante), e de modo concomitante, no entendimento de que não cabe espera, quando se trata de direitos humanos e sociais, diante de um país e de um mundo que se apresentam capazes de assegurar tal universalidade e tal concomitância.
É justamente aqui que incide um primeiro questionamento nosso:
– Não estamos perdendo tempo em esperar que o Estado dê conta desse atendimento universalizante e não-etapista?
– Supondo – num exercício de mera elucubração – que o Estado fosse capaz de responder satisfatoriamente às legítimas demandas e aspirações do conjunto da sociedade, nas diferentes áreas de demandas, tomando em consideração o volume e o ritmo de seu atendimento, que percentual da população teria que permanentemente ficar à margem de suas políticas?
– Considerando ser esta a natureza de todo Estado, o que nos leva, então, a investir o melhor de nossa ação cidadã em reformá-lo, sabendo de antemão de seus limites invencíveis? Com a agravante de que confiamos, não às forças populares mais organizadas de nossa sociedade, mas aos próprios agentes do Estado, a tarefa de reformá-lo.. Poderia o Estado autoreformar-se, de acordo com critérios ético-políticos?
– A despeito de avanços pontuais na implementação de políticas sociais pontuais pelo Estado, que já reconhecemos, perguntamos como ficam os direitos de parcelas consideráveis da população não beneficiada por tais políticas?
– Embora o Estado reitere seu reconhecimento da legitimidade dos clamores por uma Reforma Agrária, o que o tem removido do sagrado dever de realizá-la, por força do que não cessa de aumentar o número de vítimas fatais e outras tantas, de sucessivos casos de violência no campo?
– O que leva o Estado a, em desrespeito da própria Constituição, não assegurar a demarcação e a regularização das terras indígenas e das comunidades quilombolas, de cuja inobservância têm resultado sucessivas vítimas fatais e tantas outras em situações graves?
– A quem se diga comprometido com ousar passos rumo à construção de uma nova sociedade, parece mesmo razoável seguir apostando na “democaratização do Estado”? Não seria mais eficaz envidar esforços no sentido de abrir debate em torno de possibilidades históricas, ainda que moleculares, de passos oportunos na direção almejada?
– Ainda refletindo a tendência hegemônica de aposta no Estado como espaço democrático, aqui me reporto a um relevante segmento da sociedade civil, os movimentos feministas. Aqui também tem-se constatado uma aposta notável na idéia de participação das mulheres nos espaços governamentais e estatais, como se o fato do acesso de mais mulheres aos espaços parlamentares, executivos e judiciários garantisse, por si, fator de democratização do poder, à medida que ajudaria a reduzir a desigualdade social nas relações de Gênero. Ora, de tal modo se acha azeitada a máquina estatal – e isto ao longo de muito tempo -, que é, no mínimo, questionável o sucesso dessa aposta.
– Sempre que se fala em servir o Público, a idéia (quase) única que prevalece largamente, é a que remete a espaços estatais (no Parlamento, nas instâncias governamentais e de outros aparelhos de Estado). Até em espaços de igrejas cristãs, a despeito de toda uma tradição evangélica que se põe distante dessas opções, predomina uma tendência de se apostar tanto nos espaços estatais, que se tem consolidado uma tendência de estímulo a que seus líderes – padres, pastores – invistam nesse terreno, inclusive por meio de candidaturas ou de assunção de cargos. Se, por um lado, houve conjunturas favoráveis a esse tipo de opção, perguntamo-nos se, na atual conjuntura de graves e crescenes distorções ético-políticas inerentes à própria lógica do Estado, esta segue sendo uma opção razoável, de serviço evangélico aos pobres, na perspectiva do Reino de Deus? Quem disse que num mundo tão rico em experiências de promoção e valorização de ações instituintes, na melhor acepção do Público, como é o caso de segmentos como parteiras, rezadeiras, iniciativas de presença servidora em hospitais e nas comunidades periféricas e movimentos sociais populares, tenhamos que recorrer a expedientes de candidaturas ou cargos remunerados da esfera estatal?
– Em relação a grupos, organizações ou coletivos que já não se sentem contemplados pelo modo convencional de se fazer Política, e muito menos dispostos a seguirem nessa linha, alimentamos a expectativa de que, ousando trilhar horizonte e vias alternativos, mantenham-se vigilantes, de modo a evitarem a reedição de práticas antes criticadas nas fileiras de forças com as quais tenham partilhado períodos de sua trajetória, sempre prontas a refundarem o conceito de revolução, para além da “tomada do quartel” ou do momento de ruptura militar, mantendo-se sempre na indagação acerca do que é mais relevante: a crítica das armas ou a arma da crítica?
– Ainda com relação a essas mesmas forças, vale perguntar-nos se já não é chegada a hora de reavaliarmos as experiências socialistas recentes e menos recentes, e que lições recolher sobretudo do fato de não terem conseguido a concretização da passagem do socialismo para uma sociedade igualitára?
– Ao mesmo tempo, diante do sentimento cada vez mais convincente, de que urge ir além do Capital, vale questionar o modo “socialista” de governar, cuja tendência histórica tem sido a pretensão de relativizar-se a grande meta: a abolição de uma sociabilidade refém do regime de classes, do qual o Estado é o principal avalista. Donde o questionamento: considerando que as sucessivas experiências – recentes e menos recentes – de Socialismo não têm avançado para além de uma sociedade de classe, cujos detentores, ainda que em nome da classe trabalhadora, governando com mão de ferro, se eternizam no poder, sem qualquer disposição convincente de materializarem passos concretos rumo a uma sociedade de produtores protagonistas de um novo de modo de produção, de consumo e de gestão de sociedade, numa relação amorosa com o Planeta? Até que ponto, a esse propósito, a hipertrofia da crítica das armas – antes usada, a justo título, contra o antigo regime – acaba sobrepujando a arma da crítica, no novo regime?
Por uma sociabilidade alternativa à lógica do Mercado e do Estado…
Trabalhamos em meio a incertezas múltiplas. As dúvidas nos aguçam a disposição de busca. De busca de quem não cessa de buscar. Só sabemos que não nos interessa a sociabilidade vigente, firmada na lógica do Mercado e do seu Estado. Mesmo não sabendo detalhes e nuanças da sociabilidade que estamos empenhados a construir, num processo incessante, temos intuições de que não abrimos mão: seguimos buscando rumo de liberdade por caminhos de liberdade. Aqui, os fins não justificam os meios, no sentido de que qualquer meio valha para se alcançar o fim almejado. Nosso rumo só se faz legítimo, à medida que os caminhos trilhados em sua direção também o sejam.
A sociabilidade vigente acha-se refém da lógica do Mercado e do seu Estado. E, enquanto se mantiver tal modelo, é impossível uma sociabilidade do bem viver, em escala internacional, e de forma a alcançar o conjunto dos humanos, em relação amorosa com o Planeta,com o Universo.
De tal modo se acha radicalmente comprometida a sociabilidade em curso, que se torna quase inviável qualquer esforço de reformá-la efetivamente, por meio de atuação nos espaços governamentais e seu respectivo Estado e aparelhos. Buscamos construir uma sociabilidade cuja organização esteja a cargo do conjunto dos protagonistas (as forças vivas e organizadas da sociedade, que se põem em movimento e não se achem reféns do Estado e seus aparelhos, tomando decisões diretamente e por meio, não do Estado, mas por iniciativas de cogestionárias de uma rede de comunidades ou de conselhos populares, cujos protagonistas se alternam em suas funções e tarefas, em âmbitos internacional, nacional, regional e local. Sem pretender fixar detalhes, vamos caminhando nessa direção, e fazendo caminho ao caminhar, e, enquanto caminhamos, tratando de pôr em prática procedimentos e expedientes característicos do rumo almejado. Por fim, tratando de valorizar, desde já, fim e meios dinamicamente relacionados, nutrimos a convicção de que “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como, e não saber para onde ir.”

João Pessoa, dezembro de 2011

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