Paulo Freire segue a atiçar, como fagulha de uma utopia libertária, as esperanças militantes de que um “outro mundo é possível” e necessário. Bem ilustram essa afirmação as inúmeras experiências de grupos de estudos e de pesquisas espalhados pelo Brasil, pelo Nordeste, pela Paraíba. Só na Paraíba, temos registros de grupos atuando, já há algum tempo, no Litoral, no Agreste e no Sertão.
Na UFPB, por exemplo, mais precisamente no Campus de Rio Tinto-Mamanguape, vem tendo lugar uma dessas fecundas experiências de Grupo de Estudos freireanos, inclusive pela promoção de círculos de cultura, desaguando em momentos mais fortes de síntese dessas experiências, tal como se deu nos últimos dias de outubro recém-findo, por meio de conferências, grupos de trabalho, oficinas, exposições de “banners” e atividades artístico-culturais.
Tive a oportunidade de participar, com outros colegas, de uma dessas Mesas, cujo tema proposto foi “Paulo Freire – polifonia para compreender e agir no mundo. Cuido de resumir de que modo busquei glosar o mote proposto.
Poética, a forma como foi proposto o tema da Mesa. Por certo, a experiência existencial e o legado de Paulo Freire bem inspiram um chamamento à polifonia e, mais do que isso, a uma sinfonia a ser protagonizada por distintos sujeitos (coletivos e pessoais). “Polifonia”, como sugere a própria etimologia, enseja uma pluralidade de vozes, ou de sujeitos a expressarem seus projetos, seus sonhos. Eis um primeiro passo, na busca de atendimento ao apelo freireano.
Pensando melhor, inspirados pelo próprio Freire, damo-nos conta de que, melhor do que “polifonia” (sentido de pluralidade de vozes), é a expressão “sinfonia”, que, além de supor a mesma pluralidade de vozes, também pressupõe uma afinação de vozes, de sujeitos, atendendo, assim, ainda melhor, ao seu sentido de diálogo, como expressão que vai além da mera pluralidade de sujeitos a expressarem seus desejos, à medida que os convoca a interagirem, a uma atenta escuta da palavra do outro, seguida de uma resposta. Em ambos os movimentos (o de ouvir e o de falar), estando os pólos interagentes dispostos a aprender com o outro, passando a incorporar novas contribuições, num verdadeiro exercício de interculturalidade. Enquanto na mera ação de multiculturalidade (polifonia)– quantas vezes já nos alertava João Francisco de Souza, a esse propósito! – temos a expressão individual de vários sujeitos, para que se dê, contudo, um exercício de interculturalidade, é necessário que os interlocutores interajam, se deixem tocar pela palavra do outro, se façam dispostos e abertos à novidade, buscando incorporá-la em seu aprendizado. De tal esforço de sintonia são chamados a participar, não apenas os iguais, mas também os diferentes, desde que não se trate de antagônicos (debater agroecologia com as forças do hidro-agronegócio parece perda de tempo…
Em nosso caso concreto, a partir do mote que nos é oferecido, algumas questões emergem:
– qual seria mesmo o sentido ou o alcance de uma tal empreitada?
– quais são seus protagonistas?
– quais são as prioridades e modos de alcança-las?
– qual seria mesmo o sentido ou o alcance de uma tal empreitada?
– quais são seus protagonistas?
– quais são as prioridades e modos de alcança-las?
Na perspectiva freireana, qualquer iniciativa desse porte passa por uma intencionalidade, por um projeto político, indo além de sua dimensão estritamente estética. Todo empenho na produção de uma polifonia ou de uma sinfonia é bem-vindo, inclusive pela sua dimensão estética. Ocorre que, em Freire, (quase) tudo passa por uma dimensão (também) política, de transformação social, do mundo, das pessoas, sempre numa perspectiva de aprimoramento. Há, pois, de se ter claro o horizonte dessa sinfonia: produzir uma sinfonia para quê, para quem? Para que tipo de mundo? Para que tipo de sociedade? Para que tipo de ser humano?
Sendo o horizonte freireano o da incessante busca de uma nova sociabilidade, forjada por um novo homem, uma nova mulher – um “novo mundo possível” e necessário -, é fundamental que tal busca se processe a partir da ótica dos “de baixo”, dos economicamente explorados, dos politicamente dominados, dos culturalmente marginalizados, dos/das que se indignam contra toda injustiça, inclusive contra os ataques à dignidade do Planeta.
Daí a importância de se forjar uma sinfonia com os sujeitos próprios dessa construção, seja na dimensão das relações sociais de gênero, no âmbito étnico, no horizonte geracional, na perspectiva das relações com a Mãe-Natureza, nas relações com o Sagrado, na dimensão da Cidadania, no terreno das relações de Trabalho…
Em cada uma dessas (e de outras) dimensões, há sujeitos (coletivos e individuais) que participam como protagonistas dessa mesma empreitada. Se somente os “de baixo” têm interesse concreto de mudar o atual modo de produção, de consumo, de gestão e de relação com a Natureza, é só com eles e graças ao seu protagonismo – dos movimentos populares, das organizações de base de nossa sociedade – que conseguiremos dar conta desse desafio. Em outras palavras, não será pela (vã) expectativa de que seus projetos venham a ser implementados pelo Mercado ou pelo Estado (ambos representantes e componentes essenciais do Capitalismo), mas, ao contrário, apenas na proporção em que o fazem, ciosos de sua autonomia relativa em face de ambos, por meio de estratégias e lutas que respondam, de forma coerente, ao espírito de seus objetivos. Forjar uma nova sociabilidade implica um projeto a longo, médio e curto prazos, alcançando distintas gerações, ao mesmo tempo em que, já a partir de agora, se comece a gestar esse processo, inclusive graças a iniciativas moleculares das relações do cotidiano. Em vão buscamos construir uma nova sociabilidade por caminhos outros que também não sejam coerentes na postura e nos meios em que se vai buscando construir. Só alcançaremos um horizonte de Liberdade também por caminhos e posturas de homens e mulheres renovados. Ou em incessante renovação.
Por onde começar? Que prioridades definir? São questões pertinentes. Por maior que seja o nosso apreço ao legado de bravos movimentos do passado, e mesmo por venerandos pensadores clássicos, bem sabemos que os desafios presentes não exatamente iguais aos por eles enfrentados em seu tempo. Desafios tais como os que nos são hoje colocados pelas relações sociais de gênero, pelas relações de etnia, pelas relações de espacialidade, pelas relações geracionais, pelas relações de Trabalho, na atual conjuntura, entre outras, merecem atenção especial, bem como formas distintas de organização e de enfrentamento. Isto supõe, por exemplo, um enorme esforço, não apenas de caráter organizativo e de mobilização, mas também no enfrentamento dos desafios do processo formativo, na perspectiva de Educação Popular, na ótica freireana. Um processo formativo que nos propicie aprofundar, de modo contínuo, e sempre na perspectiva dos “de baixo”, questões tais como memória (a memória perigosa dos movimentos sociais populares, o legado dos bons clássicos…), a práxis do compromisso, a mística revolucionária, em vista da incessante construção dos nossos sonhos. Se em Freire, é tão forte a inquietação com a leitura de mundo, hoje somos instigados, não apenas a uma releitura do mundo, como também a uma reescrita do mundo, a partir de nossa práxis coletiva e pessoal de cada dia, como nos alerta a famosa Tese 11 do velho Marx…
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