sábado, 9 de julho de 2016

DE TECELAGEM E TECELÃS(ÕES) DE UM NOVO MUNDO POSSÍVEL E NECESSÁRIO

Mulheres e homens do nosso tempo, vivendo um dia-a-dia sob intenso bombardeio de interpelações de todo tipo – dos desafios macro-sociais aos locais, nas mais distintas esferas da realidade – corremos, por vezes, o risco de sucumbir a uma atitude fragmentária ou espontaneísta de tentar enfrentar ou responder, um a um, a cada desafio que a realidade nos coloca, desatentos à natureza comum de seus fatores.
Ilustremos isto, por exemplo, com alguns fatos ainda hoje repercutidos: os desastrados projetos de Belo Monte e da Transposição seguem fazendo seus estragos, inclusive com seguidos reajustes orçamentários…; pretensão da Petrobrás em investir em cana no semiárido, braços dados com o agronegócio; expansão extremada da violência social em São Paulo, com dezenas de assassinatos (ou execuções!); no Maranhão, comunidades quilombolas ameaçadas por tiroteio; na Oriente Médio, Israel segue massacrando os Palestinos, que se defendem como podem; na Europa, greve geral em várias regiões; no semiárido nordestino, agravam-se as consequências da seca… e por aí seguem as ocorrências.
Solidários com as vítimas, cuidamos de nos manifestar, de distintos modos. É o mínimo que temos a fazer. A despeito de nossa incansável resistência, também nos damos conta de que, a despeito do bravo enfrentamento pontual de sucessivas batalhas, não apenas não logramos deter o número de ocorrências semelhantes, como às vezes, chega a ser ainda maior. Eis quando experimentamos uma sensação de impotência ou de desespero. Vencida, a aseguir, uma certa inclinação ao desânimo, e retomamos, teimosos, o caminho da resistência. E assim segue a vida… até que o próprio (con)viver nos induz a perguntar-nos: e se a gente tratasse melhor de costurar essas ocorrências, nelas buscando captar sinais e pistas ainda não tomados na devida conta?
Sem necessitarmos de abrir mão dessas atitudes cotidianas de persistente resistência e exercício de solidariedade, digamos, pontuais, também podemos ensaiar trilhas ainda não ou muito pouco tentadas. Que tal, por exemplo, potencializar nosso esforço de discernimento, de avaliação, de incessante busca das raízes menos visíveis dos problemas? E aqui, inspirados por bons clássicos (e contemporâneos) nos damos bem melhor, à medida que o exercício de identificação das raízes menos expostas dos problemas nos leva, a certa altura, a constatações um tanto surpreendentes, ainda que, pensando melhor depois, as estimemos, antes, evidentes, mas em relação às quais havia uma espécie de trava em nossos olhos, a bloquear ou a inibir uma percepção mais apurada dessa mesma realidade.
E daí desembocamos noutro achado. Observadas essas ocorrências mais fortes do dia, constatamos a existência de nexos significativos, antes não percebidos ou mal observados, que se interpõem a essas ocorrências, permitindo-nos a “descoberta” de que sua superação passa pelo enfrentamento de suas raízes comuns, que dão vazão a uma série das mesmas ocorrências. Passamos, por exemplo, a perceber que as manifestações massivas dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Europa seguem sendo desconhecidas ou subestimadas pelos respectivos “representantes” oficiais, tal como ocorria à época da então ameaça de invasão do Iraque (que pouco depois se perpetraria, e pela segunda vez…), em que manifestações massivas tiveram lugar em vários países da Europa e do mundo, dando conta inclusive de pesquisas constatando uma sonora desaprovação de mais de 90% da população a pronunciar-se contrariamente à invasão, enquanto na prática as grandes potências, por meio de seus “representantes” empenhavam-se teimosamente na deflagração da “guerra contra Sadam Hussein”…
Os fatos acontecem, e, não raro, acabam no esquecimento, até que surgem novas experiências traumáticas semelhantes, e com resultados também similares, a exemplo do perverso bloqueio a Cuba, inclusive na gestão do Presidente Prêmio Nobel da Paz, recém-eleito, ao calor da tática usada e abusada – lá e cá! -, pela enésima vez, do “menos ruim”… Eleições vão e voltam, e os fatos se repetem, à exaustão, como se não existissem outras vias a serem ensaiadas, a longo prazo, mas começando desde já a ousar passos alternativos, nessa direção. Poderíamos multiplicar os exemplos, com igual desfecho. Por vezes, um investimento hercúleo, de nossa parte, em tentativas pontuais, com resultados, no mínimo, duvidosos. E aqui vêm perguntas que não querem calar:
– A via da democracia formal (que, no caso dos Estados modernos, data, como sabemos, de poucos séculos, será mesmo única? A ela estaremos condenados eternamente?
– Nossas atitudes costumeiras, não tanto nossos discursos, têm mesmo entendido o Estado como um componente essencial do Capitalismo ou de toda sociedade de classes? E é isto mesmo o que queremos?
– Não será hora de mudarmos de estratégia, ousando trilhas ainda não ensaiadas, em grande escala, e a longo prazo, mas começando desde já, naquilo que está ao nosso alcance?
– Tendo em vista que, ainda que sejam os efeitos sentidos localmente, não terão eles uma causa comum, em escala global?
– Mesmo quando se trata de situações em âmbito nacional, será que nos damos conta de que, apenas muito raramente, ousamos enfrentar nacionalmente os efeitos perversos dos problemas sentidos localmente?
– Até que ponto isto não terá a ver com nossa disposição de nos limitarmos a enfrentar desafios pontuais, no varejo, um a um, ignorando ou subestimando suas raízes sistêmicas comuns?
– Impactantes declarações frequentes que têm circulado amplamente pela mídia oficial, nesses dois últimos dias, da parte de altas autoridades (refiro-me, por exemplo, à declaração do Ministro da Justiça, de que “preferia morrer” a enfrentar as condições de vida em uma de nossas prisões; bem como à declaração de um Ministro do STF, a cobrar justamente do Ministério da Justiça que faça a sua parte…), dando conta do que todos sabemos, e no entanto, não levamos a sério: até quando vamos nos convencer de que o Estado (com seus aparelhos) é componente do mesmo “sistema totalitário mercantil”, que acabamos alimentando, à medida que teimamos em nele apostar como tábua de salvação?
– Não será, antes, o caso de potencializarmos nossas energias criadoras, nosso tempo, nossa disposição e disponibilidade, na busca, em mutirão, de ensaiarmos novas trilhas, alternativas a esse sistema?
Bem sabemos, ao revisitarmos sagas memoráveis protagonizadas por nossos ancestrais mais distantes e mais próximos, movimentos sociais de grande alcance na história recente e menos recente, os bons clássicos (e contemporâneos), que as mudanças dignas desse nome não brotam desde cima nem desde fora. Começam desde os “de baixo”. Até podem contar com apoio de outros segmentos aliados, mas a nos primeiros é que reside a força do protagonismo transformador.
A retomada desse processo de busca incessante – de forma molecular, isto já anda acontecendo nas “correntezas subterrâneas” – passa também por um consistente e continuado processo formativo das bases desses movimentos. Não apenas dos dirigentes. Quando tal processo se dá limitando-se apenas aos dirigentes, o risco é alto de estes enveredarem por caminhos que, por mais que se declarem revolucionários, na verdade se voltam como bloqueadores ou inibidores dos processos revolucionários, tal a tendência do oportunismo, do carreirismo, do vanguardismo, do continuísmo e outros “ismos”…
Processo formativo que assim se caracteriza, entre tantas marcas:
– protagonizado por todos os s segmentos (da base da militância junto com os dirigentes do momento, estes sempre em rodízio);
– um processo formativo contínuo que traga sempre acesos os rumos, os caminhos e as práticas dos caminhantes;
– um processo formativo permanente que, por isso mesmo, trabalhe a memória subversiva dos vencidos, alimentada da práxis revolucionária de figuras emblemáticas (coletivas e individuais, sendo aqui importante trabalhar biografias de figuras inspiradas e inspiradoras), e voltada para o horizonte de utopia, por meio do exercício incessante da mística revolucionária;
– um processo formativo no horizonte da totalidade, e, portanto, não fragmentário, a contentar-se com o aprofundamento de uma única dimensão (a política, por ex.), em prejuízo de tantas outras igualmente necessárias e interligadas (espacialidade, ecologia, gênero, geração, etnia, subjetividade, crítica e autocrítica, trabalho, produção, cultura, ludicidade, saúde, educação, artes, dimensão do sagrado, progressivo e incessante desenvolvimento da capacidade perceptiva…).
Trata-se, como se pode perceber, de um incessante trabalho de tecelagem, existencial, consistindo em costurar e ressignificar os fios que conferem sentido e efetividadade ao processo de humanização, de modo a perceber, motivar, despertar e comprometer a comunidade dos viventes, em relação amorosa com o Planeta, na perspectiva da realização de seu projeto social e individual do “bom viver”, como nos ensinam nossos parceiros andinos…
João Pessoa, 16 de novembro de 2012.

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