quarta-feira, 6 de julho de 2016

Discernimento, Memória, Mística e Utopia como componentes de uma formação para uma cidadania de protagonistas

As práticas e concepções hegemônicas de Cidadania têm constituído, cada vez mais, um dos desafios de maior complexidade, nos dias atuais, para quem se mostra comprometido com o processo de construção de uma nova sociedade, de uma nova ordem mundial, alternativas à barbárie do Capitalismo em curso.
A condição cidadã regida pela lógica do Mercado tem-se, com efeito, reduzido a meras formalidades, confundida, tantas vezes, com abstratas representações simbólicas, tais como acesso e porte de documentos identitários, execução do hino nacional, realização periódica de viciados ritos eleitorais, entre outros. Nessa lógica, a condição de cidadão tende a ser aferida pela exibição de documentos pessoais, de títulos escolares, profissionais, tributários, bancários… Nada – ou quase nada – a ver com a tomada consciente de decisões autenticamente republicanas e democráticas, nem com atitudes usuais nas relações pessoais e comunitárias do dia-a-dia, em espaços como o do trabalho, o do trânsito, a parcela de responsabilidade (também) pessoal) no cuidado com o Planeta, com o planejamento, implementação, acompanhamento, controle social e avaliação das políticas sociais. Essas (e outras) atividades não deixam de ter ampla publicidade, mas se limitam, não raro, a formalidades burocráticas, perdendo efetividade junto aos principais interessados – os cidadãos, as cidadãs, em especial os do mundo do Trabalho. Quando muito, estes são indevidamente confundidos com contribuintes. Em todos os casos, os cidadãos e as cidadãs são tratados principalmente como consumidores, bem ao gosto da lógica do Mercado…
À semelhança de outros conceitos-chave (República, Democracia, Liberdade. Bem Comum, etc.), Cidadania passa, assim, a expressar um conteúdo correspondente à grade de valores do sistema dominante, em escala mundial, continental, nacional, regional, local… Forte é a tendência – inclusive entre setores antes mais críticos – a ser assumida tal concepção como “normal”, “natural”. E as conseqüências não se fazem esperar. Isto tanto mais quanto tal postura renda aos seus detentores algum tipo de vantagem… “Se todo o mundo assim se comporta, por que iria eu contestar?” Daí para a adoção – tácita ou explícita – da famigerada “lei do Gerson” (“Faça como eu: tire vantagem em tudo!”) – é um pequeno passo…
Esses sinais vão, doravante, compor os diferentes espaços sociais de que se vá participar: do ambiente familiar (“Agora, vou cuidar só de mim!”) às relações de trabalho (“Daqui pra frente só vou fazer o que me render vantagem!”), nos espaços partidários (“Se tivermos que fazer alianças desconfortáveis para vencer, vamos fazer. Quando a gente estiver no poder, a gente dará um jeito…”). Nem os movimentos sociais populares estão imunes de apelarem – pelo menos por meio de algumas de suas figuras representativas – ao recurso abusivo do discurso da racionalidade cínica…
Nestes últimos espaços, as conseqüências têm resultado ainda mais graves, uma vez que se trata de um sujeito cuja marca mais forte foi sempre a luta pela ética na Política. Também mais grave pelo fato de que, raramente, quem toma tal caminho tem a coragem de reconhecê-lo claramente. A tática mais freqüente consiste em reafirmar “ad nauseam” seu compromisso de classe, de boca para fora, enquanto, na prática, seus testemunho acenam para o inverso… Como uma parte considerável de pessoas, inclusive de militantes, ainda prefere o critério do discurso ao da prática, esse tipo de desmonte se torna mais complicado… até que finalmente o rei é flagrado nu…
Não sendo esse o horizonte de Cidadania que almejamos, que tipo de Cidadania corresponde aos nossos sonhos e que tipo de formação nos ajuda a ousar pistas na direção de nossa aposta?
Se entendemos que a identificação do nó da questão passa pelo caráter mesmo do modelo capitalista, não há como alcançarmos nossos objetivos, socorrendo-nos dos mesmos instrumentos organizativos de gestão característicos do próprio Capitalismo. Se temos clareza de que a engrenagem do Capital requer necessariamente a combinação de elementos-chave tais como os grandes conglomerados transnacionais (atuando nas mais distintas áreas da economia), do Estado (as grandes potências – G7, G20, dos seus organismos multilaterais e de seus aliados, resulta um contra-senso seguir apoiando-nos em qualquer um desses pilares do Capital, ainda que eventualmente segmentos de algum deles sejam pontualmente favoráveis.
A esse esforço de leitura crítica de nossa realidade temos chamado de discernimento. Um empenho cuidadoso e contínuo de alcançar uma visão menos incompleta de nossa realidade, em busca de enfrentarmos os desafios presentes, com melhores chances de sucesso.
Trata-se de uma busca incessante de reunirmos o maior número de interfaces da mesma realidade, atentando à sua dinâmica, potencialidades e limites. Para tanto, entendemos útil perguntar-nos: temos mesmo clareza de quem somos, do que estamos buscando e dos caminhos que somos historicamente chamados a trilhar?
Tal como se dá nas armadilhas indutoras de falsa cidadania, em que os acenos identitários se revestem de meras formalidades burocráticas (documentos, títulos, etc.), o mesmo ocorre em relação ao nosso esforço identitário. À pergunta “quem somos?” já não faz sentido tentar responder pela via burocrática de uma pertença formal, de uma carteira sindical, de um título acadêmico, etc. Requer, sobretudo, uma disposição interior de sentir-nos parte e corresponsáveis pelas lutas libertárias das classes populares. Sentir-nos profundamente apaixonados pela causa libertadora dos “de baixo”. Dar seguimento concreto a tal sentimento implica, por outro lado, empenho nos processos organizativos, formativos e de mobilização das classes populares, especialmente pela via dos movimentos sociais populares lidando com projetos alternativos de sociedade.
Pelos processos organizativos cuidamos de ajudar o esforço de unidade orgânica – da escala mundial à local – do conjunto dos/das-que-vivem-do-trabalho. Sem esse esforço organizativo, em vão se lutaria pela superação do atual modo de produção, de consumo e de gestão de sociedade, em relação amorosa com o Planeta. O mesmo vale em relação ao nosso compromisso com o processo organizativo e de mobilização.
No caso do processo formativo, trata-se de assegurar ao conjunto dos militantes uma formação que em vão se espera possa ser oferecida pela Escola (da Educação Infantil à Pós-Graduação), inclusive pelo fato de que, estando a educação oficial, normalmente, a serviço dos interesses do Estado – portanto, principalmente das classes dominantes que o controlam -, sua proposta de formação vai na mesma direção de seus interesses dominantes. Daí resulta que tem que ser da iniciativa dos “de baixo” o empenho de protagonizar seu próprio processo formativo, sob pena de sucumbir à armadilha a que alude o dito popular, de que “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão.”
Que formação, então, se espera da parte dos protagonistas dos movimentos sociais populares lidando com projeto alternativo de sociedade? Em outros textos, tratamos de um leque de características desse tipo de formação, de modo a destacar facetas tais como protagonismo dos formandos, despertar de suas potencialidades, reconhecimentos de seus limites, aprimoramento de sua capacidade perceptiva, recuperação da memória histórica dos oprimidos, superação da dicotomia trabalho intelectual/trabalho manual, estímulo ao exercício das diferentes linguagens artísticas, incentivo ao exercício da Utopia, exercício da mística revolucionária, amorosidade em relação à Mãe-Natureza, relação de positividade com o Sagrado…
Nessas linhas, destacamos apenas três dessas dimensões, sem esquecer a relevância e as interfaces com as demais. Referimo-nos aqui à memória, à mística e à utopia como componentes indispensáveis do processo formativo dos lutadores e lutadoras comprometidos com o esforço de construção de uma nova sociabilidade, alternativa ao Capitalismo.
Iniciando uma breve incursão pelas trilhas da Utopia, sustentamos que um tal processo formativo não se faz, sem que seus protagonistas façam um esforço incessante de manter aceso o horizonte de sua caminhada. Se não queremos esse modelo de sociedade, qual o que nos interessa? Que traços entendemos como característicos de uma nova sociedade? Ainda que não devamos empenhar-nos em detalhes e minúcias, em precisões “acabadas” – até porque as transformações por que nos batemos, são incessantes -, que linhas gerais buscamos para desenhar/projetar a sociedade que queremos construir? Em breve, corremos grave risco, sempre que nos lançamos em atividades mil, sem nos perguntar para onde elas nos estão levando. Como alertava a célebre personagem José Dolores, do filme “Queimada”, “É melhor saber para onde ir, sem saber como, do que saber como e não saber para onde ir.”
Trata-se de um esforço de ir pontuando elementos da feição dessa nova sociedade, de um novo modo de produção, de consumo e de gestão de sociedade. Por certo, um projeto de sociabilidade tecido de valores tais como os do respeito e amorosidade ao Planeta, da justiça social, da igualdade social, da convivência com a diversidade (de gênero, étnica, geracional, de espacialidade, etc.), da solidariedade com todos os povos, da extinção dos privilégios, da superação da dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual, do exercício da interculturalidade, da alternância de cargos e funções. Uma sociedade que tome a sério o princípio “De cada um, de acordo com suas possibilidades; para cada um, de acordo com suas necessidades.”
Em relação à memória, tendo sempre presentes os traços de nossa Utopia, tratam os formandos de tomar como referência político-pedagógica – em âmbito internacional, nacional e local – figuras individuais e coletivas do passado (recente e menos recente), cujas trajetórias existenciais e de lutas são capazes de oferecer inspiração, motivação e compromisso de luta pelas transformações sócio-históricas necessárias. A rememoração ativa de figuras tais como a de Zumbi dos Palmares, as lutas dos Quilombos, as façanhas dos povos indígenas de ontem e de hoje, a saga das Ligas Camponesas, o compromisso de um João Pedro Teixeira, de um Carlos Marighella, de um Gregório Bezerra – tudo isto se converte numa oportunidade de sinergia, de revitalização do engajamento dos lutadores e lutadoras de hoje, no sentido, não de tentar reeditar (em vão) estratégias e táticas úteis naquela época, mas não aplicáveis necessariamente no atual contexto, face aos novos desafios sobrevindos. Isto, por sua vez, nos alerta do cuidado em lidarmos com nossos clássicos de referência, que teremos sempre presentes, com a devida reverência, e, por isso mesmo, atentos a não tomá-los como mágicos de soluções prontas para os desafios presentes, abdicando assim de nossas responsabilidades, de nossa “criatividade revolucionária” (Sachez Vazquez).
No tocante à mística, convém destacar seu lugar privilegiado nesse processo formativo. É por meio do exercício da mística revolucionária ou de uma espiritualidade transformadora, que logramos consistência e efetividade desse processo formativo, à medida que, desde que exercitada incessantemente, é a mística que nos reanima, nos restitui com mais força a esperança e a garra de seguir pelejando.
Nesse sentido, a mística que somos chamados a trabalhar em nós, apresenta alguns traços em sua configuração:
– renovação dos compromissos com os “de baixo”, nos processos e lutas de libertação;
– sincera disposição de contínua renovação também no âmbito individual, em busca de exercitar, no que está ao alcance de cada um, de cada uma, o homem novo, a nova mulher que somos chamados a testemunhar, nas relações do dia-a-dia;
– gratuidade em nossas relações recíprocas: fazemos nossas tarefas, sem esperar “recompensa” ou vantagens pessoais;
– empenho de servir, antes, à causa de libertação, do que adotar um apoio incondicional a todo tipo de práticas equivocadas dos “nossos”.
– adoção de uma disposição incansável de aprendizagem: aprender, aprender, aprender. Aprender, inclusive, dos erros próprios e dos outros.
– colocar-se como primeiro alvo das próprias críticas;
– respirar e (re)energizar-se da força da memória histórica de figuras individuais e coletivas do passado recente ou remoto, sendo até capazes de ressoar em nós as energias cósmicas e de nossos ancestrais;
– não abrir mão de fazer tudo o que esteja ao nosso alcance, no que diz respeito ao nosso esforço de mudar o mundo, a partir de cada um, de cada uma de nós.
– buscar manter bem acesas nossas lamparinas, em busca do exercício incessante de discernimento dos fatos, dos acontecimentos e das situações que nos rodeiam.
João Pessoa, 8 de fevereiro de 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário