Data de 1968 a publicação do livro de Comblin, intitulado Os Sinais dos Tempos e a Evangelização: estudos de teologia pastoral, publicado pela Editora Duas Cidades. Trata-se de uma coletânea composta de quatorze estudos: em sua maioria, artigos então recém-publicados em distintas revistas nacionais e de outros países, e de alguns inéditos, que, reunidos, perfazem as 321 páginas do livro.
Entre esses estudos de teologia pastoral, previne o autor, encontram-se temas variados – alguns relativos a situações do passado católico do Brasil (o cap. V, por ex.), a maioria a abordar desafios teológicos então vigentes (anos 60), enquanto outros comportam elementos prospectivos (a exemplo do cap. II e do cap. VIII).
Aqui me ocupo apenas do primeiro capítulo, na verdade, um texto proferido por ocasião de uma aula inaugural por ele pronunciada no IFTE de São Paulo, em 1º de março de 1966, apenas três meses após o encerramento da última sessão do Concílio Vaticano II. Traz por título “A teologia frente à Evangelização”. Nas notas que seguem, trato de sublinhar os pontos-chave do texto, e, a seguir, cuido de tecer leves considerações sobre a contribuição do autor.
Questões axiais do artigo de Comblin: o lugar das Sagradas Escrituras na vida do povo e a contribuição da teologia
Solícito ao apelo pelo “aggiornamento” feito pelo Vaticano II, cuja última sessão de encerramento acabara de realizar-se apenas três meses antes, eis que Comblin já começa a intervir, nessa direção. E escolhe uma questão crucial como alvo de suas reflexões críticas: os desafios da teologia frente à evangelização, não sem antes reconhecer que se trata apenas de um aspecto – e não o principal – dos desafios da Igreja Católica diante da situação vivida pelo povo dos pobres. Sublinhando, pois, estar lidando apenas com um aspecto da questão teológica, a busca de saber qual teologia melhor responde e melhor serve à Evangelização, trata de focar sua reflexão em dois pontos: o do sentido da teologia e a compreensão das necessidades e aspirações do povo dos pobres participante da Igreja Católica.
Começando pelo sentido da Teologia, parte da crítica ao estilo dominante de se fazer teologia, muito preso a definições, a proposições acadêmicas herméticas, frequentemente inacessíveis, não apenas ao povo dos pobres, mas até mesmo a parcelas significativas do próprio clero. Em vez de tal concepção, cuida o autor de rememorar qual é o sentido substantivo da teologia, de toda teologia: ajudar a compreender a Bíblia, ao afirmar, por exemplo, que “De acordo com a tradição mais antiga e mais contínua da Igreja, teologia é essencialmente leitura das Sagradas Escrituras..” (p. 11).
Mas, não se trata de uma leitura meramente intelectual, cultural, acadêmica da Bíblia, nem ao modo dos humanistas antigos, nem ao modo da filologia moderna. Trata-se de “uma leitura dirigida pelo Espírito, vivida na fé, orientada por uma tradição de vivência cristã de vinte séculos” (p. 12).
Por outro lado, uma compreensão fecunda da Bíblia requer o cumprimento de algumas condições. O sentido da Escrituras Sagradas pode escapar ao leitor/à leitora iniciante desprovido de uma saudável introdução. Introdução que pode implicar uma interação frutuosa, que desperte ângulos da narrativa facilmente despercebidos por um olhar solitário e desprovido de algumas advertências que propiciam ao leitor, à leitora ir para além da letra. Eis quando surge a necessidade de um serviço bem ao alcance da teologia. Com efeito, a finalidade da teologia sistemática é “orientar os ouvintes para a recepção da mensagem bíblica: salientar os temas, delinear os conceitos, mostrar as linhas mestras da revelação” (p. 12)
Ocorre que também tal exercício teológico pode comportar situações embaraçosas, como têm alertado, lembra Comblin, vozes do Protestantismo. Teólogos protestantes apontam o risco de se superestimar a força da tradição, de sorte que daí prospere uma tendência de se superdimensionar o papel da tradição, de tal modo que a interpretação da Bíblia venha a tornar-se refém do olhar interpretativo de um grupo ou de uma autoridade. (p. 12).
Ao mesmo tempo, Comblin lembra que a postura adotada pelas correntes protestantes não conseguem escapar ao risco de se tornarem, elas também, prisioneiras inconscientes de sua própria tradição, da tradição recebida ao interno de sua própria denominação: “o fato de não explicitarem a relação de sua fé com a tradição de sua igreja torna-os mais sensíveis ainda às influências recebidas inconscientemente das tradições de sua própria denominação ou das escolas que frequentaram.” (pp. 12-13).
Tomadas essas precauções, não se deve desprezar toda uma rica tradição de teólogos, de padres da Igreja, de autores medievais, afeitos à interpretação das Sagradas Escrituras. Importa com eles interagir. Mas, não basta. Importa igualmente entender o exercício da leitura da Bíblia, não como um ato solitário que se cumpra apenas em e por si mesmo, mas fazer interlocução com os irmãos e irmãs, especialmente com as comunidades do povo dos pobres. É tarefa dos ministros empenharem-se em promover a criação de condições favoráveis ao exercício da leitura da Bíblia aos fiéis, a partir do seu próprio esforço de trazer para a sua meditação bíblica a situação concreta da gente do povo.
Aqui, o autor inicia a abordagem do segundo aspecto de sua reflexão: a situação da religiosidade dos católicos no Brasil, como um alvo a ser perseguido pela nova tarefa da teologia, nos novos tempos. Ele parte do reconhecimento da profunda sensibilidade do povo brasileiro aos valores religiosos, no que se distingue da situação do homem médio europeu, em especial dos trabalhadores. Estes se acham mais inclinados à promoção dos valores humanos mais do que os especificamente religiosos.
Voltando ao caso da massa popular no Brasil, como, então, lidar-se com tal realidade, sob esse aspecto? Trata-se de, partindo do reconhecimento dos valores a que o povo da massa é mais sensível, cabendo aqui o esforço de, primeiro, reconhecer os elementos cristãos presentes em sua profunda experiência religiosa; em seguida, empenhar-se numa tarefa mais diretamente pedagógica: a de dialogar com o catolicismo popular, de modo a suscitar questionamento em relação a princípios axiais da fé cristã ainda não presentes em sua vivência religiosa: “No Brasil, o caminho é primeiro o religioso para depois mostrar aos que estão aceitando o cristianismo integral, que êste contém também a promoção humana.” (p. 14).
Aqui resulta fundamental a tarefa da teologia, no sentido de despertar nas massas populares a atenção ao núcleo da mensagem evangélica, que lhe escapa ao conhecimento, em grande parte. Da mentalidade predominante parece distante a figura de Deus como Pai amoroso, de um Jesus irmão, que nos convida a vencer todas as manifestações de medo, pela entrega e confiança no Pai. A figura do Espírito Santo também aí resulta estranha, sem que Nele se identifiquem a fonte de libertação dos males, a força do enfrentamento dos desafios.
O predomínio da religiosidade popular, sem uma interação fecunda com os valores fundamentais do Evangelho, desemboca no fatalismo, na resignação, no alheamento aos valores humanos.
Eis por que a tarefa da teologia e dos que com ela lidam, é de priorizar esse desafio, começando pela denúncia pedagógica em relação a uma concepção e a uma prática de Cristianismo distanciadas da mensagem do Evangelho: “A Evangelização é denúncia da falsa interpretação do cristianismo. Sem denunciar esta falsa interpretação, nenhum diálogo será útil. Depois é preciso proclamar a verdadeira interpretação, isto é, anunciar o verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo” (p. 16)
O autor encerra a aula inaugural do IFTE de São Paulo, destacando três tarefas à teologia, como caminhos de enfrentamento dos desafios apontados:
– “iluminar as realidades da vida popular na luz do Evangelho”, isto é, por meio de um repertório dos momentos-chave da vida cotidiano do povo dos pobres, reconhecer neles a presença de elementos do Evangelho, ao tempo em que também lhe compete ajudar as massas populares a despertarem de suas insuficiências em relação à mensagem do Evangelho;
– “iluminar na luz do Evangelho as realidades da vida religiosa do povo”, isto é: suas práticas devocionais, sacramentais, milagres, etc.;
– “propor os temas fundamentais do cristianismo, encarnados nas situações concretas da vida”. Mais adiante, completa sublinhando que, para tanto, deve-se propor a meditação dos textos bíblicos em que se acham elementos de respostas para o que Deus quer dos seus filhos e filhas, acentuando que tudo se faça com linguagem acessível, com clareza, ao alcance do povo simples.
– “iluminar as realidades da vida popular na luz do Evangelho”, isto é, por meio de um repertório dos momentos-chave da vida cotidiano do povo dos pobres, reconhecer neles a presença de elementos do Evangelho, ao tempo em que também lhe compete ajudar as massas populares a despertarem de suas insuficiências em relação à mensagem do Evangelho;
– “iluminar na luz do Evangelho as realidades da vida religiosa do povo”, isto é: suas práticas devocionais, sacramentais, milagres, etc.;
– “propor os temas fundamentais do cristianismo, encarnados nas situações concretas da vida”. Mais adiante, completa sublinhando que, para tanto, deve-se propor a meditação dos textos bíblicos em que se acham elementos de respostas para o que Deus quer dos seus filhos e filhas, acentuando que tudo se faça com linguagem acessível, com clareza, ao alcance do povo simples.
Ao final desse revigorante passeio por mais esta produção de Comblin, permito-me destacar apenas três aspectos:
Uma das boas e raras qualidades que aprecio num autor, numa autora, consiste em examinar como suas teses são capazes de resistir ao tempo. Não se trata de esperar que, passados quarenta e sete anos, tudo siga rigorosamente intocável ou irretocável. Mas, de averiguar a consistência de suas colocações e de suas propostas. Alegra-me, mais uma vez, constatar em Comblin esse traço, também neste artigo.
Uma das boas e raras qualidades que aprecio num autor, numa autora, consiste em examinar como suas teses são capazes de resistir ao tempo. Não se trata de esperar que, passados quarenta e sete anos, tudo siga rigorosamente intocável ou irretocável. Mas, de averiguar a consistência de suas colocações e de suas propostas. Alegra-me, mais uma vez, constatar em Comblin esse traço, também neste artigo.
Saltam aos olhos sua lucidez e sua criatividade de teólogo. Num tempo em que prevalecia (?) amplamente um modelo de formação sacerdotal refém de uma teologia escolástica, ancorada em fórmulas, em enunciados abstratos, eis que faz irromper – e com sólidos fundamentos (nos Santos Padres, nos teólogos medievais de referência, inclusive em Tomás de Aquino) – uma proposta alternativa, inspirada no Evangelho e na vida do povo dos pobres. Como não enxergar aí elementos precursores da Teologia da Libertação?
Ao acompanhar sua rica fundamentação quanto à centralidade do Evangelho como alvo-mor da teologia – “a teologia é essencialmente leitura das Sagradas Escrituras” -, e, em especial, seus argumentos convincentes quanto à forma de ler as Sagradas Escrituras, pergunto-me como não enxergar aí fecundas e vigorosas sementes da “leitura orante da Bíblia”, tão exercitada pelas CEBs e por distintos setores da “Igreja na Base”?
João Pessoa, 28 de julho de 2013.
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