No Brasil, na América Latina, na Europa nos Estados Unidos, tem estado na ordem do dia a espinhosa questão da relação entre Sociedade e Estado, inclusive no âmbito da liberdade religiosa, e mais particularmente no que concerne ao tratamento privilegiado que, em vários casos, Estados formalmente democráticos têm dispensado a igrejas e grupos religiosos.
Isto se tem dado, de formas diversas: ora em assuntos de caráter econômica (financiamento pelo Estado a organizações religiosas, como é, por exemplo, o caso da Áustria, no atual debate suscitado pelo “referendum” em curso: cf. http://diblas-udine.blogautore.repubblica.it/2013/04/15/referendum-contro-i-privilegi-della-chiesa/ ); ora no âmbito dos Direitos Humanos, como se tem passado, por exemplo, no Brasil, que tomamos aqui como alvo de nossas considerações críticas.
Há vários anos, importantes segmentos de nossa sociedade vêm se mobilizando progressivamente, de modo organizado, no sentido de fazerem valer direitos fundamentais dos quais se veem alijados, por séculos, do legítimo exercício de sua Cidadania. Assim ocorre, por exemplo, com os movimentos indígenas, com as comunidades quilombolas, com os movimentos camponeses, com os movimentos e organizações feministas, com as organizações de pessoas com deficiência, e principalmente com o movimento LGBT, todos – uns mais do que outros – constantes alvos de criminalização por setores privilegiados, inclusive por órgãos do próprio Estado.
Os setores dominantes não suportam conviver com a firme tomada de consciência CIDADÃ e com a intensa mobilização desses segmentos, sobretudo quando passam a alcançar algumas conquistas. É o caso, por exemplo, do Segmento LGBT, diante do recente reconhecimento oficial de alguns direitos seus. Aqui reside bem o objetivo da recente manobra por parte da bancada evangélica da Câmara de Deputados, em sua estratégia – bem sucedida, aliás, até aqui – de ocupar, não apenas os espaços, mas a própria presidência da Comissão de Direitos Humanos, cargo para o qual elegeram uma figura emblemática, a do Pastor Deputado Marco Feliciano, que se tem tornado célebre pelas suas declarações injuriosas contra Afrodescentes e contra pessoas de orientação homoafetiva.
Figura afeita ao exercício da polêmica, inclusive como tática de autopromoção e em proveito do segmento que representa – parte significativa da população evangélica do Brasil -, o Pastor Deputado Marco Feliciano tem constituído uma eficaz expressão da estratégia da Bancada Evangélica, em suas crescentes investidas nos espaços governamentais, notadamente (por enquanto) na Câmara de Deputados, mas com claro propósito de expansão de seu poder político, inclusive com acenos à Presidência da República (cf. declaração nesse sentido, feita pelo próprio Deputado Marco Feliciano, em recente entrevista ao Programa Ratinho: http://www.youtube.com/watch?v=QfXpS8wRcUY
A esse mesmo Programa – na verdade, apenas um momento do Programa, “Dois dedos de prosa com Ratinho” – foi também convidado o Deputado Jean Wyllys, militante dos movimentos sociais no campo dos Direitos Humanos, sendo ele também um dos integrantes da Comissão de Direitos Humanos, na Câmara de Deputados. Tendo em vista tratar-se de um vídeo de cerca de seis minutos, recomendo vivamente que seja visto.
Ao ver o desempenho de ambos, no referido Programa, saltam aos olhos a necessidade e o desafio da sociedade civil, de se mobilizar, no sentido de compreender que o que está em jogo supera, em muito, apenas os interesses específicos dos Afrodescendentes e do Segmento GLBT. Todos os movimentos sociais populares, todas as organizações de base de nossa sociedade, todos os setores não-fundamentalistas das diferentes igrejas cristãs (evangélicas, católica) e de outros grupos religiosos devem sentir-se diretamente implicados, e de despertarem no sentido de se organizarem em conjunto, em vista de prevenir o pior: o risco potencial de estabelecimento, a médio prazo, de um Estado totalitário, agora de fundo religioso.
Se ainda estamos longe de um Estado laico – basta ver a diversidade de manifestações com que nos temos deparado, com claros sinais de fortes interferências em aparelhos do Estado por parte de representantes de grupos religiosos cristãos -, cresce nossa responsabilidade cívica de viabilizar procedimentos de superação de tal desafio. Um caso emblemático ocorreu, faz umas duas semanas: uma reunião na Câmara de Deputados, cujo objetivo era o de comemorar a fundação de uma igreja evangélica no Brasil, mas que, em vários momentos, mais parecia a realização de um culto religioso em pleno Congresso…
Uma sociedade que se pretenda democrática, se já tem o Estado como um sério obstáculo, não tem como conviver com um Estado confessional. Democracia passa pelo efetivo respeito à laicidade. Não basta que esta esteja formalmente prevista na Constituição.
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